“QUEM DEU O GOLPE, E CONTRA QUEM?” – por Jessé Souza — A CASA DE VIDRO.COM

“QUEM DEU O GOLPE, E CONTRA QUEM?” por Jessé Souza, sociólogo, professor da UFF (RJ), presidente do Ipea Instituto de Pesquisa, em artigo para a Ilustríssima da Folha de S.Paulo O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que nos […]

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Recebem ordens contra o Chile – Pablo Neruda

Este poema de Pablo Neruda tem, certamente, quase 70 anos e continua atual em nossa triste América Latina, dos golpes e traições. Substitua o Chile pelo Brasil e vocês poderão observar a incrível atualidade do tema. Foi publicado aqui no blog em setembro e em dezembro de 2015. Repito hoje. Está, cada vez mais, tristemente atual.

Há que dar-lhes doutrinação, lavagem cerebral e dólares. Articulam eles, anão traidor, mercantes de mandato, coveiros do voto e testas de ferro. Fazem eles o golpe.

Por trás dos traidores, há um império que põe a mesa …

Paulo Martins

Recebem ordens contra o Chile

Pablo Neruda

Mas atrás de todos eles há que buscar, há algo

atrás dos traidores e dos ratos que roem,

há um império que põe a mesa,

que serve a comida e as balas.

Querem fazer de ti o que logram na Grécia.

Os señoritos gregos no banquete, e balas

ao povo nas montanhas: há que extirpar o vôo

da nova Vitória de Samotrácia, há que enforcar,

matar, perder, mergulhar o punhal assassino

empunhado em Nova York, há que romper

com fogo

o orgulho do homem que assomava

por todas as partes como se nascesse

da terra regada pelo sangue.

Há que armar Chianga e o ínfimo Videla,

há que dar-lhes dinheiro para cárceres, asas

para que bombardeiem compatriotas, há que

dar-lhes

um pão velho, alguns dólares, fazem eles o resto,

eles mentem, corrompem, dançam sobre os

mortos

e suas esposas reluzem os visões mais caros.

Não importa a agonia do povo, deste martírio

necessitam os amos donos do cobre: há fatos:

os generais deixam o exército e servem

de assistentes no staff de Chuquicamata,

e no salitre o general “chileno”

ordena com sua espada quanto devem pedir

como aumento de salário os filhos do pampa.

Assim ordenam de cima, da bolsa com dólares,

assim recebe a ordem o anão traidor,

assim os generais se fazem de polícias,

assim apodrece o tronco da árvore da pátria.

Batman, Robin, o arcano e o homúnculo (atualizado em 09/08/2017)

Creio no humor, no deboche, no escárnio e na ironia como arma política contra traidores, golpistas, usurpadores, marechais, generais, bandidos políticos ou mal-intencionados judiciais.

Porém, alguns assuntos são tão graves que é impossível não tratá-los com a seriedade e urgência que merecem. Este é o caso da apologia ao crime hediondo praticada pelo deputado Jair Bolsonaro no circo armado no domingo passado, em plena Câmara de Deputados, com transmissão pela TV para o Brasil e para o mundo (na votação do afastamento da presidente Dilma do exercício da presidência da Relespública).  Não vou brincar com isso. Outros assuntos, no entanto, apesar de sérios, merecem o escárnio, o deboche e a nossa, mais do que nunca necessária, desobediência civil.

As manipulações divulgadas pela grande mídia lava a jato – aquela que usa sua máquina de espuma para fazer lavagem cerebral na opinião pública nacional – enlouquecem qualquer pessoa que tenha consciência política.

Para não enlouquecer, prefiro debochar. O humor, o deboche e a ironia, fina ou grossa, são as armas dos enlouquecidos e dos desesperados. Outros preferem ovo.

Preste atenção ao título deste artigo:

Batman e Robin, a dupla de capa preta de Votthan City, vocês sabem quem são. Arcanos do tribunal supremacista temos vários, mas só um deu entrevista, acompanhado do Batman e Robin, como parte da operação lava-cérebros a jato da Rede Bobo.

Não. Eu não errei. Não é decano. É arcano mesmo.

Pausa cultural: de acordo com profunda pesquisa em sites suspeitos na www/grande rede global, arcano representa, na alquimia, uma poção misteriosa acessível somente aos seguidores desta prática esotérica. Para este artigo, arcano é o douto jurista que bebeu esta poção misteriosa.

Tomando por base, ainda, fontes infidedignas, porém mais confiáveis que as fontes do Boechato ( também conhecido como Enceradeira Desgovernada) e as da Tacanhede, a alquimia possui três objetivos:

Primeiro: transformar metais inferiores e substâncias como titica de galinha em ouro. No Brasil, os Alckimistas e seus amigos de confraria, utilizam-se da Alckimia para transformar reles golpe em voto. E prosseguem na alquimia, transformando voto comprado em miséria, desgraça, desemprego, recessão e entreguismo.

Segundo: fabricar o Elixir da Longa Vida. Também já foi feito no Brasil, que aumentou a idade dos sinistros da corte supremacista de 70  para 75 anos, criando uma futura corte de “arcanos”.

Terceiro: criação de vida humana artificial (o homúnculo) a partir de materiais inanimados. Também já fazemos aqui neste país Alckimista. Pelo processo de impeachment, estamos transformando um material inanimado – anódino, inodoro, incolor, “acarismático”, traidor e golpista – em homúnculo todo poderoso.

De acordo com as fontes citadas, Paracelso achava que o homúnculo – humano de 12 polegadas de altura – poderia ser criado por meio de sêmen humano posto em uma retorta hermeticamente fechada e aquecido em esterco de cavalo durante durante 40 dias.

O processo Alckimista teve início no Senado com o discurso do senador Aéreo, em 5 de novembro de 2014. Foi colocado na retorta no laboratório da Câmara. Prosseguiu sua peregrinação por diferentes laboratórios judiciais. Foi aquecido pela mídia lava-consciência a jato. Retornou para os laboratórios da Câmara e foi concluído nos laboratórios do Senado.

Desmentiu Paracelso, pois levou mais de 400 dias, em vez dos 40 dias proposto pelo famoso alquimista. Mas em compensação gerou um humúnculo indestrutível, que sangra, sangra, sangra, mas não morre.

Só uma coisa me intriga: o processo de alquimia para criação do homúnculo foi concluído (o laboratório do Senado completou a farsa, digo, alquimia) e o homúnculo está por aí assombrando a todos os cidadãos, recebendo pessoas às escondidas na calada da noite, armando tenebrosas transações com misturadores de voz e com  barreiras de vasos de plantas e escapando sempre das garras da justiça de Votthan City. De onde vem a força deste homúnculo? Do medo, do rabo preso, do interesse comum, do conluio entre iguais?

Acho que nem Paracelso explica.

Parafraseando uma colega blogueira: “na vitrola: os alquimistas estão chegando, com Jorge Ben”.

Paulo Martins

Um tijolaço no alvo: texto emocionado de Fernando Brito

Como (não) age o STF diante de um crime
POR FERNANDO BRITO · 19/04/2016

Há um grupo de homens e mulheres que não pode ser excluído do enojado julgamento que se faz, hoje, daquele espetáculo de imundície cívica que se viu na noite de domingo na Câmara dos Deputados.

Nenhum deles se alterou, ninguém invocou Deus, ninguém chamou o nome dos netinhos e dos filhinhos.

Mas o Supremo Tribunal Federal – com as ressalvas honrosas a seu presidente Ricardo Lewandowski e de Marco Aurélio Mello – agiu com idêntico cinismo.

Disse ao país que a votação na Câmara não deveria ser submetida a controles de legalidade ou constitucionalidade porque era, apenas, um pedido de admissão que, em si, não provoca qualquer consequência.

Não, excelências?

Que planeta habitam os senhores ministros?

Há um crime sendo executado e vou narrar, passo a passo, a atitude dos senhores.

Um homem, homem que está como réu diante dos senhores, pega uma arma e a municia.

Os senhores dizem que não há problema, ele tem o porte devido e não há condenação formal sobre ele, embora existam todas as evidências de crime e o país inteiro ouça-o prometer um assassinato.

Este homem aponta a arma para uma mulher.

De novo, dizem os senhores, não há o que fazer, pois ele é livre para apontar a mão a quem quer que seja, de vez que não constitui crime aponta-la, ainda que armada, em qualquer direção e não se pode supor que o gesto vá significar um assassinato.

Decidem assim, mesmo diante de muitos que gritam: “ele vai matá-la, o covarde vai matá-la”.

Então, excelências, o criminoso puxa o cão do revólver e novamente os senhores dizem que é seu direito, porque não se trata senão de um gesto mecânico, impessoal, e a Constituição diz que ninguém será impedido de fazer algo senão pela lei e não há lei que impeça engatilhar um revólver.

Como vossas excelências (em minúsculas, como os senhores merecem) permitiram, a ousadia do bandido vai ao máximo e ele dispara.

Bem, foi só um disparo e disparo não é crime. Neste microssegundo dos dias que vivemos pode-se dizer que não há lesão alguma. A bala ainda caminha no ar, é cedo para dizer se atingirá mortalmente seu alvo. Quem sabe ele se abaixará, fugirá da trajetória assassina, quem sabe? Cedo para dizer, não é, senhores?

E é assim que estamos, senhores juízes. Já todos sabem onde a bala chegará, já são só centímetros a separá-la do coração de uma mulher que, se erros pode ter, criminosa não é como é seu algoz.

Mas, tecnicamente, nada aconteceu, senão um estrondo e o cheiro fétido da pólvora se espalhando no ar.

Quem sabe a bala vá andar lentamente, como nos truques do Matrix, e a futura vítima escape? Ela ainda olha para os senhores, a dor pressentida em seus olhos, ainda lhes espera um gesto milagroso e o milagre seria apenas que cumprissem seu dever.

Ah, é de lembrar um antecedente, que todos os senhores conhecem de fato e ainda não pode subir ao exame de vossas excelências, ocupados que estavam discutindo os pleitos salariais dos procuradores dos municípios.

É que aquela senhora, percebendo as intenções iminentes de seu futuro assassino, tomou nas mãos um colete que poderia protegê-la, defendê-la.

Veloz como um raio, um dos senhores, o de caratonha mais beiçuda e feroz, veio e impediu a de vesti-lo. “Pera lá”, disse ele, “pode haver um desvio de finalidade neste colete”, precisamos revirá-lo, ver sua nota fiscal, prazo de validade, registros, selos, taxas e emolumentos. Enquanto isso, está proibida de vesti-lo.

Há um mês, excelências.

A bala atingiu seu alvo, penetrou-lhe o peito, aos gritos de Deus, de “Felipe, Aline, Antenor, meu filhinhos e meus netinhos”.

E os senhores a dizer: não, não há crime, a vitima está de pé, seu coração ainda bate, o que houve é apenas a admissibilidade de sua morte, o que só os médicos do Senado poderão atestar, isso depois de levá-la para a UTI e ao coma induzido de 180 dias, com confortável leito no Alvorada.

É assim que contarei ao meu filho pequeno como agiu a Suprema Corte de meu país.

Ele vai achar que os senhores são idiotas e que são tão responsáveis pelo crime quanto a mão canalha que tomou, armou e disparou a arma com a sua omissão.

Eu, infelizmente, terei que concordar com o julgamento de uma criança que, com seus 11 anos, parece saber melhor do que os senhores que quando um gesto intenta um crime, criminoso o gesto é.

Deu-me asco ver as togas. como anteontem vi a bandeira tão querida e respeitada, a servir como manto de canalhas, ouvindo os gritos: “pela devida vênia, pela lei 1.059, pela alínea C do artigo 1212111 do Regimento da Câmara, eu voto simmmmmm!”.

Reconectar o ser aos valores humanitários: essencial e urgente

Post de Pedro Munhoz, em sua página no Facebook:

“Bolsonaro só é possível porque não passamos a limpo os crimes cometidos por agentes do estado durante a ditadura militar. Em parte, a morte de Amarildo, de Cláudia e a prisão de Rafael Braga por porte de pinho sol, foram também possibilitadas pela mesma condicionante. Genocídio indígena e da juventude periférica, idem. Tudo isso acontece e vem acontecendo sem que quase nada fosse feito. Defensores da ditadura, seus agentes e aliados falam da tribuna do parlamento livremente e ocupam cargos em governos que se afirmam do campo de esquerda, chefiam a editoria de jornais, publicam livros de Direito. Ao invés de uma postura de enfrentamento aos agentes etiológicos que fizeram de nossa institucionalidade um ente adoentado de nascença, decidimos que alimentar esses cancros seria mais apropriado. Não há, portanto, Estado Democrático de Direito a se defender por aqui. Há eleições diretas de dois em dois anos, mas se aqueles que deveriam zelar pela Constituição não se prestam nem a defender o mais básico, por que motivo dariam qualquer importância para as formalidades eleitorais? Nunca deram importância a isso, ou a nada que estivesse inscrito em qualquer diploma legal. A Câmara, de forma geral, não se importa. O Senado também não se importa. A mídia não se importa. Uma parcela considerável dos trabalhadores, por nunca terem tido acesso a nada além desse imenso e movediço desprezo pela Constituição, também não se importa. Sou contra o impeachment e tenho clara a minha posição. Mas o impeachment vai passar porque na fissura onde passa policial matando gente inocente e deputado defendendo tortura na Câmara, passa qualquer coisa.”

Meus comentários:

Prezado Pedro, nem sempre concordo com seus comentários. O que é saudável. Não é o caso desta vez. Concordo quase integralmente com sua análise. Que Estado Democrático de Direito é esse onde, quando interessa, a morosidade é a regra e a justa celeridade processual é negada ? Que Estado Democrático de Direito é esse onde é necessário ter muito dinheiro para obter uma decisão da Justiça em tempo hábil ?

Mas, como você mesmo indica, este é somente um dos aspectos.

A introdução do seu texto está ótima. Você iniciou o diagnóstico. Faltou complementá-lo com uma análise mais rica das causas e possíveis soluções. Dá um livro !

Estou vindo de uma palestra do Christian Laval na UFRJ sobre o livro que ele escreveu com Pierre Dardot, “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”. Enxergo neste livro as possíveis causas dos males que você apontou em seu curto diagnóstico: o esgotamento da democracia liberal.

O livro de Dardot e Laval parou no meio do caminho. Foi tímido em apontar possíveis soluções para os problemas que levantou. Talvez do estrangulamento que a nova razão neoliberal do mundo traz para as nossas vidas, brote a semente da reação, com a volta dos valores humanistas e das ações voltadas ao bem comum.

Talvez, ao contrário, o efeito seja o fortalecimento dos xenófobos e neo-higienistas na Europa e nos Estados Unidos e dos hidrófobos no Brasil, em toda a América Latina e em diversos cantões do mundo, como a ascensão de Le Pen, na França, de Trump, nos EUA, da extrema direita na Alemanha e dos Revoltados seletivos e dos Bolsonarianos, no Brasil.

Para as esquerdas, a luta contra o impeachment (golpe) ou situações similares no mundo é uma batalha importante, mas uma batalha em uma guerra muito mais ampla.

Esta guerra não poderá ser vencida sem reversão da apatia que tomou conta dos cidadãos no mundo todo. Quando a Alta Política deixa um vácuo, a Baixa Política se apropria das consciências.

Para reversão da apatia é necessário quebrar a lógica do ser-consumidor e do ser-máquina de trabalho e reconectá-lo à sua dimensão humana. Como alcançar a necessária reversão nos valores? Mujica e Papa Francisco deram algumas dicas. Falta a contribuição das esquerdas. Com teorias e, principalmente, ações.

Foto: Tirada durante manifestação contra o golpe na Praia de Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro.

 

CANALHAS !!!

Os leitores e amigos que acompanham este blog são testemunhas de que sempre tentei manter o debate em alto nível, divulgando somente informações fidedignas, pesquisas e opiniões fundamentadas. Porém, diante da escalada obscurantista que venho observando neste país desde junho de 2013 e da flagrante ilegalidade do processo de impedimento de uma presidente democraticamente eleita, não posso omitir-me e fingir que tudo isso é normal e sem consequências. Não é.

No dia 4 de novembro de 2014 iniciei este blog com o objetivo de servir de contraponto ao retrocesso que eu pressentia naquela época. Subestimei a força e o poder de articulação da mídia golpista e das bancadas de deputados federais comprados na Câmara.

Por ironia do destino, neste mesmo dia o candidato derrotado nas eleições de 2014, Aécio Neves, em discurso no Senado, declarou guerra ao país. Aliou-se aos movimentos financiados Revoltados Online, MBL e Vem Pra Rua, a Eduardo Cunha e a Michel Temer, o traidor.

Procurei uma única palavra para definir os golpistas e os traidores. Achei inspiração nos discursos dos deputados Glauber, Jean Wyllys, Jandira Feghali, Wadih Damous, Chico Alencar e Ivan Valente.

A melhor palavra para definir os golpistas e traidores é: “CANALHAS !!!”

As esquerdas deste país nunca tiveram caminho fácil e nunca desistiram. A luta continua.

Assista aos vídeos:

https://www.facebook.com/chicoalencar/videos/816416391793947/

https://www.facebook.com/IvanValentePSOL/videos/1181751751869705/

https://www.facebook.com/jean.wyllys/videos/1073562216025118/

https://www.facebook.com/sigajandira2/videos/1183061675061826/

https://www.facebook.com/botandoapilha/videos/1036591016412568/

 

Impeachment do processo civilizatório, por Eduardo Fagnani

Impeachment do processo civilizatório, publicado em Plataforma Política Social
ABRIL 14, 2016
O aprofundamento das políticas econômicas de “austeridade” pós-golpe requer a radical supressão de direitos sociais e trabalhistas. Nesse caso, um dos focos é acabar com a cidadania social conquistada pela Constituição de 1988, marco do processo civilizatório brasileiro.
Eduardo Fagnani* | Publicado no Le Monde Diplomatique
O objetivo de construir uma sociedade civilizada, democrática e socialmente justa deveria ser um dos núcleos de um projeto nacional. A Constituição de 1988 representa um marco do processo civilizatório do país. Pela primeira vez em mais de cinco séculos, ela assegurou formalmente a cidadania plena (direitos civis, políticos e sociais) para todos os brasileiros. O novo ciclo democrático inaugurado por ela, associado aos avanços sociais obtidos na década passada, contribuiu para a melhoria do padrão de vida da população, especialmente dos mais pobres.
Não obstante, o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Essa marca tem raízes históricas ditadas pela industrialização tardia, pela curta e descontinuada experiência democrática e, especialmente, pelo longo passado escravocrata, cujo legado foi uma massa de analfabetos sem cidadania. Em pleno século XXI, o país ainda não foi capaz sequer de enfrentar desigualdades históricas herdadas de mais de três séculos de escravidão. Observe-se que, segundo estudo da ONU, a pobreza no Brasil tem cor: mais de 70% das pessoas vivendo em extrema pobreza no país são negras; 64% delas não completam a educação básica; 80% dos analfabetos brasileiros são negros; os salários médios dos negros são 2,4 vezes mais baixos que o dos brancos. No Rio de Janeiro, 80% das vítimas de homicídios resultantes de intervenções policiais são negras. A taxa de assassinatos de mulheres também tem clara dimensão racial. Entre 2003 e 2013, o assassinato de mulheres brancas caiu 10%; no mesmo período, o de negras subiu 54%.1
Segundo o Mapa da Violência, oBrasil ocupa o terceiro lugar, entre 85 países, no ranking de mortes de adolescentes. São 54,9 homicídios para cada 100 mil jovens de 15 a 19 anos, atrás apenas de México e El Salvador. A taxa brasileira é 275 vezes maior do que a de países como Áustria e Japão. Em média, dez adolescentes são assassinados por dia. O assassinato de jovens também tem cor. Morrem proporcionalmente sete negros para cada branco. No Maranhão morrem treze negros para cada branco.2
Nessas condições, o primeiro objetivo estratégico de um projeto civilizatório deveria ser enfrentar essas profundas desigualdades históricas. Em segundo lugar, preservar a inclusão social recente e aprofundar a cidadania social assegurada pela Constituição de 1988. Em terceiro, enfrentar as brutais desigualdades da renda, o que exige medidas voltadas para a revisão da estrutura tributária, a melhor distribuição da propriedade urbana e rural e a correção das desigualdades no mercado de trabalho. Quarto objetivo: universalizar a cidadania social, pelo enfrentamento do déficit na oferta de serviços sociais públicos, que combina desigualdades no acesso entre classes sociais e entre regiões do país.
A criação de uma sociedade mais igualitária requer que a gestão macroeconômica crie um ambiente favorável para o objetivo de longo prazo de reduzir continuamente a desigualdade. O progresso material é vital para a melhoria generalizada das condições de vida da população. O crescimento continuado da produção e da renda é condição necessária para a estruturação do mundo do trabalho e a ampliação do bem-estar social.
Não obstante, o arcabouço institucional adotado pelos organismos internacionais desde os anos 1990, consubstanciado no chamado “tripé” macroeconômico, não converge para esses propósitos, pois visa unicamente preservar a riqueza financeira. A revisão desse arcabouço vem sendo introduzida por diversos países antes mesmo da crise internacional de 2008; e a própria ortodoxia internacional já o trata como o “velho consenso”. Mas, aqui no Brasil, o “tripé” macroeconômico, introduzido em 1999, tornou-se ideia fixa. Qualquer crítica é considerada herética pelos ditadores do debate econômico nacional.
Fortalecer a indústria também é condição necessária para avançar no processo civilizatório. A experiência internacional ensina que nenhum país se tornou desenvolvido sem uma indústria forte e competitiva. Também seria necessário fortalecer a capacidade de financiamento do Estado. Há espaço para avançar na reforma tributária, na revisão dos incentivos fiscais e no combate à sonegação. Taxas de juros estratosféricas ampliam continuamente as despesas financeiras, transferem renda para os mais ricos e enfraquecem a capacidade financeira dos governos para atuar em favor da redução das desigualdades.
Não existem perspectivas favoráveis para a construção de uma sociedade mais igualitária se esse projeto não for pensado na perspectiva da democracia. O contínuo aperfeiçoamento da democracia exige a reforma do sistema representativo, monopolizado pelos partidos e capturado pelo poder econômico. A mercantilização do voto e a ausência de partidos programáticos impõem limites ao presidencialismo de coalizão, tornando qualquer governo refém de interesses corporativos e fisiológicos. Essa é a raiz da corrupção generalizada do sistema político-partidário, que expõe as fraturas do modelo herdado do pacto conservador na transição para a democracia.
A criação de uma sociedade mais igualitária também requer o reforço do papel do Estado. Não há na história econômica do capitalismo nenhum caso de país que tenha se desenvolvido sem o concurso expressivo de seu Estado nacional. A democracia depende da pluralidade de ideias e, nesse sentido, é fundamental garantir que os meios de comunicação sejam o esteio de um debate plural sobre os problemas do Brasil e suas soluções, aprendendo com as lições de diversos países capitalistas desenvolvidos (Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Espanha e Portugal, entre outros).
Repetindo 1954, 1961 e 1964
A crença nessa utopia foi possível desde a redemocratização dos anos 1980 até poucos anos atrás. Hoje somos devastados por uma sensação opressiva. A iminência de um golpe institucional – pois não há evidência de crime de responsabilidade cometido pela mandatária do país – e a ascensão ilegítima ao poder de representantes dos detentores da riqueza poderão convulsionar o país e aprofundar a captura e o restrito controle do Estado por parte desses setores. O golpe na democracia vem acompanhado pelo impeachmentda cidadania social. Trata-se de nova oportunidade para promover radical mudança na correlação de forças em benefício exclusivo do poder das finanças.
Nos últimos sessenta anos, a sociedade brasileira mudou para melhor. Mas as elites ainda adotam práticas dos anos 1950 e 1960. Continuam sendo “predatórias” e “incapazes de viver com o antagônico”. Como em 1964, “elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem para sua destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo”.3
Às vésperas do segundo turno das eleições de 2014, um prócer da elite antidemocrática deu a senha do que viria a seguir. Repetiu em sua conta no Twitter4 a célebre frase de Carlos Lacerda, referindo-se a Getúlio Vargas: “Não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar”.
Na verdade, a trama começou a ser tecida após as manifestações populares de 2013. Os oposicionistas foram sábios em “federalizar” a insatisfação popular contra a falência generalizada do sistema de representação política herdado do pacto conservador da transição para a democracia e as crônicas deficiências na oferta de serviços sociais, cuja responsabilidade é constitucionalmente compartilhada com governadores e prefeitos.
Em 2014, o “terrorismo” econômico encarregou-se de descontruir a gestão macroeconômica, com o objetivo de enfraquecer a candidatura oficial. A vitória da situação poderia representar mais doze anos de governo do Partido dos Trabalhadores. O fantasma de Lula em 2018 voltava a assustar, sendo imperativo vencer o pleito eleitoral. Economistas liberais, setores do mercado e a grande imprensa passaram a atribuir a perda do dinamismo econômico exclusivamente aos “excessos da intervenção” estatal, olvidando por completo a grave crise do capitalismo global em decorrência da debaclefinanceira de 2008 e seus desdobramentos. Na realidade, apesar de apresentar certa deterioração de alguns indicadores, o Brasil não apresentava, em nenhum aspecto considerado, um cenário de “crise terminal”, como foi difundido.5
Apesar das manobras, Dilma Rousseff venceu e tomou posse. Urgia, então, impedir a continuidade do governo ou sangrá-lo até as próximas eleições, para destruir o legado social dos governos petistas e ampliar a insatisfação popular dos mais pobres e das camadas médias, requisitos para fomentar as ações desestabilizadoras no front político-institucional. Esse ato foi encenado logo após outubro de 2014 e ao longo de 2015, paradoxalmente, contando com a ajuda do próprio governo, que adotou o programa econômico dos derrotados. O ato final poderá ser consumado nos próximos dias.
O Plano Temer
Em meados de 2015, em meio às tramas golpistas e antidemocráticas, o vice-presidente da República, Michel Temer, lançou seu programa de governo (“Uma Ponte para o Futuro”)6 e passou a montar o novo gabinete. O documento, que radicaliza e aprofunda o projeto liberal para o Brasil, propõe a “formação de uma maioria política, mesmo que transitória ou circunstancial”, em torno das propostas apresentadas. Contando com a colaboração de diversos economistas liberais, a iniciativa recebeu amplo apoio de parlamentares de diversos partidos da oposição, empresários e setores da mídia.
Num contexto em que a democracia poderá já ter sido violentada, a gestão macroeconômica será ainda mais ortodoxa. Armínio Fraga, um dos mentores da política econômica do “Programa Temer”, foi o coordenador do programa econômico de Aécio Neves em 2014. Naquela época, receitava “a defesa da volta do tripé como fio condutor da política econômica”, bem como a necessidade de reduzir a meta de inflação dos atuais 4,5%, um forte ajuste fiscal, a redução do intervencionismo do governo, a recuperação do câmbio flutuante para recompor o tripé e a autonomia jurídica do Banco Central.7 Recentemente, afirmou que “o Brasil precisa é de um ajuste enorme”, muito superior ao realizado na primeira administração Lula e pelo ministro Joaquim Levy. “Deveríamos ter uma meta de redução de 25 pontos percentuais do PIB da dívida bruta em alguns anos. E também deveríamos dobrar o grau de abertura em certo horizonte de tempo. São objetivos factíveis”, afirmou. Além disso, serão necessárias “reformas amplas e profundas”, com destaque para a reforma da Previdência e a desvinculação dos ajustes em relação ao salário mínimo e das fontes de financiamento das políticas sociais. “Nosso orçamento deveria ser 100% desvinculado, desindexado, forçando uma reflexão do Estado que queremos e podemos ter. Uma espécie de orçamento de base zero.”8
O aprofundamento das políticas econômicas de “austeridade” requer a radical supressão de direitos sociais e trabalhistas. Nesse caso, um dos focos é acabar com a cidadania social conquistada pela Constituição de 1988, marco do processo civilizatório brasileiro. Abre-se uma nova oportunidade para que esses setores concluam o serviço que vêm tentando fazer desde a Assembleia Nacional Constituinte.
A surrada tese ideológica do “país ingovernável” – sacada pelo então presidente José Sarney (1985-1990), num último gesto desesperado para evitar que a cidadania social fosse incluída na Carta Magna – voltou a ditar o rumo do debate imposto pelos representantes do mercado que conseguiram criar o “consenso” de que estabilizar a dinâmica da dívida pública requer a mudança no “contrato social da redemocratização”. Argumentam que os gastos “obrigatórios” (Previdência Social, assistência social, saúde, educação, seguro-desemprego, entre outros) têm crescido num ritmo que compromete as metas fiscais. Para eles, a crise atual decorre fundamentalmente da trajetória “insustentável” de aumento dos gastos públicos desde 1993, por conta dos direitos sociais consagrados pela Carta de 1988.9 Argumentam ainda que os juros elevados praticados no Brasil decorrem da “baixa poupança” do governo. Esta, por sua vez, é fruto da existência de “sociedades que provêm Estado de bem-estar social generoso com diversos mecanismos públicos de mitigação de riscos”.10A visão de que “o Estado brasileiro não cabe no PIB” também tem sido sentenciada por diversos representantes desse matiz.11
Em consonância com o “Plano Temer”, levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) aponta que tramitam no Congresso Nacional 55 projetos de lei e propostas de emenda constitucional que suprimem direitos sociais e trabalhistas, reduzem o papel do Estado e aprofundam mecanismos de controle fiscal.12
Depois do golpe
Faz parte da narrativa dos oposicionistas que, após o impeachment, haverá uma trégua política, condição necessária para a reorganização da economia. Difícil acreditar nessa possibilidade. Em primeiro lugar, porque falta legitimidade aos que serão “eleitos” pela manobra. Falta, sobretudo, legitimidade ética, pois praticamente todos os futuros mandatários da República – a começar pelo presidente da Câmara dos Deputados e o do Senado Federal, o aspirante a presidente da República, a maioria de seus apoiadores, grande parte dos parlamentares que integram a comissão de impeachment e aqueles que decidirão pela cassação no plenário – parecem estar envolvidos com algum “malfeito” no uso do dinheiro público. Em segundo lugar, as elites financeiras, políticas e midiáticas erram ao pressupor que a sociedade brasileira no século XXI é a mesma de meados do século passado. Ledo engano. Não somos mais um país agrário com uma sociedade politicamente desorganizada. Portanto, como aponta Safatle, a crença na trégua pós-impeachmenté falsa,“e os operadores do próximo Estado Oligárquico de Direito sabem disto muito bem”.13
O mais provável é o acirramento dos ânimos, da intolerância, da fratura ainda maior da sociedade e da luta de classes que está nas ruas. A governabilidade do país poderá depender de um Estado policial ainda mais severo que o utilizado em 1964. Agora, não basta intervir nos sindicatos.
O impeachment do processo civilizatório em pleno século XXI aí está, como que para comprovar que a democracia e a cidadania social são pontos fora da curva do capitalismo brasileiro. São corpos estranhos que os “capitalistas” nacionais ainda não aprenderam a usar, nem sequer em benefício de si mesmos.
* – Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).
1 Ver: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,politicas-de-igualdade-racial-fracassaram-no-brasil–afirma-onu,10000021133
2 http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf
3 Maria Aparecida de Aquino, “Elite golpista e antidemocrática”, Brasil de Fato, 1º abr. 2015. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/31711
4 Ver em: https://twitter.com/jose_anibal/status/524697787116830721?lang=pt
5 Ver: http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2015/09/porumbrasiljustoedemocratico-vol-01.pdf>, p.18-39
6 Disponível em: http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf
7 Ver em: http://www.valor.com.br/eleicoes2014/3662186/conselheiros-de-aecio-e-marina-convergem-em-politica-economica
8 Ver em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,arminio-fraga-diz-que-ajuste-fiscal-atual-e-insuficiente,1795807
9 Ver: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/226576-ajuste-inevitavel.shtml
10 Ver: http://www.valor.com.br/arquivo/893219/duas-rotas-que-levam-reducao-da-taxa-de-juros
11 Ver: http://www.evernote.com/shard/s161/sh/fde65c1a-acd6-4b37-ab0f-603e9520f872/af64f4a075b1e39f0a682017402bb7d8
12 Ver: http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2016/03/levantamento-do-diapmostra-55-ameacas-a-direitos-em-tramitacao-no-congresso-8382.html
13 Ver: http://www.viomundo.com.br/politica/vladimir-safatle-congresso-gangsterizado-nao-tem-legitimidade-para-julgar-sequer-sindico-de-predio.html

Neoliberalismo, despolitização e des-democratização

Para a autora, Tatiana Roque, o neoliberalismo não é, somente, a simples orientação de determinado modelo econômico pautado exclusivamente pelas regras do mercado.

Trata-se, na verdade, de algo mais amplo, de uma racionalidade política que implica em um tipo pré-formatado de organização social (decisões tomadas somente no topo da pirâmide social) e  um modelo de Estado (mínimo, omisso, ativo somente para promover os privilégios de classe).

O neoliberalismo, da forma definida no texto, implica desativação de uma série de princípios que regem a democracia liberal. A autora cita estes fundamentos em seu texto.

A atual desativação dos fundamentos da democracia ocorre em um ambiente social degradado e de desencanto com a participação política.

Uma das referências bibliográficas mencionadas no texto é o artigo de Wendy Brown, intitulado “American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization”. Isto revela que o fenômeno da despolitização e das consequentes des-democratização e desmonte das conquistas civilizatórias não se limita ao Brasil. É um tsunami, pelo poder de destruição de vidas, global.

Para mim está claro que o principal erro do cidadão é o seu crescente desinteresse pela esfera pública, a desvalorização do bem público e o desprezo pela ordem jurídica.

A despolitização  é a principal razão da crise política e não, como muitos pensam, sua solução. Cidadãos despolitizados escolhem maus políticos. Os maus políticos, praticando a baixa política, retroalimentam a despolitização, levando à crise que vemos em todos os quadrantes do mundo atual.

A democracia representativa requer, para ser minimamente funcional, de eleitores bem informados e conscientes, ou seja, de eleitores politizados, para além das consciências superficiais formatadas.

A alta política é importante demais para ser deixada exclusivamente nas mãos de representantes mal-intencionados e para ser encarada como um fardo ou obrigação enfadonha.

Paulo Martins

Leia o texto a seguir:

Hoje, evitar o impeachment. Mas em seguida, inventar lógicas que recuperem a política como projeto coletivo, resgatem a esfera pública e reabilitem a potência da ação coletiva

Por Tatiana Roque, publicado em outraspalavras.net

Defender a democracia. Esse é o mote que tem reunido ações de diferentes correntes político-partidárias. Há um sentimento de que há algo em risco, algo bem maior que o governo. Mas parece exagero pensar, por outro lado, que uma ditadura nos espreita, nem mesmo um projeto coordenado de usar meios autoritários que ameacem a liberdade do cidadão comum. A percepção de que a democracia está fragilizada é real, mas, ao invés de representar um retorno ao passado, pode ser explicada por uma compreensão aguda da atual fase do capitalismo neoliberal. Lembremos que, no pedido de impeachment, o suposto crime de responsabilidade seria um desrespeito à austeridade fiscal. Ou seja, se julgado procedente, representará uma criminalização da política econômica.

O neoliberalismo está muito além, contudo, de uma orientação da economia. Trata-se de uma racionalidade política que envolve um tipo preciso de organização social, um modelo de Estado e mecanismos eficazes de produção de subjetividade. Práticas de governança, nos termos de Foucault, que se traduzem como uma razão política normativa que abarca muitos campos para além daqueles ligados ao mercado.

Entendido desse modo, o neoliberalismo implica uma desativação de diversos princípios que regem a democracia liberal. Só para dar alguns exemplos de fenômenos em curso:

  • suspensão da separação entre esfera pública e esfera privada;
  • tratamento de opções políticas como ofertas concorrentes que o cidadão-consumidor deve escolher;

  • conformação da ação pública aos critérios da produtividade e da rentabilidade;

  • exacerbação dos poderes de polícia, que deixa de estar submetida a qualquer controle;

  • desvalorização simbólica da lei, considerada mais tática do que princípio, com consequente fragilização do sistema jurídico;

  • confusão entre as esferas política e econômica;

  • centralidade dos temas da gestão para a avaliação da boa governança.

A democracia liberal, diante desse quadro, segue operando como esfera política ideal, mas perde sua face normativa. Wendy Brown1 chega a denominar des-democratização a desativação atual de fundamentos como: igualdade, universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania, regras ditadas pela lei e imprensa livre. Pierre Dardot e Christian Laval2 ressaltam que o neoliberalismo é distinto do liberalismo clássico justamente pela função proeminente do Estado que deve, ao mesmo tempo, construir o mercado e se construir segundo as normas do mercado. As leis do mercado deixam de ser concebidas, portanto, como leis naturais e cabe ao Estado garantir o bom funcionamento da concorrência. Seu papel é deslocado, assim, da esfera da justiça e das garantias ao cidadão para a esfera da gestão, cuja função é gerar um ambiente propício para a ação das empresas. A partir dessa lógica, podemos entender que seja mais importante respeitar a meta fiscal do que garantir o pagamento dos programas sociais, ou o financiamento da universidade pública. A lei adquire um papel tático que pode ser flexibilizado em prol da performance: uma legalidade de resultados.

Essas mudanças impõem-se gradativamente em um ambiente social degradado, em um mundo no qual a participação política é percebida como inócua: só nos resta cuidar de nossas vidas, pois a ação coletiva não tem consequência e não dá retorno algum. O indivíduo deve ser empresário de si, ficando responsável pela sua sorte, pelo investimento em si mesmo, como um capital que deve render frutos, mantendo-se produtivo e empregável. Além disso, a racionalidade liberal responsabiliza o indivíduo pela solução de problemas tipicamente sociais, como educação e saúde. Como consequência, os direitos do cidadão seguem cada vez uma lógica de direitos do consumidor.

Compreende-se, assim, o esvaziamento da política: o desinteresse do cidadão pela esfera pública, a desvalorização do bem público e da ordem jurídica. No momento em que vivemos, a dissolução da democracia corresponde ao esgotamento desses pressupostos. Mais do que o risco de qualquer regime autoritário, estamos diante de uma indiferenciação dos regimes políticos: não importam os partidos, não importam os governos, as práticas de gestão e as políticas de austeridade serão as mesmas.

Diante da dificuldade desse quadro, a esquerda se vê frequentemente na posição desconfortável de defender um regime em declínio. Defender a democracia liberal é o que temos para hoje, mas depois de amanhã precisaremos de diagnósticos mais eficazes. O desafio é inventar racionalidades políticas à altura do que o neoliberalismo tem de inédito e, sobretudo, do que tem de operacional em todas as esferas da existência.

1 Wendy Brown, “American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization”. Political Theory, Vol. 34, No. 6, 2006, pp. 690-714.

2 Christian Laval ePierre Dardot, A nova razão do mundo: Ensaios sobre a sociedade neoliberal. Boitempo Editorial, Coleção Estado de Sítio, 2016.

O primeiro passo exige humildade (revisão # 1)

Com a implementação do golpe e a posse de um presidente usurpador, o post abaixo, escrito antes da consumação do golpe, ficou velho. Não dá para esperar nada de uma oposição, agora governo usurpador, que não se importa com a democracia, com o respeito ao resultado das urnas. Eles não estão preocupados sobre o que vai acontecer com o país. Só não querem que nós chamemos o golpe de golpe. Estão obcecados pelo poder e sua aposta no quanto pior, melhor, deu seus fruto. Mas vai se voltar contra eles. Destruíram o país e não terão condições de consertá-lo. São arrogantes e têm muita pressa. Enquanto não estuprarem o que restou da Constituição de 1988 estes estupradores não pararão. Não vejo possibilidade de qualquer conciliação. Resta-nos a luta diária, nas ruas, nos meios de comunicação, onde for possível.

Paulo Martins

Kennedy Alencar faz, mais uma vez, em seu blog, um apelo ao bom senso.

Declara-se contra a tese de novas eleições fora do calendário eleitoral e também contra a convocação de novas eleições gerais. Prefere que as soluções sejam encontradas dentro do que a Constituição Federal já prevê. Entendo que Kennedy Alencar não é favorável à solução artificial de emenda da Constituição Federal neste momento. Eu também sou contra. No meio do incêndio a primeira providência é apagar o fogo e salvar as eventuais vítimas. Decisões de curtíssimo prazo, emergenciais, não darão certo. Não se coloca remendos na Constituição de forma açodada, de “cambulhada”, como diz o ministro Marco Aurélio Mello.

Primeiro a emergência, depois a reforma política. Porque esta, a reforma política, é necessária, mas não há tempo hábil para resolver a atual crise política com uma reforma abrangente.  E, ainda mais importante, incendiários e incendiados não conseguirão a calma e o equilíbrio necessários para fazer uma reforma política enquanto o circo pega fogo.

Discordo de alguns pontos do artigo do Kennedy Alencar, especialmente quando ele diz ser um absurdo o ex-presidente Lula afirmar que Temer deveria chegar ao Planalto pelo caminho correto, mediante eleições. Para completar Kennedy especula que isto foi uma provocação de Lula para que o vice-presidente entre no ringue publicamente. Discordo. Acho que Kennedy tirou a frase de seu contexto e deu outro sentido à fala do ex-presidente. Observando o contexto todo da fala do ex-presidente e da disputa política em curso, minha humilde interpretação é  que Lula se referia aos conchavos da oposição com parte do PMDB de Cunha + Temer para derrubar a presidente em exercício e colocar Temer em seu lugar. Acho que Lula se referia à tentativa de impedimento sem crime de responsabilidade.

Para mim, a afirmativa de Kennedy Alencar de que “é preciso interromper essa escalada de intolerância e de incitação ao ódio no debate público” é óbvia. O grande problema é como fazê-la.

Kennedy afirma também que “os líderes políticos … não podem semear a barbárie”.

O artigo do Kennedy deflagrou uma série de comentários de seus leitores cada um imputando a culpa ao outro lado. Uns recuaram aos anos 80/90. Daqui a pouco, para sermos precisos, vamos ter que recuar a 1500. Essa discussão, talvez necessária, não trará a solução de curtíssimo prazo que precisamos. Mas deve ser feita. Se a nação está no divã do analista, deixe-a falar.

Até surtos e desabafos podem ser absorvidos, desde que não atinjam a integridade física do analista, da assistência e dos demais pacientes.

Acho que o primeiro passo seria o candidato Aécio descer do palanque, subir à tribuna do Senado e, com apenas umas poucas frases, “abjurar” sua declaração de guerra do dia 04/11/2014. Não precisa nem pedir desculpas. Basta conclamar o país ao entendimento e à serenidade.

E a Lava-Jato? Que seja legalizada. Que opere com equidade. Que não seja seletiva e direcionada a objetivos escusos. Que faça Justiça. E que produza efeitos somente nos casos de comprovada legalidade.

Depois, os políticos responsáveis, se ainda restarem alguns,  tentariam chegar a um acordo político (reforma ?) – Uma Ponte Para a Convivência Respeitosa – para levar o país, SÃO, às eleições de 2018.

Leia, abaixo, a íntegra do texto do Kennedy Alencar:

Política
05-04-2016, 9h17
É estapafúrdia tese de nova eleição fora do calendário
O melhor caminho é o Brasil seguir o que já prevê a Constituição
63
KENNEDY ALENCAR
BRASÍLIA

É estapafúrdia a realização de nova eleição presidencial fora do calendário tradicional, como defende um bloco de senadores do PSB, PPS e Rede e Valdir Raupp (PMDB-RO). Também seria péssimo convocar eleições gerais, como pregam alguns políticos. Essas duas ideias criariam fatos excepcionais em relação à saudável rotina institucional.

O Brasil tem de encontrar saídas dentro do que a Constituição atual já prevê. Portanto, vale o impeachment. Mas impedimento demanda crime de responsabilidade. Se tiver crime de responsabilidade, está valendo. Se não tiver, não está valendo.

O vice-presidente da República, Michel Temer, tem legitimidade para assumir em caso de impedimento de Dilma. É um absurdo dizer, como afirmou ontem o ex-presidente Lula, que Temer deveria disputar eleição para chegar ao Palácio do Planalto. Temer disputou votos ao lado de Dilma. Foi uma provocação para o vice-presidente entrar no ringue publicamente.

Ora, Lula e o PT fizeram uma aliança com o PMDB para obter tempo de propaganda na TV e no rádio, palanques regionais fortes e apoio no Congresso. Essa aliança trouxe votos na apertada eleição de 2014. Logo, o PMDB ajudou o PT a conquistar o poder. Se Temer é companheiro de chapa, pode assumir, sim, em caso de impeachment da presidente.

Essa tese de que Dilma e Temer têm de renunciar é puro direito de liberdade de opinião. Não são obrigados a aceitar. Renúncia presidencial é atitude de foro íntimo que a pessoa adota se achar que é a melhor coisa para o país numa determinada conjuntura. Quem não é presidente e vice pode manifestar sua opinião sobre isso, mas quem decide são Dilma e Temer, constitucionalmente eleitos.

Pedir ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que casse a chapa Dilma-Temer para que haja novas eleições presidenciais também é o exercício de liberdade de opinião que existe numa democracia. Só que as provas têm de ser produzidas.

Até agora, há acusações contra Dilma na delação do senador Delcídio do Amaral, mas essa colaboração premiada sozinha não prova nada. É preciso que o procurador-geral da República peça investigação e que o Supremo aceite abrir inquérito contra a presidente. O mesmo vale para rumores sobre acordos de delações em curso que poderão apontar caixa dois na campanha eleitoral de 2014.

Se houver prova, que se casse. Enquanto não há prova, falar em nova eleição é um direito de liberdade de expressão de políticos, empresários, sindicalistas, jornalistas e dos cidadãos. Mas o melhor que o Brasil tem a fazer é seguir o que já está escrito na Constituição.

*

Escalada perigosa

Além da destruição de empregos e renda, que vem piorando a vida das pessoas e das empresas, a pior herança que a crise atual poderá deixar será envenenar, por alguns anos, a disputa político-eleitoral e instaurar a intolerância como regra no debate público em geral.

Tem sido nefasta para o país essa escalada de agressividade, de ameaças de todos os lados, de guerra sem quartel que está deixando terra arrasada na economia.

Na semana passada, o ministro Edinho Silva, da Secom (Secretaria de Comunicação Social), fez corretamente um apelo à tolerância em relação a divergências de opinião. No dia seguinte, sofreu ameaça de morte no Facebook. O ministro da Justiça, Eugênio Aragão, age bem ao investigar esse tipo de ataque.

Em atos contra o governo, são frequentes cenas de pessoas que defendem pendurar e enforcar Dilma e Lula num poste. Ontem, num ato em São Paulo, a advogado Janaína Paschoal, uma das autoras do atual pedido de impeachment, fez um discurso em tom exaltado, para ser descrito com moderação, e falou que “acabou a república da cobra”. Nas redes sociais, houve estímulo para que manifestantes fossem incomodar o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, e seus parentes em suas residências.

Numa cerimônia oficial na última sexta, dentro do Palácio do Planalto, líderes de movimentos sociais falaram em ocupar fazendas e infernizar deputados pró-impeachment em suas casas. Dilma viu que haviam passado do limite e pediu tolerância, mas, em seguida, recorreu ao discurso do “nós contra eles”, que aposta na divisão do país.

Dilma afirmou: “Não defendemos a violência, mas eles defendem. Eles exercem a violência”. É uma declaração que não combina com o figurino presidencial.

A oposição, especialmente o PSDB e o DEM, ajudou a tocar fogo no país e alimentou o rancor de parcela da população contra o PT. Com irresponsabilidade fiscal, votou no Congresso contrariando o que defendia quando estava no poder. Alguns também estão sob suspeita de corrupção e agora correm o risco de serem tragados pela demonização da política que ajudaram a cultivar.

Em resumo, com raras exceções, a classe política já não se contenta em empurrar o Brasil para o buraco. Quer esfaqueá-lo para ter certeza de que ele vai morrer antes de se esborrachar no chão. Assim, o país que trilhava o caminho civilizatório, vai pegando um atalho rumo à barbárie.

Claro que isso vai piorar o Brasil e a vida dos seus cidadãos, sobretudo dos mais pobres. É preciso interromper essa escalada de intolerância e de incitação ao ódio no debate público.

Os líderes políticos do país precisam se comportar com mais serenidade e responsabilidade em geral e especialmente nas próximas duas semanas, durante a guerra do impeachment. Não podem semear a barbárie. Protestos fazem parte da democracia, mas devem ser caminhos para mais civilização. Não o contrário.

Vídeo: Defesa da presidente Dilma na Comissão do Impeachment

Apresentamos, a seguir, o link para o vídeo com a defesa da presidente Dilma apresentada pelo seu advogado, José Eduardo Cardoso, na Comissão do Impeachment:

http://youtu.be/PhhQl0MgZKk

Trata-se, no meu modo de ver, de um documento histórico e de consulta obrigatória para todos os que pretendem, de espírito desarmado e coração puro, entender o processo em andamento.

Com uma consulta, fria, desapaixonada e atenta, espero que todas as pessoas de boa vontade entenderão as razões pelas quais argumentamos, todos os defensores da democracia alicerçada no estado democrático de direito, que este processo de interrupção do mandato da presidente é irresponsável e nulo de pleno direito.

Todos têm o direito de escolher seu clube de futebol, sua cor preferida, sua religião e seu credo político, desde que não ofendam um princípio básico da convivência em sociedade: o direito de um termina onde começa o direito do seu vizinho, mesmo se você for o mais poderoso indivíduo na face da terra e seu vizinho o mais humilde cidadão.

Se alguém pretende que a honestidade e a ética prevaleçam como norteadoras da vida civil e no trato dos assuntos de Estado e de Governo, comece pelo seu próprio comportamento exemplar.

Para que a serenidade e o bom senso prevaleçam, comece ouvindo com atenção e ouvidos limpos os argumentos do seu vizinho.

A peça de defesa está bem organizada, clara e muito didática, mas requer atenção para entendimento tendo em vista os diversos conceitos jurídico-constitucionais apresentados. Para entendimento de todo o seu conteúdo ela requer, a bem da verdade, conhecimentos jurídicos. Nada que um aluno do terceiro ano de uma boa faculdade de direito não possa entender bem. Mas o cidadão com espírito desarmado e coração puro que tem acompanhado este processo e tem um mínimo de conhecimento dos princípios constitucionais que regem a vida em sociedade, também poderá entender esta manifestação do advogado, Dr. Cardoso, em defesa da Sra. presidente da república.

Atropelar leis democraticamente estabelecidas e legítimas é o caminho mais rápido para a barbárie.

Eu gostaria de ler seus comentários e argumentos, contrários ou favoráveis. Se você continuou com dúvidas, favor informar qual parte da peça de defesa precisa de esclarecimento. Se eu puder esclarecer, tentarei fazê-lo.

Paulo Martins

FIESP – Flexibilização das leis trabalhistas: 15 minutos para almoçar!

O empregado pode, por exemplo, almoçar em 15 minutos. Ele não precisa de uma hora para almoçar. Pode comer um sanduíche com a mão esquerda e operar a máquina com a mão direita.

Assista abaixo as declarações dos patrocinadores do pato de Tróia, presidente e diretor da FIESP, que confessam os objetivos da lei da terceirização e os motivos de seu apoio ao golpe de Cunha e Temer.

https://www.facebook.com/1225936481/videos/10209102124330010/

O QUE NOS UNE ?

Para discussão.

Publicado em O Cafezinho.

O que podemos esperar, caso vença o impeachment? Além do cerceamento do amplo direito à expressão e organização; a formação de amplas maiorias no Congresso com o objetivo de promover a desconstitucionalização dos direitos sociais e trabalhistas; e a recuperação da agenda das reformas liberalizantes e desnacionalizantes

por Alexandre de Freitas Barbosa, no Le Monde Diplomatique Brasil

O país encontra-se numa encruzilhada. Enquanto amplos setores da sociedade se organizam e tomam as ruas, as cúpulas dos três poderes estabelecem conchavos, buscando um desfecho que seja de seu agrado. Por ora, elas oscilam num movimento pendular entre os dois campos em disputa. O desfecho, qualquer que seja ele, não será imediato e trará sequelas profundas.

Parece evidente que a nova modalidade de golpe está em curso, promovido por uma parte da Justiça (que se crê acima do Estado e das prerrogativas legais), um Legislativo que há muito atua como balcão de favores e uma grande imprensa que apela para o tudo ou nada. O seu objetivo é conquistar o poder, sem passar pelo crivo das urnas, e depois distribuir o butim.

Para grande parte dos que vão às ruas em busca do impeachment, o butim – para além de preservar a posição social que julgam ameaçada – se resumirá aos ganhos simbólicos de viver em um país “livre” e “sem corrupção”. Poderão viver suas vidas privadas e dessocializadas em paz, pois a guerra se fará contra os outros e será travada fora do país em que habitam e trafegam.

O que podemos esperar, caso eles ganhem a parada? Além do cerceamento do amplo direito à expressão e organização; a formação de amplas maiorias no Congresso com o objetivo de promover a desconstitucionalização dos direitos sociais e trabalhistas; e a recuperação da agenda das reformas liberalizantes e desnacionalizantes que FHC não conseguiu viabilizar.

Seria uma espécie de “terceiro FHC”, mas agora disposto a criminalizar as lideranças progressistas do país (algo que o sociólogo presidente não fez nos seus dois governos, é importante lembrar), transformadas todas elas pejorativamente em “petistas”. Em suma, restrições à democracia e à diversidade de manifestações políticas, sociais e culturais, expansão da desigualdade, enfraquecimento do mercado interno e maior suscetibilidade às crises externas.

A senha para o avanço do golpe foi a criminalização de Lula a todo o custo e sem provas suficientes. Era preciso desmontar o mito do trabalhador que chegou ao poder e “fez melhor que todos eles”, quando “nunca se ganhou tanto dinheiro no Brasil”, e “nunca o pobre teve tantos direitos, possibilidades de ascensão social e autoestima”.

Esse discurso “lulista” era, até há pouco tempo, e mesmo no auge da crise econômica, imbatível. Não importa se é correto ou não. Ele tem apelo e tem voto, inclusive do poder econômico. Uma espécie de nacionalismo dos de baixo, mas que reserva lugar de destaque ao grande capital. No aspecto retórico, o discurso de Lula representa uma inovação com relação ao de Vargas, ao colocar o povo e os poderosos em pé de igualdade. É fruto de outro contexto histórico, de suas possibilidades e desafios. Mas também de suas contradições.

O plano golpista está traçado. E o nosso? Nós, quem? Quem somos? Para ampliar o campo da esquerda, de modo a incluir os que, no atual momento, se opõem ao golpe e aos seus efeitos nefastos, prefiro referir-me ao amplo segmento composto pelas forças progressistas da nação. Este campo – chamado pelo outro lado de “petista”, mas que hoje possui um contingente importante que, se votou, não vota mais no PT – expressa muito melhor a diversidade da estrutura social e da vida intelectual do país do que o formado pelos que mal podem esperar pelo momento do butim.

Sejamos francos. A única coisa que nos une é o respeito ao Estado democrático de direito que, no atual contexto, de crise econômica e esfacelamento do sistema político, significa também defesa do status quo. Isso porque, caso Lula volte à cena como quadro importante do governo e o impeachment seja detido, voltará como o “Lulinha paz e amor”, como ele mesmo antecipou no discurso da avenida paulista. Nada poderá ser feito de substantivo até 2018. O novo (velho) governo continuará bombardeado pela Lava Jato e o acordo – caso seja ainda viável – a ser costurado com banqueiros, empresários, pemedebistas etc. significará concessões de monta. Lula no governo, em nome da base que o apoia, conseguirá postergar a reforma da previdência e manter os direitos trabalhistas e sociais. Ponto.

Quer dizer que estamos lutando para isso? Não, nós estamos lutando para que a democracia, apesar dos seus defeitos, seja mantida e inclusive aperfeiçoada no futuro. Para que os movimentos sociais continuem tendo voz, poder e direitos. E para assegurar um mínimo de racionalidade ao final do mandato da presidenta Dilma, condição imprescindível para se recuperar o crescimento econômico e a confiança no país. O não retrocesso hoje é a grande meta. Não podemos negar que em termos de padrão de sociedade, apesar da grave crise econômica e da recente polarização política e social, estamos bem melhor do que estávamos nas últimas décadas do século XX.

Trata-se de uma posição pragmática como exige o momento. Os grupos da extrema esquerda estão inclusive desnorteados, pois Moro virou o subversivo – tirou o lugar deles -, usando de estratagemas para alterar o status quo que devem causar inveja a muitos dos nossos “revolucionários”.

Devemos, então, abrir mão da utopia? Não, a utopia deve começar a ser construída desde já. Primeiro, temos que criar uma narrativa própria sobre os avanços obtidos nos últimos anos e sobre a nossa incapacidade para gestar um projeto de desenvolvimento do país. Este nunca foi explicitamente colocado na mesa e discutido com a sociedade e os vários segmentos que a compõem nem nos governos de Lula.

Lembremos que a candidata Dilma sequer apresentou um programa à nação nas eleições passadas. Ela foi eleita com base nos efeitos tardios do lulismo, ancorado, aliás, em conquistas objetivas e subjetivas. Só sendo cego, para não percebê-las. Ou então tendo dois olhos e muito preconceito no coração.

A volta de Lula é a última tentativa de por o governo nos trilhos e de recuperar a base de apoio para se deter o impeachment. Poderá – se houver tempo e condições para tanto – acalmar os “mercados”, ganhar os votos do PMDB e de outros partidos que já flertam com o golpe e deslanchar alguns projetos de impacto social e simbólico. Mas não governará com a esquerda e para os movimentos sociais. Lula sabe melhor do que ninguém o poder dos que estão contra ele e Dilma, e o que é preciso para trazê-los “de volta”. Não se pode também descartar a hipótese de que as contradições anestesiadas durante os dois mandatos do operário presidente – a sua criatura – possam se voltar com toda força contra o seu criador.

Mas é preciso reconhecer que o nosso campo ficou refém do mito Lula. Quando eu gritava “Lula-lá”, na avenida paulista, no dia 18 de março, algo me dizia que eu estava mais ressuscitando o meu passado do que vivenciando algo capaz de se transformar em perspectiva de futuro. Como vamos construir uma nova utopia e um projeto de nação, algo que os governos do PT apenas esboçaram – mais preocupados que estavam em manter o poder, inclusive, fazendo uso de métodos ilícitos, e por isso, deploráveis? Isso é o que importa no presente momento.

Se conseguirmos deter o golpe, teremos que pressionar o novo (velho) governo para manter e ampliar as suas conquistas do passado. Porém, lembremos que as demandas de nossos adversários de dentro do governo serão muitas e, provavelmente, mais prontamente aceitas do que as nossas.

Portanto, é imperioso que construamos uma alternativa viável de longo prazo para as “nossas” reformas, mirando para além das eleições de 2018, e aproveitando o “coletivo” social formado contra o golpe. Não podemos mais ficar reféns do mito Lula. Precisamos ir além. Há quanto tempo não discutimos o Brasil que de fato queremos a partir das nossas possibilidades e potencialidades, sem fazer uso de slogans de campanha fabricados por marqueteiros milionários e sem acionar a nossa interminável ladainha sobre os pecados do neoliberalismo?

Alexandre de Freitas Barbosa é Professor de História Econômica e de Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP)

Canção do amor armado – Thiago de Mello

16/10/2018

Estou passando para atualizar este post. O texto anterior foi escrito antes do golpe que derrubou Dilma Rousseff da presidência do Brasil e jogou o país neste caos. Era um mensagem de esperança, por isso parecia tão deslocada no tempo, tão utópica, tão lunática. Eu não contava com as astúcias da Besta bíblica e dos bestificados. Eu fazia um juízo do ser humano muito melhor do que a realidade mostra. O humano morreu. Ressuscitá-lo vai dar um trabalhão …

Paulo Martins

Canção do amor armado – Thiago de Mello

Vinha a manhã no vento do verão,
e de repente aconteceu.
Melhor é não contar quem foi nem como foi,
porque outra história vem, que vai ficar.
Foi hoje e foi aqui, no chão da pátria,

onde o voto, secreto como o beijo
no começo do amor, é universal
como pássaro voando – sempre o voto
era um direito e era um dever sagrado.

De repente deixou de ser sagrado,
de repente deixou de ser direito,
de repente deixou de ser, o voto.
Deixou de ser completamente tudo.
Deixou de ser encontro e ser caminho,
Deixou de ser dever e de ser cívico,
Deixou de ser apaixonado e belo
e deixou de ser arma – de ser a arma,
porque o voto deixou de ser do povo.

Deixou de ser do povo e não sucede, e
não sucedeu nada, porém nada?

De repente não sucede.
Ninguém sabe nunca o tempo
que o povo tem de cantar.
Mas canta mesmo é no fim.

Só porque não tem mais voto,
o povo não é por isso
nem vai deixar de cantar,
nem vai deixar de ser povo.

Pode ter perdido o voto,
Que era a sua arma e poder.
Mas não perdeu seu dever
nem seu direito de povo,
que é o de ter sempre sua arma,
sempre ao alcance da mão.
De canto e de paz é o povo,
Quando tem arma que guarda
a alegria do seu pão.
Se não é mais a do voto,
que foi tirada à traição,
outra há de ser, e qual seja
não custa o povo a saber,
ninguém nunca sabe o tempo
que o povo tem de chegar.

O povo sabe, eu não sei.
Sei somente que é um dever,
somente sei que é um direito.
Agora sim que é sagrado:
Cada qual tenha sua arma
para quando a vez chegar
de defender, mais que a vida,
a canção dentro da vida,
para defender a chama
de liberdade acendida
no fundo do coração.

Cada qual que tenha a sua,
qualquer arma, nem que seja
algo assim leve e inocente
como este poema em que canta
voz de povo – um simples
canto
de amor.
Mas de amor armado.

Que é o mesmo amor. Só que agora
que não tem voto, amor canta
no tom que seja preciso
sempre que for na defesa
do seu direito de amar.

O povo, não é por isso
que vai deixar de cantar,

Rio, 6 de fevereiro, 1966