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A essência do neoliberalismo, por Pierre Bourdieu

A essência do neoliberalismo, por Pierre Bourdieu.
12/03/202
Os economistas têm suficientes interesses específicos para contribuir decisivamente para a produção e reprodução da crença na utopia neoliberal. Apartados do mundo econômico e social efetivo, participam e colaboram para o desmantelamento das instituições e dos coletivos, mesmo se algumas de suas consequências lhes causem horror

Por Pierre Bourdieu*

Seria o mundo econômico, verdadeiramente, tal como insiste o discurso dominante, uma ordem pura e perfeita, dispondo implacavelmente a lógica de suas consequências previsíveis e prestes a reprimir todos os seus desvios com sanções que inflige, seja de maneira automática, seja – com maior exceção – pelo intermédio de seus braços armados, o FMI ou a OCDE, e das políticas que eles impõem: diminuição do custo da força de trabalho, redução das despesas públicas e flexibilização do trabalho? E se, na verdade, não se tratasse apenas da colocação em prática de uma utopia, o neoliberalismo, assim convertido em “programa político”, mas uma utopia que, com a ajuda de sua teoria econômica, passa a pensar a si mesma como a descrição científica do real?

Esta teoria tutelar é uma obra de pura ficção matemática, fundada, desde o princípio, numa formidável abstração: essa que, em nome de uma concepção tão estreita como estrita da racionalidade identificada à racionalidade individual, consiste em pôr entre parêntesis as condições econômicas e sociais das disposições racionais e das estruturas econômicas e sociais que são a condição de seu exercício.

Para compreender o tamanho desta omissão, basta pensar no sistema de ensino, que nunca é considerado enquanto tal num momento em que possui um papel determinante na produção de bens e serviços, assim como na produção dos produtores. Deste pecado original, inscrito no mito walrasiano[i] da “teoria pura”, brotam todas as falhas e deficiências da disciplina econômica, e a fatal obstinação com a qual ela se apega à oposição arbitrária, que ela mesma faz existir, por sua própria existência, entre a lógica propriamente econômica, fundada na concorrência e portadora da eficiência, e a lógica social, submetida à regra da igualdade.

Dito isso, essa “teoria” originalmente dessocializada e deshistoricizada tem, hoje mais do que nunca, os meios de se fazer verdadeira, empiricamente verificável. Na verdade, o discurso neoliberal não é um discurso como os outros. À maneira do discurso psiquiátrico nos asilos, segundo Erving Goffman[ii], trata-se de um “discurso forte”, que só é tão forte e difícil de combater justamente porque tem a seu favor todas as forças de um mundo de relações de força que ele mesmo contribui para produzir enquanto tal, especialmente ao orientar as decisões econômicas daqueles que dominam as relações econômicas e, assim, somar sua força própria, propriamente simbólica, a estas relações de força. Em nome deste programa científico de conhecimento, convertido em programa político de ação, produz-se um imenso “trabalho político”(denegado, posto que, em aparência, é puramente negativo) que visa a criar as condições de realização e de funcionamento da “teoria”; um programa de destruição metódica dos coletivos.

O movimento, possibilitado pela política de desregulamentação financeira, em direção à utopia neoliberal de um mercado puro e perfeito, realiza-se através da ação transformadora e, é preciso dizer, destrutiva de todas as medidas políticas (das quais a mais recente é o Acordo Multilateral sobre o Investimento, destinado a proteger as empresas estrangeiras e seus investidores contra os Estados Nacionais), visando pôr em questão todas as estruturas coletivas capazes de se antepor à lógica do puro mercado: nação, cuja margem de manobra não para de diminuir; grupos de trabalho, por exemplo, pela individualização dos assalariados e das carreiras em função das competências individuais e a atomização dos trabalhadores que resulta disso, sindicatos, associações, cooperativas; até mesmo a família, que, através da constituição dos mercados por agrupamentos etários, perde uma parcela de seu controle sobre o consumo.

O programa neoliberal, que obtém sua força social da força político-econômica daqueles cujos interesses exprime – acionistas, operadores financeiros, industriais, homens políticos conservadores ou socialdemocratas convertidos às reconfortantes renúncias do laisser-faire, altos funcionários das finanças (ainda mais árduos na imposição de uma política preconizando seu próprio declínio pois, diferentemente dos grandes empresários, não correm qualquer risco de ter de pagar pelas consequências) –, tende globalmente a favorecer a cisão entre a economia e as realidades sociais, e assim a construir, na realidade, um sistema econômico conformado à descrição teórica, isto é, uma espécie de máquina lógica que se apresenta como uma cadeia de restrições conduzindo os agentes econômicos.

A globalização dos mercados financeiros, acompanhada pelo progresso das técnicas de informação, garante uma mobilidade de capital sem precedentes e oferece aos investidores, preocupados com a rentabilidade de curto prazo de seus investimentos, a possibilidade de comparar de maneira permanente a rentabilidade das maiores empresas e de punir, por consequência, os fracassos relativos. As próprias empresas, colocadas sob tal ameaça permanente, devem se ajustar de maneira cada vez mais rápida às exigências dos mercados; isso sob a pena, como se costuma dizer, de “perder a confiança dos mercados”, e, de uma vez só, o apoio dos acionistas que, preocupados com obter uma rentabilidade de curto prazo, são cada vez mais capazes de impor sua vontade aos managers, de lhes fixar normas, por meio de diretrizes financeiras, e de orientar suas políticas em matéria de contratação, de emprego e de salário.

Assim se instauram o reino absoluto da flexibilidade, com os recrutamentos sob contratos de duração determinada ou os trabalhos temporários e os “planos sociais” reiterados, e, no interior mesmo da empresa, a concorrência entre filiais autônomas, entre equipes coagidas à polivalência e, enfim, entre indivíduos, por meio da “individualização” da relação salarial: fixação de objetivos individuais; entrevistas individuais de avaliação, avaliação permanente; altas individualizadas de salários ou concessão de bônus em função da competência e do mérito individuais; carreiras individualizadas; estratégias de “responsabilização” tendendo a assegurar a autoexploração de certos empresários que, simples assalariados sob forte dependência hierárquica, são ao mesmo tempo tidos como responsáveis por suas vendas, seus produtos, sua agência, sua loja, etc., sob a forma de “independentes”; exigência de “autocontrole” que estende a “implicação” dos assalariados, segundo as técnicas do “gerenciamento participativo”, para bem além do trabalho dos executivos. Estas são algumas das técnicas de assujeitamento racional que, ao impor o sobreinvestimento no trabalho, e não apenas naquele dos cargos de responsabilidade, e o trabalho na urgência, acabam por enfraquecer ou abolir as referências e as solidariedades coletivas[iii].

A instituição prática de um mundo darwiniano da luta de todos contra todos, em todos os níveis da hierarquia, que encontra a adesão ao trabalho e à empresa na insegurança, no sofrimento e no estresse, não poderia, sem dúvidas, ser completamente bem-sucedida se ela não encontrasse a cumplicidade das disposições precarizadas produzidas pela insegurança e pela existência, em todos os níveis da hierarquia, e mesmo nos níveis mais elevados, entre os empresários principalmente, de um exército de reserva de mão de obra docilizada pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego. O fundamento último de toda esta ordem econômica posta sob o signo da liberdade é, com efeito, a violência estrutural do desemprego, da precaridade e da ameaça de demissão que ela implica: a condição do funcionamento “harmonioso” do modelo microeconômico individualista é um fenômeno de massa, a existência do exército de reserva de desempregados.

Esta violência estrutural influi também no que chamamos de contrato de trabalho (reconhecidamente racionalizado e desrealizado na “teoria dos contratos”). O discurso empresarial nunca falou tanto de confiança, de cooperação, de lealdade e de cultura empresarial quanto em uma época em que se obtém a adesão a cada instante fazendo desaparecer todas as garantias temporais (três quartos dos contratos são de duração determinada, a parcela dos empregos precários não para de crescer, o licenciamento individual tende a não ser mais submetido a qualquer restrição).

Vemos, assim, como a utopia neoliberal tende a se incarnar na realidade de uma espécie de máquina infernal, cuja necessidade se impõe até mesmo aos dominantes. Como o marxismo de outros tempos, com o qual, neste sentido, ela tem vários pontos comuns, essa utopia suscita uma crença formidável, a free trade faith (a fé no livre comércio), não apenas naqueles que dela tiram suas justificações de existência, como os altos funcionários e os políticos, que sacralizam o poder dos mercados em nome da eficiência econômica, que exigem o levante das barreiras administrativas ou políticas capazes de incomodar os detentores de capital na procura puramente individual pela maximização do lucro individual, instituída em um modelo de racionalidade, que querem os bancos centrais independentes, que pregam a subordinação dos Estados nacionais às exigências da liberdade econômica pelos mestres da economia, com a supressão de todas as regulamentações em todos os mercados, a começar pelo mercado de trabalho, a interdição de déficits e de inflação, a privatização generalizada dos serviços públicos, a redução das despesas públicas e sociais.

Sem necessariamente compartilhar os interesses econômicos e sociais dos verdadeiros crentes, os economistas têm suficientes interesses específicos no campo da ciência econômica para contribuir decisivamente, quaisquer que sejam seus estados de espírito a propósito dos efeitos econômicos e sociais da utopia que vestem de razão matemática, para a produção e reprodução da crença na utopia neoliberal. Separados por toda sua existência e, sobretudo, por toda sua formação intelectual, na maioria das vezes puramente abstrata, livresca e teoricista, do mundo econômico e social tal como ele é, eles são particularmente propensos a confundir as coisas da lógica com a lógica das coisas.

Confiantes nos modelos que não têm quase nunca a chance de submeter à prova da verificação experimental, tidos a olhar por cima as conquistas das outras ciências históricas, nas quais eles não reconhecem a pureza e a transparência cristalina dos seus jogos matemáticos, e das quais eles são frequentemente incapazes de compreender a verdadeira necessidade e a profunda complexidade, eles participam e colaboram para uma formidável mudança econômica e social que, mesmo se algumas de suas consequências lhes causem horror (eles podem contribuir com o Partido socialista e dar sábios conselhos aos seus representantes nas instâncias de poder), não pode desagradá-los pois, sob o risco de algumas falhas, imputáveis particularmente ao que eles às vezes chamam de “bolhas especulativas”, ela tende a dar realidade à utopia ultraconsequente (como certas formas de loucura) à qual eles consagram suas vidas.

O mundo está aí, porém, com os efeitos imediatamente visíveis da colocação em prática da grande utopia neoliberal: não apenas a miséria de uma fração cada vez maior das sociedades mais avançadas economicamente, o crescimento extraordinário das diferenças entre os rendimentos, a desaparição progressiva dos universos autônomos de produção cultural, cinema, edição etc., pela imposição intrusiva de valores comerciais, mas também e sobretudo a destruição de todas as instâncias coletivas capazes de se opor aos efeitos da máquina infernal, das quais em primeiro lugar está o Estado, depositário de todos os valores universais associados à ideia de público, e a imposição, por toda parte, nas altas esferas da economia e do Estado, ou no seio das empresas, desta sorte de darwinismo moral que, com a cultura do winner, feita para os matemáticos superiores e para o salto a elástico, instaura como norma de todas as práticas a luta de todos contra todos e o cinismo.

Podemos esperar que a massa extraordinária de sofrimento que um tal regime político-econômico produz esteja, um dia, na base de um movimento capaz de interromper esta corrida em direção ao abismo? Na verdade, estamos aqui face a um extraordinário paradoxo: enquanto os obstáculos encontrados no caminho da realização da “nova ordem” – esta do indivíduo solitário, mas livre – são hoje tidos como imputáveis à rigidez e arcaísmos, e toda intervenção direta e consciente, ao menos desde que vinda do Estado, e por qualquer parcialidade que o seja, é de cara descreditada, portanto intimada a desaparecer em prol de um mecanismo puro e autônomo, o mercado (sobre o qual esquecemos que é também o lugar de exercício dos interesses); na realidade, é a permanência ou a sobrevivência das instituições e dos agentes da antiga ordem em vias de desmantelamento, e todo o trabalho de todas as categorias de trabalhadores sociais, e também todas as solidariedades sociais, familiares ou outras, que fazem com que a ordem social não se afunde no caos, apesar do volume crescente de população precarizada.

A passagem ao “liberalismo” se dá de maneira insensível, logo imperceptível, como a deriva dos continentes, escondendo assim seus efeitos, os mais terríveis no longo prazo. Efeitos que se encontram também dissimulados, paradoxalmente, pelas resistências que ela suscita, desde já, da parte daqueles que defendem a antiga ordem extraindo dos recursos que ela encobria, nas solidariedades antigas, nas reservas de capital social que protegem toda uma parte da ordem social presente da queda na anomia (capital que, se não é renovado, reproduz, é destinado ao enfraquecimento, mas cujo esgotamento não será para amanhã).

Mas estas mesmas forças de “conservação”, que são facilmente tratadas como forças conservadoras, são também, em outra relação, forças de resistência à instauração da nova ordem, que podem tornar-se forças subversivas. E se podemos, então, conservar qualquer esperança razoável, o que ainda existe, nas instituições estatais e também nas disposições dos agentes (especialmente os mais ligados a estas instituições, como a pequena nobreza de Estado), de tais forças que, sob a aparência de simplesmente defender, como criticaremos logo em seguida, uma ordem desaparecida e os “privilégios” correspondentes, devem, de fato, para resistir à prova, trabalhar na invenção e na construção de uma ordem social que não teria como lei única a procura do interesse egoísta e a paixão individual pelo lucro, e que daria lugar a coletividades orientadas à busca racional pelos fins coletivamente elaborados e aprovados.

Dentre os coletivos, associações, sindicatos, partidos, como não dar um lugar especial ao Estado, Estado nacional ou, melhor ainda, supranacional, isto é, europeu (etapa na direção de um Estado mundial), capaz de controlar e de impor eficazmente os lucros realizados nos mercados financeiros e, sobretudo, de combater a ação destrutiva que estes últimos exercem sobre o mercado de trabalho, organizando, com a ajuda dos sindicatos, a elaboração e a defesa do interesse público que, queira-se ou não, jamais sairá, mesmo ao custo de algum erro de escrita matemática, da visão de contador (em outro temos, diríamos de lojista) que a nova crença apresenta como a forma suprema da realização humana.

*Pierre Bourdieu (1930-2002), filósofo e sociólogo, foi professor na École de Sociologie du Collège de France

Tradução: Daniel Souza Pavan

Notas

[i] NDLR: em referência a Auguste Walras (1800-1866), economista francês, autor de De la nature de la richesse et de l’origine de la valeur (1848); ele foi um dos primeiros a tentar aplicar a matemática ao estudo econômico

[ii] Erving Goffman, Asiles. Etudes sur la condition sociale des malades mentaux, Editions de Minuit, Paris, 1968.

[iii] Podemos nos remeter, sobre tudo isso, aos dois números da Actes de la recherche em sciences sociales consagrados às “Nouvelles formes de domination dans le travail” (1 e 2), nº114, setembro de 1996 e nº115, dezembro de 1996, e, especialmente à introdução de Gabrielle Balazas e Michel Pialoux, “Crise du travail et crise du politique”, nº114, p.3-4.

TANTERIOR
Fellini, 100 anos

Pós-democracias no sul global e a melancólica desdemocratização no Brasil contemporâneo, por Luciana Ballestrin

Pós-democracias no sul global e a melancólica desdemocratização no Brasil contemporâneo
Luciana Ballestrin
Professora na Universidade Federal de Pelotas

Publicado em justificando.carta capital.com.br

Quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Em 2016, o controverso e duvidoso impeachment de Dilma Rousseff institucionalizou o mergulho em um profundo processo de desdemocratização no Brasil. Do ponto de vista internacional, isso representou uma das primeiras inflexões pós-democráticas no sul global; regionalmente, sinalizou o esgotamento dos regimes pós-neoliberais, somando-se ao caso paraguaio de ruptura democrática por dentro de suas próprias instituições.

Nacionalmente, a dinâmica de desdemocratização em curso sugere um momento de transição política[1], marcado pela suspensão do tempo político e pela incerteza das regras mais básicas do seu jogo institucional. Dessa perspectiva, o Brasil recupera e revigora o histórico enredo latino-americano dos golpes contra a democracia no século XX, ainda que desta vez sem o protagonismo militar. Obviamente, esse processo não se anuncia como tal, piorando a angústia diante da pergunta ainda não respondida: afinal, para qual regime político caminha o Brasil?

Uma pista pode ser encontrada na literatura internacional sobre pós-democracia e desdemocratização, dividida em duas linhas principais. Uma primeira, de caráter mais filosófico[2], concentra-se na desconstituição e desagregação do campo político. Argumenta-se que isso está relacionado com a eliminação do conflito pelo discurso neoliberal, que tornou os princípios do consenso, da neutralidade e da técnica hegemônicos para a condução eficiente dos governos (governança).

De outra parte, o desaparecimento do povo e a dissolução de sua soberania como principal fundamento democrático constitui “a democracia sem demos”, ocorrendo por dentro das próprias instituições democráticas e possibilitando o esvaziamento da democracia sem sua extinção formal[3].

A segunda vertente dialoga, complementa e expande esse diagnóstico ao trabalhar a autofagia que o neoliberalismo econômico global constantemente promove sobre as democracias liberais nacionais que lhe deram guarida[4].

Assim, o divórcio entre democracia e neoliberalismo escancara a disputa entre a política e a economia, o povo e as elites, o nacional e o global.

A realidade pós-democrática está intimamente relacionada com a privatização do poder político nacional pelo poder econômico internacional[5], desautorizando e invalidando o princípio da soberania popular. A noção de uma “racionalidade neoliberal”[6] passa a ser empregada para descrever a expansão da lógica econômica neoliberal, concorrencial e competitiva, para os múltiplos domínios da vida social – inclusive, a política.

Os sujeitos políticos produzidos a partir desse cenário são tocados não somente pelo desinteresse, desconfiança e apatia políticas, como também pelo individualismo, consumismo e depressão. A desesperança política, a preguiça intelectual, o elogio à ignorância e a ode ao anti-intelectualismo[7] se tornam elementos fundamentais para o crescimento da intolerância e da violência.

Negacionismo, ocultismo e falsificação histórica são elementos presentes nos discursos públicos anti-humanistas de ódio correntes na lógica da pós-verdade que desinforma, confunde e embaraça. E, o anti-liberalismo começa a significar também anti-democracia, na medida em que a própria construção da hegemonia democrática ocidental esteve condicionada pelo seu necessário atrelamento com o (neo)liberalismo, ao longo do século XX.

A racionalidade neoliberal conjugada à racionalidade neoconservadora promovem um processo de canibalismo[8] em relação à versão mais igualitária do liberalismo, responsável pela introdução da preocupação com as desigualdades no debate liberal desde os anos 1970[9].

No horizonte, um futuro distópico se apresenta com o crescimento do fundamentalismo ou totalitarismo neoliberal, cuja privatização radical da vida face à desconstituição também radical do público, enfrenta alternativas de resistências muito residuais, quando não cooptáveis.

O Brasil atual tem apresentado o conjunto das características mais importantes dos fenômenos contemporâneos de desdemocratização e da ordem pós-democrática[10]. Esse diagnóstico parece ser o mais adequado para caracterizar o colapso democrático nacional. É preciso, contudo, fazer algumas observações e reservas para o enquadramento e o encaixe do país nesse rótulo.

A primeira tem a ver com o caráter anglo-eurocêntrico da literatura sobre as pós-democracias, ainda que alguns autores dispensem a necessidade de geopolitizar esse debate[11]. A segunda tem a ver com o passado latino-americano e brasileiro de conhecidas interrupções democráticas, ante ameaças para sua realização ou aprofundamento[12].

Ao representar o sul global no debate das pós-democracias, o Brasil insere outras ordens de violência e desigualdade promovidas pelo estado colonial, imperial e pós-colonial, cujo maior e mais autêntico período democrático foi rompido em 2016 (o regime político de 1946-1964 pode ser considerado uma semidemocracia, com amparo na literatura internacional e latino-americanista[13]).

Esta leitura parece ser fundamental porque é ela que permite a introdução da importância da experiência e do contexto, prudência metodológica básica para qualquer exercício de análise de conjuntura ou comparação em ciência política.

Em outras palavras: a trajetória do capitalismo, do (neo)liberalismo e da democracia foi a mesma nos países que hoje compõe o sistema internacional?

Basicamente, o entendimento sobre a pós-democracia como consequência do canibalismo entre os princípios liberais na política e na economia já não ocorreu de certa maneira nos países pós-coloniais? Esse núcleo argumentativo, se assim o foi, não necessariamente pode ser estendido aos países cuja posição histórica no passado colonial era francamente desfavorável e um tipo particular de autoritarismo-burocrático já foi criado.

Trata-se somente de considerar que a condição pós-colonial produz outros tipos de capitalismo (dependentes), (neo)liberalismo e democracia, o que pode afetar em uma transposição acrítica ou pouco cuidadosa do diagnóstico das pós-democracias para o sul.

Interessante é observar que ao longo do século XX, a literatura hegemônica da ciência política delimitou e restringiu aquilo que competiria à disciplina discutir e à democracia ser. Tratou-se de firmar a política como um domínio autônomo e específico, pouco permeável a dinâmicas estranhas ou externas. A democracia, por sua vez, deveria sempre ser pensada a partir de uma definição exclusivamente “política”, sendo pouco razoável a introdução de elementos exógenos que desconfigurassem a disciplina e seu campo acadêmico.

Até os dias de hoje, isso significa que elementos históricos estruturais (como desigualdade e violência) ou mais conjunturais (como desemprego e analfabetismo) pouco afetaria a dinâmica e o funcionamento das democracias. Dessa perspectiva, as interpelações por uma definição mais social e substancial de democracia são vistas pejorativamente ou associadas ao populismo, entendido pelo senso-comum como simples demagogia.

A discussão sobre a incompatibilidade entre capitalismo financeiro e democracia representativa é autorizada na medida em que os centros começam a viver, pela primeira vez, os velhos problemas das periferias[14]. Isso insere uma outra ordem de preocupação à problemática da democracia, legitimando exercícios semelhantes: quando um continente (América Latina) responde a 42% dos homicídios por arma de fogo do mundo é possível falar em “democracia”[15]? Regimes democráticos não deveriam também estabelecer um patamar mínimo de desigualdade, violência, desemprego e violação aos direitos humanos? Afinal, podemos falar em “pós-democracia”em contextos onde a própria noção de democracia esteve em grande parte ameaçada pelo conluio das elites econômicas e políticas?

Por suas contradições históricas, o liberalismo que se desenvolveu nos países empobrecidos pouco apostou na democracia como seu par indispensável. A ruptura com ordens alheias e caducas (império e escravidão, no caso do Brasil) pouco significou para a auto-realização da libertação, autonomia e soberania popular em um registro republicano.

Autoritarismo e liberalismo conviveram relativamente bem na América Latina e no Brasil, em ambíguo e constante flerte junto ao Estado. Ainda assim, a disputa democrática nunca pôde dele prescindir, tanto no sul quanto no norte.

O sequestro do estado e da democracia pelo capitalismo, em suma, parece ser uma dinâmica não tão nova ou desconhecida pelos países não centrais.

Leituras que apostam nas continuidades e repetições históricas, contudo, não deveriam desprezar a busca das novidades presentes neste novo ciclo global de desdemocratização e ascensão do autoritarismo, no qual o Brasil também se insere. Além do caso brasileiro, no ano de 2016,mais três acontecimentos importantes foram capazes de questionar os limites da democracia representativa, liberal e ocidental em outras partes do mundo.

Na Inglaterra, um plebiscito demonstrou a preferência majoritária dos ingleses pela saída da União Europeia; na Colômbia, o referendo pelo acordo de paz com as FARC foi rejeitado pela maioria; nos Estados Unidos, uma vitória inesperada elegeu o empresário Donald Trump para a presidência da maior potência mundial. No mundo globalizado e neoliberal, essas três consultas populares sinalizaram uma rejeição ao multiculturalismo, à integração regional e à tolerância aos “outros”, alertando que as condições de emergência dos discursos fascistas são gestadas nas brechas dos discursos democráticos liberais.

A combinação desses elementos caminha para a conformação ainda difusa de um projeto político que autoriza racionalmente a entrada da irracionalidade para a eliminação do outro no jogo político, nas ruas e no cotidiano.

No Brasil, o avanço da desdemocratização também caminha com a radicalização do anti-humanismo contra a vida dos outros.

A equivalência da política à corrupção é um dos discursos generalizados que trabalha para a destruição da democracia, afastando as pessoas da política e produzindo um sentimento de rejeição aos partidos políticos, à classe política e às instituições políticas.

Da maneira como se tem posto nos últimos quinze anos, a aversão discursiva à corrupção tem se transformado em a versão à política e à própria democracia. Quando combinado ao discurso de ódio, o discurso anticorrupção sinaliza que é capaz de suportar o sacrifício da democracia e apoiar a eliminação do “outro corrupto” da vida política, em uma clara distorção do objetivo básico do combate à corrupção – ou seja, o reforço dos princípios republicano e democrático de controle pela soberania popular.

O Brasil demonstrou ao mundo que as agendas neoliberal e neoconservadora, quando contrariadas e aliadas, são capazes de produzir uma ruptura democrática com aparência democrática.

A acomodação de candidatos presidenciais potencialmente neofascistas em cenários (pós)democráticos escancara definitivamente o maior limite da democracia representativa liberal ocidental, prenunciando talvez seu decadente e deprimente fim.

Luciana Ballestrin é Professora Adjunta IV de Ciência Política, Curso de Relações Internacionais, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Universidade Federal de Pelotas.

[1]O’DONNELL, Guilhermo; SCHIMITTER, Philippe. Transiciones desde ungobierno autoritário. Buenos Aires: PrometeoLibros, 2010.

[2]RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

[3]CROUCH, Colin. Copingwith Post-Democracy. Paperback, 2000.

[4]DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[5]BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Imperialidade democrática como injustiça global: problemas para a democracia e a justiça no século XXI. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (orgs). Encruzilhadas da democracia. Porto Alegre: Editora Zouk, 2017.

[6]BROWN, Wendy. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.

[7]SAN MARTÍN, Raquel. Elogio de la ignorância. Los riegosdelantiintelectualismo. La Nación, Buenos Aires, 28/05/2017.

[8]BROWN, Wendy. American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization. PoliticalTheory, vol. 34, n. 6, Dec. 2006, 690-714.

[9]MIGUEL, Luis Felipe. O liberalismo e o desafio das desigualdades. Desigualdades e Democracia: o debate da teoria política. São Paulo: Editora da Unesp, 2016.

[10]SINTOMER, Yves. ¿Condenados a laposdemocracia? Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 267, Enero – Febrero 2017.

[11]GOLDENBERG, Julia. Entrevista com YannisStavrakakis. O triste espetáculo da democracia sem “demos”. 05/04/2016.

[12]HARTLYN, Jonathan; VALENZUELA, Arturo. A democracia na América Latina após-1930. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina, Vol. VII: A América Latina após 1930: Estado e Política. São Paulo: Edusp, 2009.

[13]MAINWARING, Scott; BRINKS, Daniel; PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Classificando regimes políticos da América Latina (1945-1999). Dados, Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 44, nº 4, 2001.

[14]PEREZ-LIÑAN. ¿Podrála democracia sobrevivir al siglo XXI? Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 267, Enero-Febrero 2017.

[15]SAS. Small Arms Survey. A Project of the Graduate Institute of International Studies, Geneva. Rights at Risk. Oxford University Press, 2004.

Luís Felipe Miguel: claro como água pura

Só não entende quem não quer ou não pode.

Paulo Martins

Para que serve o populismo?

O pensador liberal residente da Folha de S. Paulo, Hélio Schwartsman, condena hoje a ideia – que Lula lançou na entrevista ao jornal espanhol El Mundo – de um referendo revogatório dos retrocessos do governo ilegítimo ora no poder. Proposta, diga-se de passagem, que, caso mantida e levada adiante de forma consequente, representa um passo claro do ex-presidente para garantir um perfil popular e à esquerda para sua candidatura.

Schwartsman reconhece que o governo Temer “é um horror”. No entanto, está pondo “ordem na barafunda econômica legada por Dilma”. O referendo anunciado por Lula ameaçaria isso, sendo, portanto, classificado na categoria “flertes com o populismo”.

A menção a uma “barafunda econômica” passa a ideia de que as decisões de política macroeconômica não são propriamente decisões, mas a adequação ou não a uma determinada ordem pré-estabelecida, que é o “certo”. Fugir dela é estabelecer confusão, caos, “barafunda”. É o mantra do neoliberalismo, emblematizado na doutrina TINA, de Margaret Thatcher: there is no alternative. O fato de que a aplicação da doutrina só tenha resultado em injustiça, privação e crise não abala seus defensores.

E o fato de que a receita para resolver a barafunda sejam as medidas antipovo de Temer mostra que essa ordem econômica única e natural é aquela que beneficia os proprietários e os ricos retirando qualquer proteção sobre a classe trabalhadora e as populações pobres em geral. Schwartsman gosta de ostentar seu ateísmo militante, mas em seu raciocínio é como se o capital reinasse por direito divino.

A cereja do bolo é a menção ao “populismo”. Na linguagem acadêmica, o conceito de populismo é complexo e disputado. No jornalismo, serve para isso: estigmatizar qualquer tentativa de ampliar o controle popular nas decisões coletivas ou de levar em conta os interesses das maiorias. “Populismo” é um escudo contra o risco de que haja algum grau de democracia.

Por Luis Felipe Miguel

A urgência da esperança não admite mais ilusões, por Saúl Leblon

Compartilho editorial de Saúl Leblon, do Carta Maior.

Como sempre uma análise lúcida, ampla, da enrascada em que nos metemos aqui no Brasil. Sugiro leitura atenta. Sem um bom diagnóstico ficaremos enredados no caos político, econômico e social atual. Tudo começa por um diagnóstico correto das nossas doenças, que não são exclusividade nossa e vem contaminando toda a humanidade. O texto do Saúl contribui para tão necessário diagnóstico.

O autor entende que há  “alternativa ao caos” e apresenta uma proposta. É bem-vinda. Serve para começo de discussão entre alternativas que devem ser postas pela sociedade, em substituição à ordem neoliberal que está sendo implantada, embora sem canhão, à força, mediante golpes e conluios.

Paulo Martins – dialogosessenciais.com

A urgência da esperança não admite mais ilusões, por Saúl Leblon – do  site cartamaior.com.br

Em menos de 24 horas, entre a noite de terça-feira (11/07) e a tarde desta quarta-feira, 12/07, o golpe jogou a cartada com a qual pretende virar uma página dupla da história brasileira.

Encerrar a era Vargas e o ciclo Lula.

Estripou os direitos trabalhistas conquistados e defendidos ao longo de 74 anos, desde a criação da CLT, por Getúlio, em 1943; ato contínuo, condenou ao cárcere, por uma década, o maior líder popular brasileiro, Lula, de 71 anos, presidente duas vezes, favorito inconteste nas sondagens eleitorais para 2018.

Quis o destino que o conjunto acontecesse na mesma data em que, há 55 anos, Jango criava o 13º salário para os trabalhadores brasileiros, recebido com manchetes aterrorizantes pela mídia que dois anos depois festejaria o golpe de 1964.

A apoteose das últimas horas de certa forma esgota o repertório da ‘progressão’ golpista em 2017.

O da resistência democrática, ao contrário, pode enrijecer.

Longe de ser o fim, a tentativa conservadora de inocular prostração na sociedade, poderá inaugurar uma escalada de mobilizações e impor maior clareza programática no projeto de futuro capaz de unir a frente popular e arrebatar o país.

A prefiguração do futuro preconizado pelo golpismo é medonha.

Com certa soberba histórica nem se disfarça a pindaíba social reservada à nação brasileira.

A sofreguidão reflete de certa forma o escaldado retrospecto das oito vezes em que essa ofensiva foi interrompida, em meio século de luta de classes.

Em 1954, pelo levante popular após o suicídio de Vargas; em 1961, na campanha da legalidade pela posse de Jango; em 1984, na luta pelas Diretas Já! — derrotada, mas que levou à conquista superior da Carta Cidadã, de 1988 e, finalmente, nas quatro vitórias presidenciais sucessivas de Lula e Dilma em 2002, 2006, 2010 e 2014.

Era demais o risco de um novo revés em 2018.

Derrubar Dilma para inviabilizar Lula fazia parte do ciclo político da tolerância conservadora em nossa história. Erros na condução da crise econômica serviram apenas de lubrificante: a engrenagem já fora acionada quando as urnas de 26 de outubro de 2014 refugaram, pela quarta vez sucessiva, o projeto antissocial e antinacional ora imposto à nação.

A ofensiva revanchista culminada nas últimas horas calcifica as representações dos trabalhadores (sindicais e partidárias), sangra sua estrutura financeira, ataca sua credibilidade e busca encarcerar sua principal voz.

Se o nome disso não é golpe será preciso inventar um outro para defini-lo.

A existência altiva de uma organização de trabalhadores constitui um freio inestimável às arremetidas da barbárie capitalista em qualquer época, em qualquer sociedade.

Dispensar à destruição do PT e de Lula uma centralidade equivalente a atribuída pelos mercados à revogação do direitos sociais e trabalhistas explicita a funcionalidade de Moro.

O seletivo afinco do juiz da praça de Curitiba em atender à demanda política número um do conservadorismo — calar a única voz ouvida por aqueles aos quais a Globo gostaria de falar sozinha– é um requisito para viabilizar a restauração do trabalho avulso diante da coesão patronal.

Descortina-se –mesmo aos olhos antes distraídos—a natureza do futuro que se reserva à sociedade brasileira: uma nação feita de gente barata, um país entregue ao abismo da desigualdade abissal, sem laços compartilhados no trabalho, na velhice e no ganha pão.

Esse Brasil mexicanizado, de vidas ordinárias, entregues ao arbítrio do mercado e das gangues, mimetiza, num país de carências bíblicas, as incertezas e vicissitudes do voo turbulento do capitalismo global, em um estágio de mutação desordenada.

O discernimento do futuro inscrito na apoteose golpista pode gerar no eleitor de 2018 o efeito que se quer prevenir com a eliminação de Lula da urna. É ostensivo o anseio conservador pela condenação ‘célere’ do candidato que lidera as sondagens, como pede o editorial da Folha no dia seguinte à sentença de Moro.

A tentativa da destruição gêmea de Lula e dos direitos sociais e trabalhistas desnuda perigosamente a virulência dos marcos do projeto conservador para o país.

A literalidade dos impactos na vida cotidiana, sobretudo dos mais humildes que perdem a proteção da lei e a voz que poderia representa-los pode ser a tocha de uma espiral de conflitos de consequências imprevisíveis.

O golpe de 1964 levou quase cincos anos para encontrar um chão ‘institucional’ baseado no terror, na tortura e na censura.

A manipulação midiática e a farsa de um parlamento contra o povo não serão suficientes para sustentar a reordenação conservadora atual, se for escancarada a sua âncora de des-emancipação social.

A verdade é que o esgotamento da ordem neoliberal no mundo requisita um poder de coordenação econômica e de planejamento democrático inverso ao que se desenha aqui.

Reduzir o país a uma dívida pública paga em dia, a juros suculentos, às custas da agonia falimentar dos serviços públicos, dos direitos, da renda e do emprego só é viável no imaginário de quem já se dissociou até fisicamente do destino da sociedade e da sorte do seu desenvolvimento.

Quem?

A minoria rentista que da escada do avião acena recomendações de uma dantesca ‘purga’ na Constituição de 1988 para equilibrar ‘o fiscal’, às favas o povo, esse estorvo da boa finança (leia nesta pág. http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FBye-bye-Brasil%2F38336).

O jogo, portanto, atingiu o ápice da violência de classe.

Não é temerário prever um aguçamento do conflito social no período que se abre.

Com um agravante.

Inabilitadas pela ruptura da legalidade, as instituições mediadoras, a exemplo de uma parte ostensiva do judiciário –sem falar da mídia e da escória parlamentar de despachantes do mercado– perderam sua credibilidade ao se acumpliciarem na demolição do pacto da sociedade sem consulta-la.

Após quatro derrotas presidenciais sucessivas, sendo a última, de outubro de 2014, com seu quadro mais palatável, as elites decidiram queimar as caravelas e os escrúpulos que supostamente ainda carregariam.

Fizeram-no, como se constata na escalada do cerco ao PT e à Carta de 88 convictas de que só escavando um fosso profundo na ordem constitucional teriam o poder necessário para a demolição requerida.

Aquela capaz de transformar a construção inconclusa de um Brasil para todos, na recondução da ordem e do progresso para os de sempre.

Não deixam dúvida as encomendas e as entregas: o golpe veio apunhalar a democracia para atingir o interesse popular.

Vem aí um vergalhão de privatizações e abastardamento de serviços essenciais.

Reafirma-se a rigidez recorrente da velha fronteira histórica onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado e começam as bases da construção de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta.

‘A democracia prometeu mais do que o capitalismo pode conceder sem mergulhar a economia em uma crise fiscal desestabilizadora’, martelam diuturnamente os colunistas do jogral midiático que não cogitam jamais de uma reforma que estenda, por exemplo, a coleta de tributos aos R$ 334 bilhões em lucros e dividendos –isentos de IR—apropriados em 2016 por pessoas físicas das faixas de renda mais altas da sociedade.

Ao contrário.

O que se enxergou do esgotamento de um ciclo de expansão, agravado pela crise econômica global, foi a oportunidade para um acerto de contas capaz de fazer o serviço completo.

Cortar o ‘mal’ pela raiz.

Explica-se assim a sanha do assalto às fontes originárias da universalização de direitos na sociedade, desde a CLT de 1943, à Constituição Cidadã de 1988 e o partido que deles se tornou o principal promotor.

Pode dar errado.

Ter um Estado que trata encargos sociais como estorvo do mercado, por mais que gere uma euforia inicial nos donos do dinheiro, não resolverá as grandes pendências nacionais emolduradas por um pano de fundo desafiador.

O capitalismo revira os nós de suas tripas em uma transição épica de padrão tecnológico.

O salto da industrialização 4.0 baseada na robótica, na integração e digitalização dos processos vai ralear e atomizar o mundo do trabalho e desse modo toda a sociedade.

A indústria continuará vital como núcleo irradiador de produtividade e tecnologia na sociedade. Mas será cada vez menos o núcleo ordenador do emprego e dos direitos.

A dispersão laboral que a esperteza conservadora quer acelerar aqui com a implosão da CLT e o barateamento da previdência aponta para uma fragmentação social de consequências imponderáveis.

Só a ação planejadora da democracia e do Estado pode impedir que isso transborde em anomia conflitiva, violenta e desesperada.

Eis o paradoxo da política de estabilização golpista.

A coesão social hoje passa a depender cada vez mais –e não menos– de políticas públicas amplas, massivas, inclusivas que a sabedoria fiscal dos ‘reformistas’ aqui trata de desossar.

O modelo atual de previdência social de fato se esfumou num horizonte de emprego instável e escassos vínculos trabalhistas.

Mas a miopia ideológica do conservadorismo extrai daí a oportunidade de apagar o incêndio social com o maçarico da exclusão .

A alternativa ao caos existe.

A seguridade social do futuro terá que ser financiada com um imposto geral, progressivo, cobrado de toda a sociedade. O contrário é o apartheid da velhice –e não apenas dos pobres, mas também da classe média– em privação, abandono, desespero familiar e depósitos de barbárie.

O mesmo vale para os demais bens e serviços.

No dizer do professor Luiz Gonzaga Belluzzo (que recomenda o filme de Roberto Andó, ‘As confissões’, de onde deriva a enunciação de um personagem para adaptá-la à hora do Brasil) –‘Se queremos reaver a esperança, não podemos mais oferecer ilusões’.

A esperança capaz de levantar a rua e redimir os laços sociais em nosso tempo não nascerá da nostalgia de um padrão de desenvolvimento irrecuperável.

Nem do seu ‘ajuste’ pelas mãos dos alfaiates das crises humanitárias.

A reforma estabilizadora e crível virá de políticas públicas que inovem diante das incertezas sociais e laborais, e respondam com justiça tributária ao desamparo que estilhaça e subordina a sociedade à ganância financeira.

Não por acaso, o que mais se evidencia nessa ciclópica transição emendada à crise de 2008, é a falta que faz agora tudo o que foi subtraído do Estado e da democracia no ciclo neoliberal anterior à explosão das subprimes – regulações, direitos, soberania, garantias trabalhistas, tributação da riqueza –que cedeu lugar ao endividamento paralisante do Estado, salários dignos, indução pública do investimento, amparo social enfim, laços de pertencimento e solidariedade fiscal e humana.

A virulência anacrônica do golpe brasileiro quer nivelar o país nesses quesitos, implodindo estruturas que o ciclo de governos progressistas preservou e ampliou.

Sua vitória pode estar fadada a ornamentar o cemitério da estagnação e o inferno da desigualdade.

A volta da fome ao país, denunciada agora à ONU, é um sinal da combustão social que arde com rapidez assombrosa. O quadro falimentar do estado no Rio de Janeiro velado por uma procissão de corpos que cresce à razão de um assassinato a cada duas horas é outro grito de alarme.

A conclusão explode aos olhos de quem não foi contaminado pela cegueira tóxica do jornalismo isento.

Falta investimento público, falta demanda, faltam oportunidades, inclusão e sentido de esperança no capitalismo do século XXI.

Esse corner humano e macroeconômico que o golpe mimetiza para barrar reformas e retificações de privilégios –requeridas pelo esgotamento do ciclo anterior de expansão– é justamente o desafio ao qual o projeto progressista terá que responder com o desassombro histórico.

A resposta conservadora é a ‘noite de São Bartolomeu’ em marcha que instaura a paz salazarista dos cemitérios.

Graças ao monopólio midiático, interditou-se o debate das alternativas à delicada transição de ciclo econômico (local e global) para a qual não existe saída fora da repactuação da sociedade em torno de políticas que fortaleçam, não esmaeçam, as dimensões compartilhadas do presente, do futuro e do passado da cidadania.

A manipulação midiática logrou assim avalizar ‘soluções’ que na verdade radicalizam a contraposição de interesses unilaterais, privilegiam os mercados e não os cidadãos, impõem uma regressão civilizacional inconciliável com a manutenção do Estado democrático e, por fim, corroem aquilo que tão arduamente se reconquistou, a autoestima brasileira.

Sobra o quê?

Uma ruptura mais profunda do que a mera destituição de um Presidente da República.

De diferentes ângulos da economia e da sociedade já emergem avisos de saturação estrutural.

Em 1964, a transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar abriu uma válvula de mobilidade momentânea –às custas de uma urbanização de periferias conflagradas– para as contradições violentas de uma sociedade que já não cabia no seu modelo anterior.

Mesmo com essa válvula de escape, a repressão do regime foi brutal. Hoje não há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer a panela de pressão da nova encruzilhada do desenvolvimento turbinada pela finança e a tecnologia poupadora de empregos e direitos.

As legiões que não couberem aí serão escorraçadas, como estão sendo, pela explosiva segregação que se anuncia, atiradas a uma periferia constitucional e, assim, coagidas a reagir de forma explosiva ou perecer.

Erra esfericamente quem imagina que esse estirão pode ser mitigado com a maciça entrega do que sobrou do patrimônio público depois do governo do PSDB.

Privatizações não agregam força produtiva nem vagas; apenas concentram ainda mais a renda; definham adicionalmente o já enfraquecido poder indutor do investimento público, reduzem o fôlego do Estado com remessas descasadas de receitas exportadoras.

Radicalizam , enfim, o que o país mais precisa superar.

A reedição de um novo ‘1964’ exigiria, desse modo, uma octanagem fascista drasticamente superior à original, para prover o aparelho de Estado do poder de coerção necessário à devolução da pasta de dente social a um tubo que na verdade nem existe mais.

Não há uma terceira escolha.

É voltar às urnas na esteira de forte mobilização da sociedade; ou entregar a nação a uma ‘longa noite de exceção’ de desdobramentos incontroláveis.

Essa é a disjuntiva.

Moro se empanturrou da ração midiática na qual foi cevado nos últimos anos.

A sentença com a qual pretende ‘limpar esse terreno’, interditando o nome de quem pode barrar a imissão de posse violenta, não vai mudar, nem resolver a encruzilhada estrutural da qual Curitiba é um simples adereço de mão do conservadorismo.

A opção à deriva imponderável cabe à resistência democrática progressista –se cumprir certos requisitos.

Ela terá que ser construída nas ruas, a partir de um desassombrado aggiornamento de sua visão de futuro.

A esperança capaz de levantar as ruas –repita-se—não admite mais ilusões.

A repactuação do desenvolvimento brasileiro só deixará de ser uma miragem flácida se calcada em amplas políticas de infraestrutura e inclusão social –inclusive dos filhos de uma parte expressiva da classe média que terão que se inserir em sistemas públicos de educação, saúde e lazer.

O novo é o que é público e comum. Assim como as escalas se ampliam na economia das grandes corporações, elas terão que ser magnificadas também na esfera dos acessos e direitos consagrando o bem comum.

Moro não calará Lula, assim como não silenciaram Mandela, se ele se tornar desde já o porta-voz desse arrebatador projeto de futuro compartilhado.

Aquele que repactua a nação consigo mesmo e com o século XXI através de políticas públicas e tributárias que viabilizem o que a elite brasileira – e sua escória parlamentar—se empenha em sonegar: o direito de a maioria sair da soleira do lado de fora do país e da civilização para desfrutar da principal riqueza do nosso tempo: direitos, oportunidades, serviços e espaços públicos dignos para todos.

Os ratos, por Fernando Horta

Compartilho mais um texto de Fernando Horta, publicado no site de Luis Nassif – jornalggn.com.br.

Como sempre, prefiro destacar os aspectos políticos de cada texto que publico ou compartilho, deixando de lado os aspectos que dizem respeito ao cometimento de crimes, que devem ser tratados pela justiça criminal.

Infelizmente, no Brasil, não sabemos onde começa uma carreira e começa a outra. Tem-se a impressão que uma é pré-condição para outra, sem preferência para qual será a precedente. Mesmo assim, prefiro focar nos aspectos políticos, em homenagem aos princípios garantistas do Direito Penal.

O golpe jogou nosso país no abismo. Só isto explica um Michel Temer ou um Rodrigo Maia, dois despreparados sem votos,  na Presidência da República.

Como bem registra o autor, “tanto Temer quanto Maia são exemplos gritantes do fracasso de nossa democracia, de nossos sistemas representativos”.

Não sei qual a saída imediata. Mas uma coisa eu sei, por experiência: não podemos deixar a Rede Globo escolher o “capacho” que irá usar a faixa presidencial e, mais grave ainda, não podemos deixar a Rede Globo pautar a política social e econômica do país e escolher qual equipe e quais reformas serão implantadas.

A Rede Globo não foi eleita para nada. A Rede Globo é um simples negócio com fins lucrativos de uma família que se acostumou a sequestrar a vontade popular, sempre que esta vontade vai de encontro à vontade e aos interesses egoístas deste grupo empresarial.

O poder oligopolista da Rede Globo e a forma que ela o exerce denigrem e tornam impossível a verdadeira democracia. Sem controle deste oligopólio e redução do seu poder, não vejo saída para o Brasil.

Paulo Martins

Os ratos, por Fernando Horta

Comparar frações é uma das coisas mais complicadas de se fazer sem uma metodologia própria. O que é menor 7/8 ou 6/9? 7/12 avos ou 3/5? Fica sempre muito difícil sem um parâmetro, uma metodologia que nos possa servir para tornar as coisas “comparáveis”. Michel Temer é uma fração de presidente, Rodrigo Maia outra fração, como presidente da Câmara. Qual o menor?

Temer, da última vez que concorreu como candidato às proporcionais (em 2006), recebeu 99.046 votos para deputado por São Paulo. Ficou em 54º lugar naquelas eleições. Só conseguiu entrar pelo famoso “quociente eleitoral”. Seu recorde foram 252.229 votos na eleição de 2002, quando ficou em sexto mais votado por São Paulo.

​Rodrigo Maia é um dos tantos “herdeiros políticos” que estão no nosso parlamento. O filho do ex-prefeito do Rio de Janeiro César Maia, começou sua carreira na Câmara em 1998 recebendo 96.385 votos. Depois, em 2002 teve 117.229, em 2006 198.770, e em 2010 caiu para 86.162 votos apenas. Nas eleições de 2014, afundou mais ainda com apenas 53.167 votos. Ficando apenas em 29º lugar entre os eleitos do RJ. Elegeu-se, também, pelo famoso quociente eleitoral.

Enquanto o PMDB de Temer é oriundo da “oposição ao regime militar”, Maia é do antigo PFL (Partido da Frente Liberal) que teve sua sigla tão desgastada por escândalos de corrupção e pela defesa do neoliberalismo que precisou mudar de nome. O PFL é uma das ramificações da ARENA (Aliança Renovadora Nacional), o partido apoiador da ditadura civil-militar. A verdade é que enquanto a ARENA, na ditadura, era um bloco monolítico de apoio aos governos ditatoriais, o PMDB juntou gente de todos os matizes políticos em seu bojo (desde os partidos comunistas até o antigo Partido Social Democrático que representava as elites latifundiárias que apoiavam Getúlio Vargas). O PMDB sempre foi, portanto, uma “colcha de retalhos”, oferecia apoio por cargos. A História diz que, durante a ditadura, o PMDB era o partido do “Sim” e a ARENA do “Sim, senhor!”.

Michel Temer tem 76 anos. Nenhuma aspiração política que envolva eleições. Da presidência partirá ao esquecimento, se antes não der uma passada na Papuda. Como acaba sua carreira política, nada teme de fato. Não deve obediência a eleitores (que de fato não tem), nem tem qualquer preocupação com as “próximas eleições”. Rodrigo Maia, tem 47 anos, e teria ainda – em tese – uma carreira política. Sob este aspecto, penso que Maia pode ser mais responsivo às ruas, já que tem efetivamente preocupação com as próximas eleições. O problema é que o espectro político que vota nele tem pouco apreço pela democracia. Especialmente uma democracia com povo. O DEM é sempre muito refratário a qualquer ampliação de participação política. Penso que Maia não é exceção.

Temer está envolvido, até o fundo, na corrupção crônica brasileira. Toda sua curruela mais próxima também. Claramente seu governo é uma quitanda para quem lhe puder oferecer apoio político que lhe salve a pele. Temer não tem vergonha de leiloar cargos, leis, medidas e tudo o mais que ele puder fazer de valor no Brasil, para barrar as investigações sobre corrupção. As reformas nunca foram um “programa de governo” seu. Foram a moeda de troca que ele usou para blindar seu grupo. O “Botafogo” (com o perdão dos alvinegros cariocas), como Maia é chamado nas planilhas da Odebrecht, também é investigado pela PF por corrupção em diversos inquéritos. Os valores são muito menores do que Temer ou Cunha, Maia sempre foi “baixo clero”. Nunca teve qualquer projeto de Brasil, e assumiria a presidência como um boneco de ventríloquo. Não sabemos que lhe manipula as cordas. Uns apostam no financismo, mas eu creio que nem para isto Maia teria capacidade.

De fato, a troca de Temer por Maia significa mais alguns minutos de oxigênio que os perpetradores do golpe tentam para aprovar as reformas e, ao mesmo tempo, saciar o apetite da Globo. Temer se mostra muito ralo e sem condições mínimas de levar o país a qualquer lugar. Suas malfadadas peripécias internacionais, combinadas com seus atos-falhos deixam ainda mais patente a posição de pária político. Nem as manipulações do PIB, nem a senhora “Bela, recatada e do lar” foram capazes de promover qualquer mudança na aceitação de Temer.

Rodrigo Maia tem também sua vaidade. É preciso considerar que em uma democracia verdadeira ele jamais teria condições de se eleger para qualquer cargo executivo, que dirá Presidente da República. Tanto Temer quanto Maia são exemplos gritantes do fracasso de nossa democracia, de nossos sistemas representativos. Mas se Maia seguir seu normal político e golpear Temer, ambos ficarão com suas fotografias como “Presidentes do Brasil”. Como historiador me sinto chocado em escrever isto. Em que mundo Temer e Maia poderiam se ombrear – sob qualquer aspecto – com Lula, FHC, Getúlio Vargas e Kubistchek, por exemplo? É o “déficit de representação”, de que falam os cientistas políticos, dando um tapa com a “mão invisível” na nossa cara. Duas vezes.

Enquanto a aliança que sustenta Temer está em direção à cadeia, a de Maia dirige-se ao “lixo da história”. Quaisquer políticos que venham a compor este arremedo de “frente nacional” ficarão marcados por terem feito parte de um momento tão baixo e mesquinho da história brasileira. O problema é que o nível do “baixo e mesquinho” é, talvez, bastante alto e aceitável para o tipo de gente que apoiar Maia. E Maia terá a foto na galeria onde figuram os governantes do Brasil. Se pudermos travar as reformas, a troca é seis por meia dúzia com o benefício de deixar Temer na condição de ser preso, e Maia evidenciando o atoleiro em que nos metemos. Se não pudermos barrar as reformas, não faz diferença quem será abandonado pelo capital, logo em seguida, se Temer ou Maia. Penso que Maia tem mais a perder e quase nada – além de sua vaidade – a ganhar. Mas ele me parece estúpido o suficiente para fazer a escolha errada.

Maia e Temer, se somados os votos das últimas vezes em que se elegeram, teriam 152.213 pessoas que lhes hipotecaram apoio. Isto representa 0,28% dos 54.501.118 que Dilma recebeu. Quem quiser entender o recado, que entenda. E mande para o STF, por favor.

O petróleo é nosso!

Somos 7 bilhões de seres humanos no mundo

Um bilhão de pessoas situadas no topo da pirâmide social consome 50% de toda a energia produzida no mundo.

Os três bilhões de pessoas situadas no nível intermediário da pirâmide consome 45% da energia.

Os três bilhões de pessoas da base da pirâmide consome os 5% restantes.

O consumo de energia elétrica em aparelhos para condicionamento de ar nos EUA é maior do que o consumo de energia elétrica em toda a África.

Fonte: Eduardo Gianetti

Há um ano eu publiquei esta informação no Facebook.

A desigualdade de riqueza, renda e consumo entre nações – e não só na comparação entre os países ricos e a África – e entre as pessoas de um determinado país, como o Brasil, por exemplo, é brutal.

Estes dados são uma pequena amostra. Quando os norte-americanos falam em manter seu padrão de vida – o “American way of life” – o que eles estão querendo dizer é que não aceitam ceder um milímetro para diminuir estas desigualdades.

A forma predatória dos norte-americanos se relacionarem com os outros países e com o meio ambiente reflete somente a leitura que eles, os norte-americanos, têm do mundo: estamos todos aqui para servi-los e não deixar que lhes falte nada, nem energia, nem drogas. Eles necessitam ser os maiores consumidores de tudo, mesmo que sejam os maiores poluidores globais.

Há abundância de dados estatísticos mostrando com indiscutível clareza a grande desigualdade de riqueza e renda que o funcionamento da máquina capitalista global turbinada pelo neoliberalismo trouxe para o mundo nos últimos 30 anos.

Mesmo dentro dos Estados Unidos, a desigualdade de riqueza e renda entre as pessoas aumentou a ponto de tornar o sistema econômico norte-americano uma máquina defeituosa, que gera riqueza para poucos com subtração de renda da grande maioria dos seus próprios cidadãos.

A drenagem de recursos das outras nações, especialmente o petróleo barato, para sustentar o desenvolvimento dos Estados Unidos, foi um fenômeno comum no passado. A novidade é que o fenômeno da absurda concentração de riqueza e renda passou a ser um fenômeno interno, nacional, que afeta os próprios cidadãos norte-americanos.

O resultado disso é o crescente egoísmo, individualismo, xenofobia, descaso com o meio ambiente. Em resumo: Trump.

Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro.

O MITO NEOLIBERAL, por Ulysses Ferraz

Compartilho texto de Ulysses Ferraz

O MITO NEOLIBERAL
Terceirização aprovada. Sancionada. Luz, câmera, ação. Homens engravatados apresentam argumentos irrefutáveis. Mulheres eficientes e poderosas apontam justificativas graves. Sisudas. Relações de causa e efeito. Gráficos. Tabelas. Estatísticas. Correlações. Regressões. Engenheiros, matemáticos, físicos e até economistas. Muitos jornalistas. Todos produtores do mito mais poderoso de nosso tempo. Gente séria que se leva a sério todos os dias do ano. Seriedade vinte e quatro horas por dia. Sete dias da semana. O show não pode parar. Como escreveu Roland Barthes: “a função principal do mito é transformar o que é contingente em natural”. Os rituais garantem sua existência. Quanto mais obscura a linguagem, mais confiável. Afinal, costuma-se respeitar aquilo que se desconhece. Os especialistas sabem o que fazem. E o que dizem. Como não se deixar seduzir? Uma narrativa tranquila e poderosa, que defende eficiência, responsabilidade e ganhos justos aos mais adaptados para lidar com os desafios do único mundo possível: livre, competitivo, globalizado e desregulamentado. Tudo deve parecer natural. Descontaminado da política. Desideologizado. Confiável. Técnico. Uma análise científica de uma força da natureza chamada economia de mercado. E assim caminha o inexorável mito neoliberal.

Uma agenda para destruir um País, por Esther Dweck

Compartilho artigo de Esther Dweck publicado em alertasocial.com.br.

Não me agrada constatar que todos os meus temores em relação às medidas que seriam adotadas pelos diferentes grupos de interesse que se uniram para golpear a democracia estão se realizando com espantosa velocidade.

Não tenho nenhum prazer em observar a situação. No período de 1971 – 1974, quando cursei a Faculdade de Economia, em plena ditadura militar, o Brasil foi usado como laboratório de teste de ideias econômicas anti-distributivas – ficou famosa, na época, a frase de Delfim Neto de que o bolo (a economia) precisava crescer primeiro para depois haver distribuição (da renda). Bom, quem comeu, comeu. Quem não pode ter acesso aos benefícios do crescimento ficou “chupando os dedos”. Passados 45 anos e a lenga-lenga é a mesma de sempre.

Como resultado da política econômica “austericida” adotada por Temer e seus ministros amestrados, no curto prazo as pessoas perdem seus empregos, as empresas fecham as portas, a depressão econômica se instala, a economia se desnacionaliza. No médio prazo, o crescimento, sobre uma base econômica super deprimida, pode ocorrer, com uso de capacidade ociosa nas empresas, sem criação de empregos significativa. No longo prazo, os empregos retornam, com baixa qualidade e níveis médios salariais abaixo dos níveis pré-crise. Mas não retornam às quantidades prévias, pois as empresas aprenderam a extrair mais trabalho e produção de um número menor de trabalhadores. Como esta sendo destruída toda a rede de proteção social implantada nos treze anos de governos Lula e Dilma, além do ataque à política de reajuste do salário mínimo, à previdência social e à legislação trabalhista, o resultado final será, lamento registrar, mais miséria e desolação.

O texto de Esther Dweck representa um grito de alerta. Infelizmente um grito para fundamentalistas surdos. Leia o texto abaixo.

Paulo Martins

Uma agenda para destruir um País, por Esther Dweck

Nesta terça (7), houve uma apresentação do Ministro Meirelles para o “Conselhão”. A apresentação poderia se chamar como destruir um projeto de desenvolvimento inclusivo, mas segundo ele é a pauta para retomada do crescimento. Os pontos apresentados deixariam os ideólogos do Consenso de Washington com inveja: como não pensaram em tanta maldade junta?

Publicado em 9 de março de 2017

O governo Temer tem se aproveitado de diversas medidas dos governos Lula e Dilma. A transposição do Rio São Francisco é talvez o exemplo mais emblemático. Outro exemplo é o “Conselhão”, criado por Lula em 2003, para dialogar com a Sociedade Brasileira, com academia, trabalhadores e empresários, foi reconfigurado por Temer.

Nesta terça (7), houve uma apresentação do Ministro Meirelles para o “Conselhão”. A apresentação poderia se chamar como destruir um projeto de desenvolvimento inclusivo, mas segundo ele é a pauta para retomada do crescimento. Os pontos apresentados deixariam os ideólogos do Consenso de Washington com inveja: como não pensaram em tanta maldade junta?

O neoliberalismo começou em 1973, com um golpe de Estado no Chile. No Brasil, ele entrou pela via eleitoral e, justamente por isso, foi mais tímido do que em outros países. A memória do regime militar e toda a agenda defendida na Constituição Cidadã ainda estavam muito frescas durante os Governos Collor e FHC para que fossem destruídos os pilares básicos da Constituição. Não faltaram tentativas, mas os instrumentos não foram destruídos.

Com a vitória de um projeto inclusivo nas urnas, em 2002, os instrumentos foram utilizados para promover, pela primeira vez na história do Brasil, um projeto de crescimento inclusivo. Podem existir várias críticas e muitos podem achar que faltou aprofundar em áreas-chave. Mas é difícil não reconhecer todos os avanços dos 13 anos que terminaram com mais um golpe.

Ontem, foi apresentada a destruição desses mecanismos pelo Sr. Meirelles.

Em primeiro lugar, ele propõe o ajuste fiscal permanente como condição necessária para retomada do crescimento, tendo como os elementos centrais dois pontos. A EC95/2016 (teto declinante dos gastos), que promoveu uma redução dos mínimos constitucionais de saúde e educação e irá impor diversos cortes nas despesas sociais. E o segundo ponto é a Reforma da Previdência, uma mudança que irá excluir diversos brasileiros do sistema e que o destrói como pilar de distribuição de renda e da proteção social no Brasil.

Eu não sei em que mundo eles vivem, mas há um movimento mundial para demonstrar que ajuste fiscal só aprofunda a crise econômica.

Na apresentação, Meirelles chegou a afirmar que o crescimento está sendo retomado. Eu não sei em qual País, porque os últimos números divulgados pelo IBGE mostram que, na margem, nos últimos dois trimestres de 2016, a economia voltou a piorar. O carryover para o crescimento de 2017, que é o crescimento da economia se esta ficar onde está, é de -1,1%. Ou seja, se nada acontecer, teríamos uma terceira queda do PIB. Algo visto apenas em países com grandes catástrofes. Depois, ele apresentou a tal Agenda de Produtividade e Crescimento no Longo Prazo. O início é uma agenda de desburocratização, sem impactos concretos e com alguma penalidade aos consumidores. O mais interessante é que apresentou reformas relacionadas ao crédito, sem fazer o básico, que era aumentar o crédito dos bancos públicos. O BNDES tem acumulado caixa ao invés de contribuir para retomada do crescimento. Os números são de mais de R$100 bilhões em caixa, fora a devolução antecipada de R$ 100 bilhões ao Tesouro.

Em seguida, vem o receituário de abertura comercial, com destaque para a liberação da venda de terra para estrangeiros. Consolidam assim a agenda entreguista imposta desde maio de 2016.

Mas a cereja do bolo é o slide onde apresenta as “Várias Reformas Liberalizantes”, como se as anteriores não fossem ingredientes típicos das agendas mais fundamentalistas do liberalismo econômico.

Os pontos principais dessas reformas liberalizantes são três. O primeiro é a destruição da legislação trabalhista, com terceirização geral e irrestrita, a prevalência do negociado versus o legislado e a flexibilização da jornada. O mais interessante é que o Brasil tinha, em 2014, a menor taxa de desemprego da história, sem que tivessem sido necessárias quaisquer dessas mudanças.

As outras duas medidas demonstram a falta total de compromisso com o desenvolvimento do País. A proposta é a reversão de medidas essenciais para garantir que recursos públicos ou recursos naturais do País sejam utilizados para gerar desenvolvimento tecnológico e emprego industrial no Brasil. Fim da margem de preferência nas compras governamentais e a “reforma” do conteúdo nacional do setor de Óleo e Gás, com a proposta de “horizontalização” e globalização dos requisitos de conteúdo nacional, que na prática elimina a exigência.

Mesmo que por uma questão estatística e pelos atuais estabilizadores automáticos a economia pare de cair e até encontre um crescimento positivo, se todas as propostas forem efetivamente implementadas, será o fim de um modelo de crescimento inclusivo e para todos.

Esther Dweck é professora do Instituto de Economia da UFRJ, atualmente assessora do Senado Federal.

NEOLIBERALISMO: SUBJETIVIDADES NO PONTO CEGO DA ESQUERDA, por Tatiana Roque

NEOLIBERALISMO
SUBJETIVIDADES NO PONTO CEGO DA ESQUERDA, 

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil

Diante da falência de perspectivas, qual a alternativa proposta pela esquerda? A direita estilo-Trump acena com a restauração dos projetos nacionais autoritários, cujos modos de subjetivação – centrados no macho-adulto-branco – são velhos conhecidos.
por: Tatiana Roque
3 de fevereiro de 2017

Meritocracia e empreendedorismo são as palavras da moda, com todo o léxico que as acompanha: capacitação, coaching, diferenciação, profiling e por aí vai. Ideias e valores derivados dos princípios da concorrência que estruturam o projeto neoliberal. Sabemos que o neoliberalismo não se reduz a um sistema econômico. Em escala pouco visível, atuam mecanismos para instalar a concorrência em todas as relações sociais e, por isso, as subjetividades viraram alvos do governo neoliberal. Governar não significa apenas deter o poder político, significa organizar, facilitar e estimular a concorrência nos mais diversos âmbitos da vida social, como resume Foucault¹ .

Todo esse projeto, que parecia viver seu auge nos anos 1990, está em crise. Ainda assim, o tipo subjetivo que o sustenta – o empreendedor de si – permanece surpreendentemente sedutor. Além de bastante difundido, trata-se de um tipo subjetivo que facilita a adesão às formas de sociabilidade contemporâneas, fundadas na concorrência e no sucesso individual. No momento de crise em que estamos vivendo, a solução neoliberal para manter a hegemonia é tentar um passo adiante, explorando as fragilidades do estado de bem-estar social e buscando submeter todas as suas instituições à lógica da concorrência. Pierre Dardot e Christian Laval² sugerem que essa ofensiva visa os instrumentos que tornavam possível – até aqui – alguma sobrevida livre da concorrência, como os serviços públicos e a aposentadoria. O sucesso da empreitada depende da capacidade das formas de governo neoliberais para continuar convencendo a população que o empreendedor de si é atraente, bem como são suportáveis as relações sociais que o sustentam. Nessa dimensão se dará a disputa de corações e mentes. Por não estar sendo capaz de enfrentar essa disputa no terreno das subjetividades, a esquerda não tem conseguido adesão às suas propostas. Logo, a tarefa mais urgente para um novo projeto de esquerda será propor modos de vida alternativos à subjetividade empreendedora fundada na concorrência. Precisamos calibrar as lentes, focar nas subjetividades e buscar figuras capazes de substituir o self empreendedor, elemento-chave da racionalidade neoliberal.

Empreendedorismo é um modo de gestão social que mobiliza desde os empresários propriamente ditos até o setor de serviços e a economia informal, ou seja, enseja modos de vida que tocam a maior parte dos trabalhadores atualmente. Quando Jessé de Souza traça os perfis do novo “batalhador brasileiro”, inclui o batalhador do microcrédito, a empreendedora que vende doces e quitutes, as redes informais, o feirante, a família ampliada e a igreja neopentecostal³. Uma grande parcela dos antigos assalariados, moradores de periferias, dedica-se hoje a um pequeno negócio, como lanchonete, corte e costura, salão de cabeleireiro ou oficina mecânica. A maior parte dessa população empreendedora atribui qualquer melhoria de vida ao esforço pessoal e quem ainda não tem seu próprio negócio, gostaria de ter4. Das grandes corporações às igrejas neopentecostais, é a subjetivação empreendedora que mobiliza o engajamento. A ética da empresa – a partir da qual as pessoas se autogovernam no neoliberalismo – não envolve somente a competição, mas também exalta a autoestima, o pensamento positivo, a luta pelo sucesso, as habilidades pessoais, o vigor e a polivalência. Por isso, engloba todas as esferas da vida, desde o casamento, os filhos e os amigos até a família ampliada das igrejas – todos participam do networking necessário ao sucesso dos negócios. Mas nem tudo são flores. A conta não tarda a chegar, pois o self empreendedor sobrecarrega o indivíduo, que deve ser o único responsável por todos os riscos, tendo que assumir sozinho a culpa quando não consegue garantir o básico para si e seus próximos. O endividamento crescente só aumenta a culpabilização, gerando uma insatisfação cada vez maior com os dispositivos de subjetivação neoliberal. Os ideais de emancipação, mobilidade e liberdade, prometidos nos anos 1990, foram desmascarados pela multiplicação de sujeitos endividados; e a subjetivação neoliberal deu lugar à Fábrica do Homem Endividado 5.

Diante da falência de perspectivas, qual a alternativa proposta pela esquerda? A direita estilo-Trump acena com a restauração dos projetos nacionais autoritários, cujos modos de subjetivação – centrados no macho-adulto-branco – são velhos conhecidos. Enquanto isso, na esquerda, aprofunda-se a dicotomia entre as lutas identitárias e classistas. A única figura subjetiva invocada sem hesitação nos projetos de esquerda é a do trabalhador. Mas essa figura está em crise, devido às transformações profundas do mundo do trabalho. O crescimento do setor de serviços faz com que a figura do trabalhador se aproxime do empreendedor. Além disso, o pacto do bem-estar social, que sustentava o mundo do trabalho, está se dissolvendo em escala mundial. Seus termos fundadores dependiam da separação entre as esferas da produção e da reprodução da força de trabalho: era preciso garantir condições mínimas de existência ao trabalhador para que fosse possível extrair valor de sua produção na fábrica. Como manter um pacto desse tipo diante das configurações atuais do mundo do trabalho? Trabalho que vem sendo expandido para diferentes âmbitos da existência, com um papel cada vez mais preponderante de todas as esferas da vida nas relações de trabalho, como mostram o setor de serviços e a economia do conhecimento. Em todos esses casos, para continuarem produtivas, as pessoas precisam realizar um investimento contínuo sobre si mesmas, precisam empreender-se. Só que esse esforço já não traz o retorno necessário, levando à descrença e à depressão. Num ambiente social degradado, são os valores reacionários que têm conseguido suplantar a fragilização institucional generalizada. São justamente as mudanças no mundo do trabalho que explicam o crescimento das religiões neopentecostais; a cegueira das esquerdas para compreender o avanço dessas religiões só confirma sua dificuldade em recolocar o problema do trabalho no mundo atual.

Insistir na figura do trabalhador não fornecerá o elã subjetivo necessário para que novas pessoas possam aderir aos projetos da esquerda. Por isso, mesmo com todos os riscos que implica, a figura do empreendedor segue tendo mais apelo, mesmo nas classes populares. Que modos de vida, que suplantem a promessa desgastada de um trabalho assalariado na fábrica, conseguirão mobilizar corações e mentes? Que perspectivas de emancipação serão capazes de nos tirar do impasse atual? Sem enfrentar essa disputa no terreno das subjetividades, a esquerda continuará perdendo, mesmo reiterando a denúncia da dissolução dos ideais de universalidade, igualdade e justiça. Calibrar as lentes e enxergar o problema na escala das subjetividades é um passo incontornável para qualquer projeto

Tatiana Roque é professora de filosofia na UFRJ

1 Nascimento da Biopolítica. Martins Fontes, 2008. Aulas de 14, 21 e 28 de março de 1979.

2 A Nova Razão do Mundo. Boitempo, 2016.

3 Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Editora UFMG, 2010.

4 Indicam pesquisas, como a citada em:

https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2016/11/01/Como-a-substitui%C3%A7%C3%A3o-do-%E2%80%98trabalhador%E2%80%99-pelo-%E2%80%98empreendedor%E2%80%99-afeta-a-esquerda

5 Título de um livro de Maurizio Lazzarato disponível em francês: La fabrique de l’homme endetté: Essai sur la condition néolibérale. Éditions Amsterdam, 2011.

Razão neoliberal

Por Ulysses Ferraz

Sob o pretexto de um Estado mínimo, os governos de Ronald Reagan, George H. W. Bush e Margaret Thatcher construíram nos anos 1980/90, em seus respectivos países, Estados de segurança máxima. Colocaram em prática uma lógica de opostos. De mínimos e máximos. Uma lógica binária de minimização ou maximação. Minimizar regulamentações, impostos, benefícios sociais, direitos trabalhistas, educação e saúde públicas. Maximizar desigualdades, concentração de renda e riqueza, privatizações, terceirizações, aparatos repressivos, gastos militares, serviços de informações e espionagem. Maximizar o poder dos mercados financeiros e bancos. Maximizar a riqueza dos ricos. Maximizar bônus dos altos executivos. Minimizar salários da classe trabalhadora.

Sob o pretexto da liberdade, esses governos alimentaram bolhas especulativas, declararam guerras, cortaram benefícios sociais historicamente adquiridos e, ao contrário do discurso de austeridade fiscal que venderam para o mundo, produziram vultosos déficits públicos. Invocaram a liberdade para proteger suas economias, bombardear países, incentivar a indústria bélica, garantir suprimento barato de combustíveis fósseis e acessar mercados externos em condições vantajosas. Invocaram a liberdade para proteger seus mercados internos, ignorar acordos ambientais, instaurar o terror e conservar o antigo modo de fazer negócios. Invocaram a liberdade para implantar um sistema de vigilância próximo à distopia orwelliana, quando exerceram o controle mais abrangente e repressivo do Estado sobre o cidadão em tempos de democracia.

Sob o pretexto de um Estado mínimo e da liberdade máxima, esses governos garantiram o máximo para quem já possuía o máximo. Ofereceram o mínimo para quem já possuía o mínimo. Gastaram recursos escassos para atender apenas a seus grupos de interesse. Ofereceram sempre o mínimo em retornos sociais para a maioria da população. No final das contas, maximizaram a miséria para garantir o máximo de riqueza, renda e luxo para um mínimo de pessoas já privilegiadas. Com o respaldo intelectual de economistas vencedores de prêmio Nobel e prestigiosos intelectuais, conferiram legitimidade moral para o egoísmo, para a ganância e para a destruição. Alastraram essas práticas para o resto do mundo em velocidade máxima, com um mínimo de resistência. Criaram mecanismos simbólicos e materiais para disseminar suas ideologias. Com eufemismos cínicos, construíram uma linguagem própria, uma gramática específica, para a produção de discursos pretensamente científicos e a fabricação de consenso. Capturaram os porta-vozes da grande mídia, das classes políticas e da ilustre academia. Em escala global. Deram luz a uma nova hegemonia. Lançaram trevas sobre os desfavorecidos mundo afora. E chamaram tudo isso de nova economia.

Mulas-sem-Cabeça, Duendes, Pererês e a mão invisível

Você pode escolher não ouvir. Você pode escolher não ver. Você pode escolher ser omisso e alienado. Mas, nesse caso, sua opinião será desinformada e dogmática. Não será antecipadamente desprezível, claro. Você será lido, será ouvido mas, sinceramente, daria no mesmo se não fosse.

Se você ainda acha, como acham alguns poucos economistas jurássicos ainda existentes no mundo, crentes e fanáticos, que seguem esta antiga “seita” esotérica, que o mundo funciona hoje como Adam Smith o descreveu há 240 anos, siga em frente.

Você sempre será livre para acreditar em duendes, em mulas-sem-cabeça, no Saci-Pererê, na concorrência perfeita, no equilíbrio do mercado garantido pelo perfeito funcionamento do sistema de preços e pelos mercados desregulados.

Se você acredita em fantasmas, assombrações, vampiros e na mão invisível, siga em frente.

Se sua opção é considerar que os incêndios são resultados naturais do capitalismo avançado e que é melhor conviver com estes incêndios, pois assim está muito bom e que, portanto, não há nada a ser mudado, sigam, todos, em frente, condenados ao desemprego, ao subemprego e aos salários de subsistência.

Se você acha que a brutal desigualdade, que se aprofunda a cada dia, é natural e pode ser acomodada e absorvida pelos sistemas políticos. Se você acha que o tecido social resiste à tanta miséria, desigualdade, vida sub-humana, crimes e guerras, então deixa assim.

Se você acha que seu aprisionamento nas teias do mercado que domina todos os segmentos da vida em sociedade é ser livre, acomode-se e curta a sua gaiola de ouro simbólica.

Por outro lado, se diante das gritantes evidências, você começou a desconfiar que existem peças que não encaixam no modelo mental fornecido pela economia neoliberal, eu sugiro, existem opções.

Se você começou a desconfiar que a realidade dos últimos 30 a 40 anos da economia global vai na direção contrária ao que lhe ensinaram seus professores de economia e os espertos econômicos da grande mídia de interesses, eu lhe asseguro, as coisas do mundo não são assim por natureza, elas são criações sociais desenhadas assim, com objetivos finais bem claros. E, lamento informar, você será, mais cedo ou mais tarde, excluído do jogo.

A financeirização do mundo econômico atacou as principais economias globais e debocha, todos os dias, dos economistas neoliberais de todos os matizes. As mazelas, os problemas, insolúveis, estão presentes e evidentes demais para que as pessoas continuem fingindo normalidade.

Receitam jogar mais gasolina no fogo, para solucionar o grande incêndio que tomou conta da economia global. As fórmulas adotadas são sempre mais austeridade e mais recessão. Em uma parte do mundo, austericídio, com juros estratosféricos, em outra parte, mais austericídio com inundação monetária (quantitative easing).  Na corrida entre países para ultrapassar os demais no campeonato da produtividade, vão embora os empregos.

Na corrida pela concentração de renda e pela desigualdade crescente de riqueza e renda, vão embora os mercados.

Há um evidente descompasso entre o aumento das rendas e das riquezas dos proprietários dos meios de produção e dos rentistas, que representam parcela ínfima da população global,  e a estagnação ou lento aumento das rendas e riquezas dos proprietários de força de trabalho.

Hoje há, no mundo, um hiato, um “gap”, entre a necessidade de consumo e a renda disponível das pessoas para preencher este hiato. O buraco está sendo preenchido com endividamento global das famílias.

Nos países de juros extremamente baixos isto é tóxico, como demonstrou a crise do “subprime”, iniciada nos EUA em 2007/2008, que se alastrou pelo mundo nos anos seguintes. Nos países de juros estratosféricos, como o Brasil, isto é fatal.

Esperar que o mercado resolva as distorções que ele próprio, solto, irresponsável e desregulado causou no mundo todo a partir de 2007, é o mesmo que esperar que um viciado em crack encontre sua cura no aumento do consumo dessa droga. Não tem lógica.

Existem soluções. Começa pela eliminação da cultura do capital e do consumismo predatório. Pelo equilíbrio de nossas contas pessoais com a racionalização do consumo. Nosso bolso, nossa vida e a natureza agradecem. O ideal seria eliminar a propriedade individual dos meios de gerar riqueza, este seria o caminho lógico. Não sendo possível, que se comece com melhor distribuição da riqueza gerada pelo trabalho humano. Se começássemos a lembrar que somos todos seres humanos, ajudaria esse novo, necessário, pacto pela vida em sociedade. Bom, este seria o começo. O resto deveria ser uma construção coletiva, em mutirão. Imagine …

 

 

 

 

 

 

 

 

Vende-se doutrina econômica fora de uso, por Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo

Compartilho artigo publicado na Carta Capital.

Falamos, alertamos, repetimos, mas parece que a gerontocracia que tomou o poder, todos políticos velhos e experientes em manhãs e artimanhas, não nos ouvem.

Talvez não seja questão de idade, mas de teias de aranha nos ouvidos e escorpiões na língua, pois o grupo golpista, além de ser composto por políticos e gestores idosos, é apoiado por jovens imberbes, igualmente fundamentalistas, raivosos e surdos.

Paulo Martins

Por Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo.

O nacionalismo xenófobo de Donald Trump nos Estados Unidos, o referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia, a tensão entre a Alemanha e a política monetária do senhor Mario Draghi na Zona do Euro, o Japão à beira da recessão e a desaceleração chinesa são sintomas dos achaques e estertores que acometem o arranjo geoeconômico erigido nos últimos 40 anos.

Desde o fim dos anos 1970, a reestruturação do capitalismo, ora em risco, envolveu mudanças profundas no modo de operação das empresas, na integração dos mercados e, sobretudo, nas relações entre o poder da finança e a soberania do Estado.

O verdadeiro sentido da globalização é o acirramento da concorrência entre empresas, trabalhadores e nações, inserida em uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar.

Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional capenga, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes empresas e instituições financeiras à escala mundial. A centralização do controle impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção.

A convergência entre a centralização do controle pela finança, a fragmentação espacial da produção e a centralização do capital financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa.

Até os anos 1960 do século XX, a Revolução dos Gerentes estava comprometida com a obsessão pelo crescimento da grande empresa no longo prazo. Dotada de uma estrutura burocrática hierarquizada, a grande corporação abrigava com segurança os blue collars no chão de fábrica e, nos escritórios, acomodava a classe média white collar em bons empregos e saudáveis remunerações.

Naqueles tempos, a cada 12 dólares gastos na compra de máquinas ou construção de novas fábricas, apenas 1 dólar era despendido com os dividendos pagos aos acionistas. Nas décadas seguintes, a proporção começou a se inverter: mais dividendos, menos investimento nas fábricas e na contratação de trabalhadores.

A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou a compra das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos.

A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos, açoitadas com o guante da marcação a mercado.

A migração das empresas para as regiões onde prevalecem relações mais favoráveis entre produtividade, câmbio e salários desatou a “arbitragem” com os custos salariais e estimulou a flexibilização das relações de trabalho, na verdade a desqualificação e eliminação de trabalhadores impostas pelo avanço das tecnologias da informação e da automação na indústria e nos serviços. A evolução do regime do “precariato” constituiu relações trabalhistas que se desenvolvem sob as práticas da flexibilidade do horário.

A flexibilização das relações trabalhistas não só subordinou o crescimento da renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas, como aprisionou definitivamente os gastos de consumo ao endividamento.

O circuito de formação da renda na economia como um todo começa a falhar. O desemprego e a queda dos rendimentos dos trabalhadores reduzem o gasto das empresas no pagamento de salários e também desestimulam a aquisição de meios de produção de outras empresas.

Em seu livro The Road To Recovery, o economista Andrew Smithers demonstra que, no período de 1981 a 2009, o investimento das empresas privadas calculado sobre o PIB caiu 3 pontos porcentuais nas economias desenvolvidas. O investimento deixou de apresentar o comportamento cíclico de outros tempos em que os gastos com Capex acompanhavam as flutuações da economia.

Assim, a grande empresa contemporânea move a economia capitalista na direção da concentração da riqueza e da renda. Enredada nas armadilhas da acumulação financeira e enfiada no pântano da liquidez curto-prazista, empurra a economia global para a estagnação secular, falhando com grande escândalo em sua capacidade de gerar empregos. Um curto-circuito nas cadeias de geração e de apropriação do valor.

As evidências indicam que a dinâmica da economia mundial aponta mudanças estruturais que descortinam uma nova fase, edificada entre tropelias e contradições. O ranger de dentes levou o FMI a questionar, neste mês, as ideias e princípios do neoliberalismo econômico.

O artigo “Neoliberalism: Oversold?” aborda especificamente os efeitos de duas políticas inscritas na agenda da globalização neoliberal, a remoção das restrições ao movimento de capitais (liberalização das contas de capital) e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e o nível da dívida).

O estudo afirma que alguns influxos de capitais, como investimento direto estrangeiro, parecem impulsionar o crescimento no longo prazo, mas o impacto de investimentos de portfólio e, especialmente, de influxos de aplicações especulativas de curto prazo não estimula o crescimento e muito menos garante um financiamento estável do balanço de pagamentos.

A ocorrência, desde 1980, de aproximadamente 150 convulsões com influxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard Dani Rodrik de que esses “dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional, eles são a história principal”.

Segundo o estudo, as políticas de austeridade não só geram substanciais custos ao bem-estar pelos canais da oferta, como deprimem a demanda e o emprego. A noção de que a consolidação do orçamento pode ser expansionista (isto é, aumenta o crescimento e o emprego), por elevar a confiança do setor privado e o investimento, não se confirmou na prática.

Episódios de consolidação fiscal foram seguidos por reduções mais do que expansões no crescimento. Na média, a consolidação de 1% do PIB eleva a taxa de desemprego em 0,6% no longo prazo, e o Coeficiente de Gini (concentração de renda) em 1,5% dentro de cinco anos. O estudo conclui que os benefícios das políticas da agenda neoliberal aparentemente foram um pouco exagerados.

No aguardo de dias melhores e prestes a ser banido de quase todas as economias do globo, o neoliberalismo procura exílio em um país tropical com vista para o Atlântico.

Three Decades of Neoliberalismo in Mexico: The Destruction of Society

Three Decades of Neoliberalism in Mexico: The Destruction of Society
DEZEMBRO 13, 2015
Asa Cristina Laurell

Neoliberalism has been implemented in Latin America for about three decades. This article reviews Mexico’s neoliberal trajectory to illustrate the political, economic, and social alterations that have resulted from this process. It finds that representative democracy has been perverted through fear, putting central political decisions in the hands of power groups with special interests. The border between the state of law and the state of exception is blurred. Economic structural adjustment with liberalization and privatization has provoked recurrent crisis, but has been maintained, leading to the destruction of the national productive structure in favor of supranational corporations, particularly financial capital. The association between criminal economy and economic criminality is also discussed. The privatization of social benefits and services requires state subsidies and allows the privatization of profits and the socialization of losses. The social impact of this process has been devastating, with a polarized income distribution, falling wages, increased precarious jobs, rising inequality, and extreme violence. Health conditions have also deteriorated and disorders associated with violence, chronic stress, and a changing nutritional culture have become dominating. However, in Latin America, massive, organized political and social mobilization has broken the vicious neoliberal circle and elected progressive governments that are struggling to reverse social and economic devastation.

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Publicado em Plataforma Política Social