Provas do Intercept, por Pedro Munhoz

Vocês reclamam que as reportagens do Intercept não derrubaram o Moro, que faltou isso, que faltou aquilo.

Vou ser bem claro: o que vazou, em qualquer ordenamento jurídico sério, seria mais do que suficiente para anular as decisões da lava jato. É material quente. Juiz comandando o órgão acusador, ditando estratégias, isso é a negação do nosso sistema jurídico. Isso é a morte do nosso sistema penal. E a gente sabia disso já, só não tínhamos provas.

Mas não vivemos, nunca vivemos, no sistema processual penal traçado pela Constituição. Estivemos, desde sempre, adulando a hipocrisia. O sistema é bom quando nos serve, se não nos serve, é cadeia.

A gente aplaude prisão arbitrária de inimigos, aplaude quando a prisão arbitrária nos favorece.

Eu sei há muito tempo que isso tudo é uma engrenagem política, mas tem quem invoque a lei como se ela, de fato, tivesse sido aplicada universalmente alguma vez, algum dia.

A população não manja processo penal. Para a maioria das pessoas os direitos e garantias individuais nunca existiram em lugar nenhum, só no papel. E o papel, onde está escrita a Constituição, para a maior parte da população, serve nem mesmo para a higiene íntima.

O simplório do interior não mente quando diz que o que ele fez é normal. É ilegal pra caralho, mas é normal sim. Acontece. Quando é pra ferrar, encarcerar, desumanizar, a engrenagem está azeitada. Não só com Lula, com muita gente.

O que a gente não pode fazer é naturalizar esse tipo de vício. Achar que o que é grave é pouco.

É muito errado sim. E se você acha que é normal, que é bobo, banal, juiz coordenar órgão acusatório, ditar ritmo, sugerir testemunhas, atuar em conjunto, você faz parte do problema.

Não esperem por nada além disso, que já saiu, que já foi vazado. Isso já é grave o bastante.

E não queira que o conteúdo vazado cause, automaticamente, uma comoção geral, automática. Ninguém se importa com o respeito às garantias constitucionais porque elas sempre só existiram no papel.

Cabe a nós divulgar sua existência. Será uma agradável novidade para muita gente.

Estamos reféns da destruição absoluta, por Rogério Godinho

Estamos reféns da destruição absoluta. Da violência. E da morte.
Elas são filhas da ignorância sem limites, em tal dimensão que alimenta um quarto rebento, a desconfiança cega. É essa incapacidade do cidadão de compreender, de se preocupar com o vulnerável e de acreditar na informação relevante que torna tão difícil neste momento demonstrar o que o Governo Bolsonaro está fazendo.
É a ignorância que permite o avanço da morte.
Um fato que pode ser constatado, por exemplo, na recente tentativa explícita de Bolsonaro de atropelar o Congresso, em seu ato mais autoritário desde a posse. E que pode provocar um retrocesso de mais de 100 anos para os indígenas.
Semana passada, uma vizinha comentava a triste situação do Brasil, dizendo que só uma pessoa (ou grupo) que viesse fora desses “partidos” poderia nos salvar. Este é o perfil comum daquele que cai nas garras do populismo, uma pessoa boa, realmente bem-intencionada, que ignora a marcha da morte que se aproxima, enquanto desconfia cegamente e rejeita completamente quem alerta, inclusive os poucos que estão agindo neste momento.
Não adiantou muito eu explicar para a minha vizinha que essa mentalidade iludida existe desde sempre, precedendo mesmo a própria democracia. Esse desejo de unidade depositado em um suposto salvador, que heroicamente lideraria o povo. O pensamento é antigo, com um histórico de fracassos.
Esta semana, mais uma vez os partidos mostraram como são importantes.
O presidente afrontou o Congresso ao reeditar uma MP que já havia sido rejeitada. A manobra começou em janeiro, quando Bolsonaro transferiu para a Agricultura a política de terras indígenas, retirando pela primeira vez a competência do órgão adequado desde 1910, quando Marechal Rondon criou o Serviço de Proteção ao Índio. Felizmente, o Congresso derrubou a MP.
Como um menino mimado e autoritário, o presidente bateu o pé na quarta-feira passada, insistindo na mudança e reeditando a MP.
A insistência é ofensa grave à democracia. É atitude de monarca absolutista, da substância do tema ao atropelo institucional.
Por isso, dois dias depois, a Rede Sustentabilidade entrou com ação de inconstitucionalidade no Supremo. Foi seguida por mais três partidos, PT, PDT e PPS.
O tema não deveria ser exclusivo de campo ideológico, mas do bom senso, independentemente de grupos. Foi um militar, Rondon, quem criou o predecessor do que viria ser a Funai. Foi também um militar deste governo, o general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas, que alertou que há gente nesse mesmo governo que “quando fala sobre indígena, saliva ódio aos indígenas”.
Este é o ódio filho da ignorância, que sempre utilizou como ferramenta a narrativa do falso heroísmo e da falsa superioridade. Um fenômeno muito presente na nossa história, de governantes que sempre fizeram de tudo para esconder quem eram os indígenas e nos enganavam a respeito daqueles que os massacravam. Quem era morto nós não enxergávamos, enquanto que quem matava nos era apresentado com um campeão do desbravamento. Tudo para esconder que o homem, supostamente civilizado, iniciou o genocídio indígena desde que colocou os pés nesta terra.
Começamos por uma falsa superioridade da religião, prosseguimos com uma falsa idealização do indígena romântico, financiada pessoalmente por Pedro II em nossas artes, em cada livro e em cada pintura. O extermínio era vendido como algo benéfico para o exterminado, que estendia suas mãos ao homem civilizado, implorando por salvação. É só ler os clássicos, é só ir aos museus e ver os quadros. Nos jornais, cientistas e intelectuais defendiam o massacre, pois os índios eram um impedimento ao progresso da nação.
Essa história começou a mudar com Rondon em 1910, mas o avanço institucional não significou que a situação tivesse sido resolvida. Nossa percepção do indígena não mudou significativamente. Continuamos não enxergando. E os índios continuaram morrendo de tiro, facão e doença, em um ritmo sem paralelo no mundo. O genocídio acelerou durante o período militar, com milhares chacinados, um registro que até hoje não temos preciso. Até 2017, ainda éramos o país mais letal para o homem do campo, grande parte dessa estatística baseada na morte indígena.
O que nos causa horror é que podemos retroceder a um período pré-Rondon. Direitos garantidos em cinco cartas constitucionais (1934, 1937, 1946, 1967, 1988) podem ser revistos ou ignorados. Direitos que eram insuficientes, porém significavam a única ferramenta de defesa do indígena, a única base sobre a qual construir uma política justa.
Agora, o governo procura eliminar essas barreiras, para que a morte continue dizimando, mais rápido, mais feroz.
Sem que nenhum de nós fique sabendo.
Para que a nossa ignorância permita o avanço do ódio.

NÃO SÃO PRIVADOS, por Eugênio Aragão

Do Jornalistas Livres
Eugênio Aragão destrói tese de violação de privacidade: São de celulares funcionais!
O ex-Ministro da Justiça e membro do Ministério Público Federal de 1987 até 2017 explica que as conversas de procuradores e juízes via iPhones funcionais passam por servidor institucional e devem, com exceções, ser transparentes ao público

por Jornalistas Livres 11 junho, 2019
NÃO SÃO PRIVADOS!
Há tempos tenho chamado a atenção de colegas para o fato de que a divulgação de conteúdos de conversas da lista @membros não configura violação de privacidade, a uma porque tal lista é hospedada em servidor institucional; a outra porque essas conversas tratam de matéria de interesse público, não sendo lícito a procuradores portarem-se, nesse âmbito, de forma conspirativa.Quem acompanhava as conversas internas do MPF na rede @Membros sabia, desde sempre, da descarada politização do ambiente corporativo, marcado por profunda “petefobia”, expressão que usei numa entrevista em 2011, logo após tomar posse como corregedor-geral do órgão. O tom militante e de desqualificação de quem pensava diferente era ali uma constante. Nem ministros do STF saíam incólumes, sendo alvos de chacota e caçoada. Como corregedor-geral, cheguei a mandar aviso à rede, advertindo que os deveres de urbanidade e de decoro também se aplicavam às comunicações internas.
A mim não surpreendeu o teor das mensagens trocadas por personagens da famigerada Operação Lava-Jato e o juiz de piso Sérgio Moro, por mais que choca outsiders. Essas mensagens mostram claramente a promiscuidade que prevalece na fusão das atividades de investigar, acusar e julgar nos processos dessa operação. Temos ali promotores que se portam feito meganhas é um juiz que é acusador, todos articulados num projeto político de “limpar o Congresso” e de impedir que o PT fosse vitorioso nas eleições presidenciais de 2018.

Agora que o caldo derramou e ficou provado o que muita gente desconfiava – a persecução seletiva de atores políticos – os promotores desesperados se apressam em se fazer de vítimas de “uma ação criminosa” de invasão de seus celulares usados “para comunicação privada” e “no interesse do trabalho”. Mostram revolta contra o que denominam “violação da esfera privada”.

Não vou por ora examinar o conteúdo vazado, por si só de extrema gravidade no que se refere à conduta de juiz e promotores. Vou me ater, aqui, a duas questões apenas: a suposta invasão “criminosa” de seus dispositivos de comunicação e a confusão entre ações de investigar, acusar e julgar, no caso do triplex do Guarujá.

Um aspecto parece ter passado despercebido no noticiário sobre o vazamento: os celulares usados por Moro e Dallagnol eram de serviço. Juízes e membros do ministério público têm uma mordomia pouco divulgada. Todos recebem, à custa do erário, um iPhone, um iPad e/ou um laptop para uso no exercício de suas funções. Recebem, também, uma cota mensal de mais ou menos quatrocentos reais em chamadas e transferência de dados. É prática geral entre esses atores usar o celular de serviço para fins privados também, dentro dessa cota. Somente chamadas de roaming internacional precisam ser justificadas.

Falar em direito à privacidade em dispositivo de comunicação de serviço é impróprio. O patrão tem direito de saber do uso que dele é feito por seus empregados. No caso do servidor público, o patrão somos nós, os que, com os impostos que pagamos, custeiam mais essa sinecura. Somente segredos de estado podem nos ser subtraídos do conhecimento. Mas, atos ilícitos, como a conspiração política contra a soberania popular, a visar o impedimento da vitória de um dos candidatos no pleito presidencial, seguramente não podem se revestir dessa qualidade secretiva.

Há tempos tenho chamado a atenção de colegas para o fato de que a divulgação de conteúdos de conversas da lista @membros não configura violação de privacidade, a uma porque tal lista é hospedada em servidor institucional; a outra porque essas conversas tratam de matéria de interesse público, não sendo lícito a procuradores portarem-se, nesse âmbito, de forma conspirativa. A reação da turba virtual, diante desse aviso, sempre foi histriônica. Alguns até avisam em suas mensagens que a divulgação de seu conteúdo poderia dar margem à violação de sigilo funcional.

Só rindo mesmo: como esse povo gosta de se fazer de importante! Falam um monte de asneiras sobre atores públicos e acham que podem se escudar na lei para se tornarem inatacáveis.

NO CELULAR FUNCIONAL NÃO É DIFERENTE. SEU USO DEVERIA SER RESTRITO A ATOS DE SERVIÇO, NÃO SE ESTENDENDO À PRÁTICA DE ILÍCITOS OU DE COMUNICAÇÃO PESSOAL. ALGUNS DESSES ATOS DE SERVIÇO ATÉ PODEM SE REVESTIR DE NATUREZA CONFIDENCIAL, APESAR DE NÃO SER MUITO INTELIGENTE PRATICÁ-LOS ATRAVÉS DE DISPOSITIVO SUJEITO À INVASÃO E MUITO MENOS CONSERVÁ-LOS NO BUFFER POR MAIS DE DOIS ANOS! QUEM ASSIM PROCEDE ESTÁ CONSCIENTEMENTE ARRISCANDO O VAZAMENTO DE SUA COMUNICAÇÃO RESERVADA E, COM ISSO, TALVEZ SEJA ELE OU ELA QUE DEVESSE SER RESPONSABILIZADO POR DOLO EVENTUAL NA PUBLICIZAÇÃO DE COMUNICAÇÃO FUNCIONAL CONFIDENCIAL.
Não há, pois, legitimidade no argumento da vitimização dos procuradores e do juiz de piso pelo ataque a seus celulares. Mas, além disso, o chororô da nota do ministério público em decorrência de publicação, pelo sítio do Intercept, peca contra o princípio do “ne venire contra factum proprium” e, assim, é mais uma prova de falta de boa fé da turma da Operação Lava-Jato.

É QUE, QUANDO CRIMINOSAMENTE TORNARAM PÚBLICO DIÁLOGO TELEFÔNICO ENTRE A PRESIDENTA DILMA E O EX-PRESIDENTE LULA, ÀS VÉSPERAS DA POSSE DESTE NO CARGO DE MINISTRO-CHEFE DA CASA CIVIL, PROCURADORES E MAGISTRADO – PRINCIPALMENTE ESTE ÚLTIMO – SE EXCULPARAM NO INTERESSE PÚBLICO DO CONTEÚDO PARA MANDAR A LEI ÀS FAVAS.
E as provas sobre conspirações de Moro e Dallagnol contra o poder legislativo que queriam “limpar” ou contra as eleições presidenciais que queriam conduzir de forma a que não se elegesse Haddad, não são elas, por acaso, de interesse público? Ainda mais quando encontradas em celulares funcionais?

Não há desculpa. Pode até ser que, na prática recorrente dos tribunais, de blindarem Sérgio Moro, digam que as conversas vazadas não servem para condenar juiz e promotores na esfera penal, mas, seguramente, elas bastam para colocar em xeque a persecução penal contra Lula e a legitimidade do pleito presidencial de 2018.

NO QUE DIZ RESPEITO À PROMISCUIDADE DA RELAÇÃO ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO E O JUIZ, REVELADA PELO VAZAMENTO DE SUAS COMUNICAÇÕES, PASSOU DA HORA DE REPENSAR A PROXIMIDADE ENTRE ACUSAÇÃO E MAGISTRATURA NO BRASIL.

Quando atuava como subprocurador-geral da república junto ao STJ e, até mesmo antes, quando atuava como procurador regional no TRF da 1ª Região, incomodava-me profundamente o nosso papel, do MPF, nas sessões, sentados ao lado do presidente, com ele podendo até cochichar, a depender da empatia recíproca. Enquanto o advogado fazia sua sofrida sustentação oral da tribuna, não raros eram comentários auriculares entre juiz e procurador. Depois, o procurador era convidado a saborear o lanchinho reservado dos magistrados, em que os casos eram frequentemente comentados. Já os advogados ficavam do lado de fora, impedidos de participar dessa festa do céu. Produzia-se, assim, a mais descarada assimetria entre a defesa e a acusação.

O argumento dos colegas era de que o ministério público ali não era parte e, sim, fiscal da lei. Façam-me rir! Do ponto de vista estritamente dogmático, essa cisão entre os papéis do ministério público é ilusória, já que o órgão se rege pelos princípios institucionais da unidade e da indivisibilidade (art. 127 da Constituição). O ministério público é sempre parte e custos legis concomitantemente. Do ponto de vista prático, são pouquíssimos os procuradores que se imbuem do papel de fiscal imparcial. O punitivismo há muito tempo transformou a grande maioria em ferrabrás mecanizada. Não raro fui criticado por meus pares de dar parecer favorável à concessão de ordem de habeas corpus contra atuação de colega em primeiro grau! “Como assim? Ministério público acolhendo ordem de habeas corpus? Não pode!!!”.

Nesse contexto, é preciso barrar essa proximidade entre promotores e juízes, tirando os primeiros do pódio do magistrado, para colocá-los no nível das partes. Nos tribunais, está na hora de tirá-los do lado do presidente. Devem ocupar a tribuna para suas sustentações e voltar a seus gabinetes depois dessa tarefa, para dar andamento aos processos sob sua responsabilidade. Não faz sentido nenhum, em plena era do processo acusatório, dar destaque ao acusador, em detrimento da paridade com os advogados.

DELTAN DALLAGNOL MOSTROU O QUANTO É DELETÉRIO, PARA O DEVIDO PROCESSO LEGAL E PARA O JULGAMENTO JUSTO, A CONFRARIA COM SÉRGIO MORO. FICAVAM PROMOTOR E JUIZ TROCANDO FIGURINHA SEM PARTICIPAÇÃO DA DEFESA. O JUIZ SE DAVA O DIREITO DE PALPITAR NA ESTRATÉGIA INVESTIGATIVA SOBRE CRIMES QUE DEPOIS VIRIA A JULGAR E O PROMOTOR DEIXAVA O JUIZ “À VONTADE” PARA INDEFERIR SEUS PLEITOS, SE NÃO COMBINASSE COM A ESTRATÉGIA COMUM. UM ESCÂNDALO, TOUT COURT.

Esperam-se consequências dessas revelações, pois, muito mais do que a profunda injustiça da prisão de Lula por uma condenação “arreglada” entre magistrado e acusação, estamos diante de evidências de manipulação eleitoral. Ou o país tira lições dessa atuação criminosa de atores judiciais, ou pode sepultar sua democracia representativa, porque já não haverá mais respeito pelas instituições que devem protegê-la.

Eugênio Aragão, jurista e advogado