O chilique da madame paneleira no Festival de Teatro de Curitiba

O chilique da madame paneleira no Festival de Teatro de Curitiba
Por Diario do Centro do Mundo – 30 de março de 2018

Cena da peça “Manual de Autodefesa Intelectual” (foto: Bob Sousa)
Publicado no Facebook de José Carlos Portella Jr.

Ontem no Festival de Teatro, na abertura da peça “Manual de autodefesa intelectual”, presenciei uma cena digna da República de Curitiba.

Enquanto a atriz Fernanda Azevedo fazia um discurso em prol das minorias violentadas na nossa democracia de fantoche, uma senhora curitiboca (pela arrogância devia ser moradora do Batel Soho) gritou da plateia que não tinha pago pelo ingresso para ouvir discurso político.

Aquilo parecia ter sido arranjado pela direção da peça, de tão escrota que foi a intervenção da senhora classe média-curitiboca-batedora de panela. Não podia acreditar que alguém pudesse ser tão arrogante a ponto de interromper uma artista no palco para vomitar sua indigência intelectual.

Depois de receber uma vaia da plateia, que gritava “fora” para a dileta madame arrogante, a atriz deu uma resposta à altura de quem já antecipava a hostilidade às artes e à política que viriam da cidade modelo de fascismo.

O que a madame não esperava é que a peça era toda, adivinha, política! O tema principal da peça era a manipulação das massas pela religião, pela publicidade, pela política institucional burguesa, pela imprensa e pelas redes sociais.

A coitada da madame levou uma sova de 2 horas de peça que tratava de POLÍTICA. O discurso vazio, arrogante e violento da madame (que “pagou pelo ingresso e logo teria que receber das ARTES aquilo que ela pagou”) é sintomático: a direita brasileira se transformou numa massa de gente odiosa, que apenas grita, que não reflete e que tem aversão à crítica (bom, basta ver a coluna da Gazeta do Povo que está circulando por aí chamando as universidades públicas de “hospícios de esquerdopatas”), que acha que o mundo circula entorno de seus umbigos sujos.

Tente debater qualquer tema com a direita brasileira. Fica claro seu raquitismo de argumentos, sua pobreza até mesmo de vocabulário e sua fixação por um passado idílico de ORDEM que nunca existiu.

A peça tratou justamente disto: como a direita usa de paralogismos e pensamentos circulares para estruturar um discurso de pura falácia e justificar todo tipo de violência real e simbólica contra quem eles entendem que merece desaparecer ou perecer.

Quem nunca se deparou com as seguintes pérolas da direita: “Freixo critica a violência policial, mas pediu escolta da polícia. Logo, Freixo é um hipócrita”. “Se a opinião pública não lamenta a morte de policiais, por qual razão lamentar a morte da Marielle?” “Você critica a lava jato, logo você apoia a corrupção”. “Você critica o auxílio moradia dos juízes, logo você é invejoso”.

Não precisa estudar tratados de lógica para perceber como as conclusões da direita são de uma indigência sem par.

Não à toa a “elite” curitibana irá votar no Bolsonaro, mesmo sendo mulher e LGBT. Ontem tive a exata dimensão do que a ignorância é capaz: fez uma madame do Batel Soho sair de casa para assistir a uma peça sobre manipulação de massas e atacar a atriz que justamente mostrava pela linguagem artística como a manipulação gera o ódio às minorias.

A decadência da República de Curitiba ali, ao vivo e em cores.

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Escravos felizes: quando discursos prontos liberam do esforço de pensar

Escravos felizes: quando discursos prontos liberam do esforço de pensar
Marcia Tiburi
28 de Março de 2018

Revista Cult

Uma das formulações mais ricas da história da filosofia é a chamada “dialética do senhor e do escravo”, que aparece na Fenomenologia do Espírito, obra de Friedrich Hegel do começo do século 19. Fenomenologia deixa de ser um termo complicado se pensarmos na descrição do caminho que leva da “consciência sensível” até o “saber absoluto”, ou seja, da percepção mais simples sobre as coisas até a complexidade da verdade.

Em nossa época, estamos desacostumados ao trabalho da compreensão e a ideia da verdade não tem mais valor coletivo, vide o lugar das fake news que avançam como indústria da deturpação de fatos e falas. Enquanto isso, meios de comunicação e toda sorte de discursos prontos liberam as pessoas do esforço de discernir e pensar. Para citar um exemplo, um dia desses um ministro do STF disse impropérios a um outro e seu discurso tornou-se, para muita gente, uma espécie de desabafo gracioso. Repetido em memes e camisetas, perderam-se as “mediações” em jogo em uma fala como aquela.

Se entendêssemos as “mediações”, ou seja, os interesses, os contextos, os jogos de poder envolvidos nos discursos que se pretendem como verdades, talvez nos tornássemos um pouco mais senhores de nossas opiniões. Mas poucos se ocupam em entender como as opiniões são fabricadas e vendidas como verdades no mercado das ideias.

“Mercado de ideias” não é apenas uma metáfora econômica para algo que não parece ser um “produto” e, portanto, não parece estar embalado para a viagem ideológica do momento. Ora, a ideologia está para o universo do pensamento assim como a usura está para a economia. Na bolsa de valores dos pensamentos prontos, todos sabem que as ideias se tornaram um capital.

O dono do pensamento único é, literalmente, o grande capitalista. A hiperprodutividade das frases de efeito nas redes sociais é a parte que cabe ao cidadão, trabalhador vigiado de perto pelo sistema midiático-religioso, para servir como replicante. O sistema econômico-político depende do controle da mentalidade popular e a mágica desse tipo de mercado – altamente publicitário – é fazer cada cidadão acreditar que é pensamento próprio aquilo que, na verdade, estava na prateleira por um peço alto. “Escravos de ideias” são escravos felizes, não devem perceber que elas são desfavoráveis às suas próprias vidas.

Sustentar a capacidade de lutar pela independência do pensamento implica a dialética, ou seja, a luta contra as corporações proprietárias dos meios de produção dos discursos, especializadas em construção de narrativas. Elas atuam como senhores a controlar a consciência da população. Escravização televisiva e escravização digital pelas redes sociais ocultam o “trabalho espectral” e seu caráter de exploração. Reduzida a uma espécie de lazer controlado ou de controle prazeroso, a liberdade de pensar e de agir já não é uma questão.

De certo modo, a dialética do senhor e do escravo – como luta pela independência da consciência que nos torna senhores ou escravos de ideologias econômicas, religiosas, morais ou políticas – foi interrompida em nossa época. Os escravos foram levados a acreditar que estão se divertindo ao serem explorados. Nesse contexto, o questionamento continua a ser a arma rara – e cara – que precisa estar disponível para a emancipação do povo.

A DOMINÂNCIA DO FINANCISMO !, por Paulo Kliass

A DOMINÂNCIA DO FINANCISMO !
por Paulo Kliass, doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

“Uma das maiores dificuldades para se transformar uma realidade portadora de injustiça e desigualdade é o seu processo de “naturalização” e sua aceitação de forma passiva por parte de setores expressivos da sociedade. Fenômeno semelhante tem ocorrido ao longo das últimas décadas com a tendência à financeirização em nossas terras.
É bem verdade que o movimento que assegura a consolidação da hegemonia dos interesses do setor financeiro no conjunto do sistema econômico não é exclusividade tupiniquim. A forma de organização do capitalismo contemporâneo globalizado apresenta essa característica por todos os continentes. As finanças dominam e impõem suas condições diante dos demais setores de atividade da economia e subjuga todas as classes sociais.
A evidência escandalosa do caso brasileiro, no entanto, é algo que chama atenção exatamente por não haver a menor preocupação em dourar a pílula ou minimizar o grau de espoliação praticada contra o conjunto dos demais atores e setores sociais. A dominância do financismo não se preocupa em pedir desculpas e nem busca argumentos mais palatáveis para justificar sua própria ação predadora.
A face mais visível desse movimento talvez seja a presença dos bancos e demais instituições de natureza financeira em nosso meio. Há décadas que tais conglomerados registram ganhos impressionantes em seus resultados operacionais. A cada exercício anual as poucas instituições de porte mastodôntico disputam entre si a primazia das cifras bilionárias. É o conhecido jogo para se posicionarem entre os primeiros lugares depois de divulgarem seus números contábeis. A expressão “lucro bancário” virou pleonasmo nesse campo minado dos oligopólios.
Ao longo de 2017, por exemplo, os lucros das instituições bancárias em seu conjunto atingiram o patamar de R$ 110 bilhões. Além de causarem espanto pelo volume, os resultados também surpreendem pela sua concentração. Os 5 maiores bancos atuantes no Brasil vem apresentando – há muitos anos e de forma sistemática – lucros anuais superiores a R$ 70 bi em valores atuais corrigidos pela inflação. Um descalabro! O sentimento de exploração e impotência é reforçado quando se leva em consideração a conjuntura do último triênio, marcado por recessão inédita no PIB, falências generalizadas e desemprego monumental.
Dowbor e o capital improdutivo
Ora, diante de quadro tão calamitoso, nada mais oportuno do que ampliar a discussão a respeito de tal fenômeno. Assim, recebi com muito orgulho o convite para participar de mesas de debate realizadas ao longo da programação do Fórum Social Mundial 2018, sediado na cidade de Salvador, Bahia, durante os dias 13 e 17 de março.
Tratava-se de mais um momento para a necessária divulgação da importante obra do professor Ladislau Dowbor, intitulada “A era do capital improdutivo”. Apesar de abordar um tema complexo, o autor realizou um grande esforço nesse livro para traduzir os conceitos e o economês para uma linguagem mais acessível ao público não especializado.
Para além da introdução e da conclusão, a obra comporta 14 capítulos em que são analisados e esmiuçados os diferentes aspectos da dominação exercida pela dimensão do financeiro em nosso sistema econômico. Não por acaso, o título fala de um tempo em que a sociedade e o modelo econômico passam a ser dominados por um setor do capital que não realiza bens ou serviços de natureza agregadora de valor. Estamos no interior do reinado do rentismo e da apropriação parasitária da riqueza produzida pela maioria.
Por mais que a tendência à centralização e à concentração do capital em torno de sua dimensão financeira já estivesse apontada por clássicos como Rosa de Luxemburgo, Lenin e Hilferding, a verdade é que a evolução da realidade do capitalismo ofereceu trajetórias inusitadas e surpreendentes. A dominação do capital improdutivo é a marca de nossa era. E o livro de Dowbor nos mostra como esse fenômeno se dá na prática.
Há uma multiplicidade de faces desse verdadeiro Cérbero, a famosa criatura monstruosa que tratava de zelar pela porta do inferno. Isso vale para a ação oligopolizada dos bancos e demais instituições financeiras que se especializam em se apropriar do sobrevalor gerado pelos setores produtores de bens e serviços, além da renda extraída de forma direta e indireta dos que sobrevivem do próprio trabalho. Mas o processo de sofisticação do financismo evolui também para outras dimensões, superando a conhecida fusão e confusão dos interesses do capital bancário e industrial em torno do capital financeiro em sentido estrito.
Hipertrofia do financeiro
O fenômeno da financeirização vai muito além da hipertrofia do sistema financeiro em relação aos demais setores. Dowbor nos aponta o crescimento dos espaços e dos volumes de recursos depositados e/ou em trânsito nos chamados “paraísos fiscais”. A acumulação de capital e a multiplicação de patrimônio em tais locais são absolutamente estéreis do ponto de vista da geração de riqueza produtiva e criadora de empregos. O sigilo e a opacidade das informações de tais operações nos remetem na direção de atividades ilegais ou irregulares que estariam na base da gênese de tal tipo de acumulação primitiva.
O processo de sofisticação das atividades associadas ao setor primário também abre as portas para a dominação do financismo. A extração e produção de petróleo e do conjunto de minerais em escala global passam por uma etapa de financeirização relevante. O mesmo ocorre com a produção e comercialização dos principais produtos agrícolas em todos os continentes, também sujeitos a regras e ciclos de comercialização que se distanciam bastante das condições de plantio e colheita.
Estamos falando das chamadas “commodities”, que passam a operar em mercados financeiros muitas vezes desconectados da produção real. Essas mercadorias transformam-se em títulos negociados nos mercados financeiros globais e que estão sujeitos a flutuações em seus valores muitas vezes sem nenhuma correspondência com a dinâmica agrícola ou mineral. São as chamadas bolhas especulativas em mercados financeiros, fenômenos que criam e destroem riqueza sem nenhuma vinculação com eventos associados à dinâmica da economia real.
Além disso, a complexificação do sistema financeiro passa a ser objeto de desejo do próprio processo de acumulação de capital. Sob o frágil argumento de que o mercado precisaria criar mecanismos para se defender de riscos e incertezas quanto ao futuro, a partir da década de 1990 foi dada a largada irresponsável para a explosão descontrolada de espaços globais de transações financeiras sem nenhuma regulamentação. Trata-se daquilo que vem sendo chamado genericamente de mercado de derivativos ou mercado futuro.
Financismo descolado do real
As relações econômicas e financeiras ganham a aura de uma certa institucionalidade sofisticada, mas tudo não passa de mera especulação e da busca por ganhos com novos produtos completamente desvinculados da economia produtiva. São títulos de natureza financeira envolvendo previsão de valores e preços futuros de determinada mercadoria ou índice. Nesse verdadeiro vale-tudo, patrimônios bilionários incham ou são reduzidos em função de prospecção a respeito de comportamento de índices de bolsas de valores, evolução de taxas de câmbio, preços futuros do barril de petróleo, expectativas futuras de taxa de juros de algum Banco Central de país selecionado ou mesmo apostas em resultados de disputas eleitorais pelo mundo afora. Tudo pode ser precificado nos dias de hoje e as apostas são feitas em um enorme cassino global.
Os efeitos econômicos e sociais da entrada nessa nova era do capital improdutivo se fazem sentir a cada nova crise financeira internacional. Graças ao extremo poder dos grandes oligopólios, os dirigentes da elite do financismo global conseguem transferir o ônus do ajuste para os países mais pobres e para as populações desprotegidas e que sobrevivem do trabalho. Com a chantagem explícita do “too big to fail”, pressionam os governos a priorizarem a ajuda direcionada às grandes corporações financeiras, com o intuito de impedi-las de falirem.
Dowbor apresenta alguns dados que refletem a gravidade da situação atual, uma vez que as consequências da crise 2008/9 parecem não ter contribuído para uma mudança no panorama sombrio. O próprio Banco de Compensações Internacionais (BIS – uma espécie de banco central dos bancos centrais) reconhece o descontrole do quadro. De acordo com as estatísticas do organismo multilateral, haveria um estoque de 540 trilhões de dólares de derivativos emitidos pelo mundo afora, circulando pelas praças financeiras globais e sem nenhum controle ou garantia de pagamento para os possuidores de tais títulos. Para se ter uma noção da ordem de grandeza, esse valor representa 7,5 vezes a estimativa do PIB global (US$ 75 trilhões).
O descolamento da esfera do financeiro em relação ao mundo real parece evidente. Em função dos riscos que tal movimento apresenta para a economia global é necessário que se promova uma profunda mudança de paradigma. Afinal, como dizia o poeta há quase 3 décadas atrás, “alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”.

Fake News: tão antigo quanto o “jornalismo profissional”

A indústria cultural – incluindo neste saco de gatos a mídia “profissional” – sempre foi ponta-de-lança da dominação hegemônica do centro em relação às periferias. Isto é muito velho. Assim, não há nenhuma novidade na série O Mecanismo, da Netflix. A novidade é a canalhice explícita, antes velada, do outro Padilha, autor, e dos atores mais diretamente envolvidos, que perderam o que restava de vergonha na cara e não disfarçam mais. Se fosse só meretrício ou, como eles gostam de apelidar a sua prostituição, “profissionalismo”, um topa tudo por dinheiro, já seria lamentável. Mas eles ultrapassaram todas as fronteiras éticas, mesmo as tênues fronteiras do capitalismo selvagem. Estão surfando na degradação moral e ainda confessam, como se este fosse o novo normal. Anormais somos nós que ainda ficamos perplexos com tanta canalhice explícita.

Paulo Martins

Das “armas de destruição de massa” no Iraque à “fuga de Lula para a Etiópia”, é a velha mídia quem fez desabar o antigo padrão do jornalismo. Como resgatá-lo?

 

Por Dennis de Oliveira*, na Cult

Compartilhado por Outras Palavras.

Ultimamente, tem-se falado muito da necessidade de se combater as chamadas fake news. O termo em si já traz uma contradição – já que o pressuposto de uma notícia é que ela seja verídica. De qualquer forma, como o termo pegou, o utilizaremos aqui sous rature, como diria Jacques Derrida.

O termo ganhou repercussão quando o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, acusou um repórter da CNN de fabricar notícias contra ele e, por este motivo, recusou-se a responder perguntas do jornalista. Daí, o termo fake news ganhou repercussão e passou a ser mais uma justificativa para o fetiche da checagem e verificação do jornalismo hegemônico, constituído a partir da crise da atividade no início do século 21, conforme abordamos aqui. O próprio fenômeno detonador desta crise foi um caso de disseminação de notícias falsas – as “reportagens” de Jaison Blair, no New York Times, em 2001.

O jornalismo hegemônico encontrou na batalha contra as fake news uma forma de expressar a sua pretensa “superioridade” moral ante as mídias alternativas que cresceram com o advento da internet. Para isto, utilizaram duas ordens de argumentos: 1) que o jornalismo que praticam é “profissional” (e, portanto, o praticado pela mídia alternativa é “amador”) pois ele ocorre a partir de estruturas empresariais cristalizadas, com redações profissionalizadas e cujo objetivo não é fazer “ativismo político” mas sim “prestar um serviço ao seu público”; 2) que a internet, em especial as plataformas das redes sociais, possibilita uma equivalência de narrativas produzidas em condições diferentes, possibilitando então que qualquer pessoa (sem a qualificação necessária) possa repercutir informações, a tal “democratização dos imbecis” de que fala Umberto Eco.

Neste panorama, a radicalização política entra como um elemento que potencializa a disseminação das chamadas fake news, pois a esfera política entra no jogo do vale-tudo, o esclarecimento argumentativo se transfigurou para a sedução pela verossimilhança e, assim, qualquer um pode disseminar informação e causar impactos. O que se percebe aí é um incômodo com a perda do monopólio da novidade por parte do jornalista. Em 1922, Walter Lippmann afirmava em Public opinion a necessidade de se constituir uma classe de especialistas com o objetivo de construir atalhos cognitivos e produzir consensos, atuando como “timoneiros” da sociedade. Esta elite logotécnica dos meios de comunicação teve seu papel de timoneiro radicalmente reduzido. Por isto, o debate sobre as fake news revela muito mais incômodos de um determinado segmento da sociedade que uma preocupação real com os rumos da democracia e dos debates públicos.

Isso porque as fake news não são produto dessas novas mídias alternativas que se fortalecem com a internet. Como citamos, o caso mais famoso que detonou a crise na credibilidade no jornalismo foi no New York Times. Mas podemos citar outros exemplos:

1 – O caso da notícia da descoberta do “boimate”, a combinação do gene do boi com o do tomate. Esta notícia foi uma brincadeira de 1º de abril e foi comprada pelo então repórter de Ciência da revista Veja, Eurípedes Alcantara. E, pasmem, este mesmo jornalista viria depois a assumir o comando da revista

2 – O caso da ficha do Deops da então candidata à presidenta da República, Dilma Rousseff, publicada pelo jornal Folha de S.Paulo. A origem da matéria foi uma cópia de uma pretensa ficha no órgão de repressão da ex-presidenta e o jornal publicou reportagens sobre a participação dela na guerrilha urbana contra a ditadura militar. A tônica era se a presidenta atuou na luta armada ou não. Depois de muitos desmentidos, ficou comprovada que a ficha era falsa. O jornal , entretanto, fez uma correção envergonhada ao dizer que a ficha de Dilma “não podia ter sua autenticidade comprovada” – eufemismo para dizer que ela não era verdadeira.

3- Mais recentemente, após o julgamento do ex-presidente Lula na segunda instância em Porto Alegre, em janeiro deste ano, o jornalista Augusto Nunes divulgou que Lula iria fugir para a Etiópia para evitar ser preso. De fato, o ex-presidente tinha uma viagem marcada para o país do continente africano para participar, como palestrante, em uma reunião da FAO (Organização das Nações Unidas Para o Combate à Fome). Nas redes sociais, espalharam-se boatos de que a reunião não aconteceria e que Lula iria fugir, razão pela qual inclusive um juiz de primeira instância decidiu proibir a viagem. Depois da comprovação da própria agência das Nações Unidas de que de fato Lula estava programado para este evento, ficou evidenciado que a tal fuga não existia. Mas Augusto Nunes, apresentador do Roda Viva e colunista da revista Veja, comprou esta versão.

4 – Em 14 de maio de 2016, o Portal Estadão noticiou o relatório de Rita Izhák, enviada especial do escritório da ONU para o direito de minorias, que esteve no Brasil para avaliar o impacto das ações afirmativas no país. A manchete foi: “Políticas de Igualdade fracassaram no Brasil, diz ONU”. E o tom da matéria foi por aí. Lendo o relatório atentamente, percebe-se que houve um erro de tradução e de compreensão do inglês do repórter. A enviada da ONU afirmou que as políticas de igualdade racial são insuficientes e não que fracassaram. Pelo contrário, em diversas partes do relatório, a enviada especial considerava o Brasil como uma referência no continente latino-americano na aplicação de políticas de ação afirmativa.

Podemos contabilizar ainda nestes erros de informação os descuidos na apuração de fatos que envolvam os bairros e a população da periferia (como, por exemplo, bairros periféricos que são pintados como violentos e não o são), entre outros. Os proprietários das empresas do jornalismo hegemônico vão dizer que se tratam de erros e que “erros acontecem”, mas percebam que muito dos exemplos tem nítidas conotações ideológicas: o que significa dizer que Dilma foi uma “terrorista”, que Lula vai “fugir” e que as políticas de ação afirmativa que beneficiam negras e negros e que foram implantados nos governos Lula/Dilma?

Isto aponta que o fato de ser um jornalismo praticado por empresas comerciais não significa a sua “isenção” no jogo ideológico. Esta distinção entre um “jornalismo profissional” (voltado a prestar um serviço ao seu público) e um “jornalismo militante” (voltado apenas a defender uma causa) não existe. A própria crise das empresas de mídia as força para defender com maior força os seus interesses empresariais o que as faz ter um ativismo mais intenso no jogo político. E, mais ainda, não podemos esquecer que cresce a participação de setores empresariais na composição dos capitais das empresas midiáticas, em particular os fundos de investimentos. Enfim, a condição de empresário significa uma tomada de posição no jogo político.

Daí então que é um erro creditar a intolerância política como produto das narrativas contra-hegemônicas. Primeiro que é risível considerar que é possível uma situação de harmonia e bom senso em um país em que 1% concentra um patrimônio equivalente a metade da população. Harmonia em uma situação dessas só existe quando há opressão das vozes dos que estão na subalternidade. É a tal da “paz sem voz, não é paz é medo”. Segundo, que a intolerância veio justamente dos segmentos hegemônicos (e a mídia como disseminadora deles) quando pequenas partes dos privilégios históricos foram sendo questionados. A matéria das ações afirmativas do Portal Estadão (e que foi replicada por outros portais, como UOL, G1, Terra, etc) é um exemplo cabal disso. E também a amplificação do boato de que Lula estava fugindo por parte de Augusto Nunes.

Assim, o que separa o joio do trigo não é “jornalismo profissional” e “jornalismo ativista”, mas jornalismo de qualidade – que pode ser praticado em qualquer plataforma e em veículos que tenham qualquer finalidade (comercial, ativista, representação etc). Pois caso a relação privada fornecedor/cliente fosse a que mais garantisse qualidade, a educação superior pública não seria de melhor qualidade que a privada. E nem tampouco o setor de telefonia móvel lideraria o ranking de reclamações dos usuários.


  • Professor do curso de Jornalismo da ECA-USP e do Programa de Pós Graduação em Integração da América Latina (Prolam). Também é professor do Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.

A crise do Habeas Corpus, por Silvio Luís Ferreira da Rocha

A crise do Habeas Corpus

Por Silvio Luís Ferreira da Rocha

Juiz Federal

Terça-feira, 20 de Março de 2018

Publicado por justificando.cartacapital.com.br

Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Reportagem publicada pelo Jornal O Globo noticia divergência de entendimento entre a presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Cármen Lúcia, e o Ministro Edson Fachin, relator do habeas corpus apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para evitar sua prisão. A Ministra Presidente disse que não caberia a ela incluir em pauta o citado habeas corpus e que bastaria o ministro Edson Fachin leva-lo diretamente a julgamento no plenário. Ocorre que o ministro Edson Fachin decidiu que não fará isso e irá aguardar que a Ministra Presidente marque a data de julgamento.

O mérito do habeas corpus questiona as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal que autorizariam a prisão diante da condenação em segundo grau, antes, portanto, do trânsito em julgado. Como sabem, o Egrégio Supremo Tribunal Federal restringiu a garantia do “trânsito em julgado da sentença penal condenatória” para o da “condenação em segundo grau”. Há, no entanto, a possibilidade desse entendimento ser revisto pelo Plenário em função da nova composição da Corte ou em decorrência da mudança de orientação de alguns dos ministros, o que poderia livrar o ex-presidente do risco de ser preso antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Ocorre que, como dito acima, não há previsão de julgamento do habeas corpus pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal diante do impasse instalado entre os citados ministros quanto a inclusão em pauta da referida ação constitucional.

A questão acima, tecnicamente se assemelharia a um conflito negativo de atribuições, no qual órgãos declinariam, ambos, de sua atribuição para tomar a providência cabível (apresentação em plenário do habeas corpus). A questão, no entanto, apresentaria baixa complexidade jurídica porque, na verdade, o § 1º do artigo 192 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal atribuiria ao relator do habeas corpus a incumbência de apresentar o feito em mesa na primeira sessão da Turma ou do Plenário.[1]

Para quem não é da área jurídica, cumpre esclarecer que apresentar em mesa para julgamento significa, justamente, a possibilidade de levar o processo a Turma ou ao Plenário para julgamento independentemente de inclusão prévia na pauta. Logo, nesse conflito negativo de atribuições assistiria razão a Ministra Presidente do Supremo Tribunal Federal, pois, como dito, ela não precisaria pautar o habeas corpus e caberia, então, ao Ministro Relator apresenta-lo em mesa.

Tal providência – apresentar o habeas corpus em mesa – seria recomendável e necessária porque o ordenamento jurídico brasileiro destaca-se, essencialmente, por eleger a Dignidade da pessoa e os respectivos Direitos Fundamentais como merecedores de intenso reconhecimento e proteção. Alguns, com razão, consideram a Dignidade da Pessoa Humana um supra princípio constitucional que ilumina todos os demais princípios, normas constitucionais e infraconstitucionais, que não poderia ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas.[2] O princípio da Dignidade da pessoa representaria o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiaria efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizaria não apenas os atos estatais, mas as relações privadas.[3] Nesse sentido, os Direitos Fundamentais, em especial a Vida, a Liberdade e a Propriedade, essenciais ao desenvolvimento da personalidade humana, ganhariam consistência mediante um sistema que os reconhece, os organiza e os protege.

A par disso, a ordem jurídica brasileira democrática recebe substancial reforço pela adesão do Brasil aos Tratados e Convenções Internacionais que versam sobre os Direitos Fundamentais. Nesse contexto, restrições aos Direitos Fundamentais somente seriam aceitas se amparadas no texto constitucional e nas Convenções e Tratados internacionais subscritos pelo país. No plano internacional o Pacto de San Jose da Costa Rica estabelece no artigo 7º que “ninguém pode ser submetido à detenção ou encarceramentos arbitrários”.

Existem, ainda, diversos procedimentos instituídos para garantir os efeitos desses direitos e impedir que eles sejam violados. Com relação à liberdade de ir vir e ficar, direito fundamental por excelência, a mais grave restrição é a privação da liberdade ou a prisão. Para ser considerada legítima a prisão deve estar amparada, como dito acima, no texto constitucional, nas Convenções e Tratados internacionais. No Brasil, a prisão somente é considerada uma restrição legítima ao direito fundamental de liberdade se fundamentada em uma ordem judicial escrita, veiculada por um mandado, amparada em uma decisão cautelar ou em uma decisão definitiva com trânsito em julgado. Para corrigir eventuais erros e tutelar a liberdade fundamental de ir, vir e permanecer o ordenamento prevê a ação constitucional célere e desburocratizada do Habeas Corpus, que pode ser interposto por qualquer pessoa, sem observar qualquer forma ou formalidade, ou mesmo proclamado de ofício pelo magistrado diante de uma arbitrariedade e ilegalidade (Art. 5º, LXVIII) (art. 654, § 2º, do CPP).

Todos esses instrumentos e garantias depositam no Magistrado o invulgar papel de guardião dos Direitos Fundamentais dos cidadãos. Se nenhum titular de poder ou função pública pode descurar do trato dos direitos fundamentais, o magistrado, por essência, recebeu a missão de tutela-los porque nenhuma lesão ou ameaça de lesão pode ser subtraída do conhecimento do Poder Judiciário. Por isso, se reconhece ao Poder Judiciário o poder contramajoritário, ou seja, o poder dever de na defesa dos Direitos Fundamentais posicionar-se contra a decisão da maioria, ainda que proveniente de poderes legitimamente constituídos (Legislativo, Executivo ou mesmo do Judiciário) quando ela violar os direitos fundamentais.

Pelos singelos argumentos acima expostos torna-se difícil compreender a razão pela qual o julgamento do habeas corpus do ex-presidente pelo Plenário ainda não foi marcado e converteu-se num conflito de atribuições.

Essa negativa de jurisdição (consequência direta da negativa em julgar o habeas corpus) serve apenas para estimular ideias (com os quais não concordo a priori) de que o Poder Judiciário teria caído na tentação de ser o porta-voz de uma opinião pública punitiva ou, então, sucumbido a pressão midiática de encarcerar o ex-presidente, quando, para o Poder Judiciário (para se diferenciar do Poder Político) o ‘fazer justiça’ consistiria, simplesmente, no cumprimento correto dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico ou, em outras palavras, o desincumbir-se de uma correção procedimental em que há uma sucessão lógica de acontecimentos, não sujeita a humores, a arbitrariedade ou a caprichos. [4]

Nós já tivemos outras crises do Habeas Corpus na história do Supremo Tribunal Federal, mas todas as outras crises, salvo melhor juízo, foram positivas e contribuíram para reforçar o papel contramajoritário da Corte Constitucional na defesa dos Direitos Fundamentais.

Conforme relato da obra Advocacia em Tempos Difíceis,[5] basta recordar a consistente atuação do Supremo Tribunal Federal nos primeiros meses do governo militar no sentido de impedir que os civis acusados de subversão fossem processados perante a Justiça Militar, que, pela Constituição então vigente (1946), guardava competência apenas para casos de segurança externa, e não interna (art. 108, § 1o), o que levou a Corte Constitucional a conceder ordem de habeas corpus a um professor de Ciências Sociais do Rio de Janeiro, ainda em 1964[6], ou, então, quando, em 1965, por excesso de prazo, ordenou a soltura de Miguel Arraes, decisão relatada pelo Ministro Evandro Lins e Silva [7] (que foi posteriormente cassado com fundamento no Ato Institucional nº5) mas que foi deliberadamente desobedecida pelos militares, ou, ainda, pouco tempo depois, a decisão que ordenou a soltura do deputado comunista Francisco Julião.[8]

Essa crise dos Habeas Corpus suscitou atritos entre militares de alta patente e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Álvaro Ribeiro da Costa, [9] que, em um dado momento, teria afirmado que “os militares precisavam entender que num regime democrático as Forças Armadas não eram mentoras da nação”, o que teria levado Costa e Silva, então Ministro da Guerra de Castello Branco, a retrucar que “o Exército não teria chefe e por isso não precisaria de lições do Supremo Tribunal Federal”.[10]

O Supremo Tribunal Federal também não tem chefe e não precisa de lições de ninguém. Oxalá, no entanto, em defesa da Liberdade, dos Direitos Fundamentais, da Imparcialidade e Independência do Poder Judiciário que os ideiais liberais e garantistas de ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, como Evandro Lins e Silva e Álvaro Ribeiro da Costa, prevaleçam em nossa atual Corte Constitucional para o bem de nossa ordem jurídica.

Silvio Luís Ferreira da Rocha é Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Doutor e Livre-Docente em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor da Graduação e Pós-Graduação da PUC-SP. Juiz Federal Criminal em São Paulo.

[1] Art. 192. Quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal, o Relator poderá desde logo denegar ou conceder a ordem, ainda que de ofício, à vista da documentação da petição inicial ou do teor das informações.

1º Não se verificando a hipótese do caput, instruído o processo e ouvido o Procurador-Geral em dois dias, o Relator apresentará o feito em mesa para julgamento na primeira sessão da Turma ou do Plenário, observando-se, quanto à votação, o disposto nos arts. 146, parágrafo único, e 150, § 3º (g.n).

[2] Massimo Palazzolo, Persecução Penal e Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Quartier Latin, 2007, p.66. Luiz Antônio Rizzato, O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: São Paulo: Saraiva, 2002, p.51.

[3] Daniel Sarmento. A ponderação de interesses na Constituição brasileira. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2000, p.59-60.

[4] Gisele Cittadino e Luiz Moreira, Aliança Política entre Mídia e Judiciário (ou Quando a Perseguição se Torna Implacável), in O Caso Lula: A Luta pela Afirmação dos Direitos Fundamentais no Brasil, p.82.

[5] Paula Spiler e Rafael Mata Rabelo Queiroz, Advocacia em Tempos Difíceis, Fundação Getúlio, pág. 36.

[6] STF, HC 40.974, Rel. Min. Antonio Villas Boas, j. em 01.10.1964. De acordo com a obra Advocacia em Tempos Difíceis a postura do STF foi uma das razões pelas quais os militares viram-se obrigados, no AI-2, a mudar formalmente a competência da Justiça Militar, que a partir de então passou a incluir os crimes contra a segurança nacional interna.

[7] STF, HC 42.108, Rel. Min Evando Lins e Silva, j. em 19.04.1965.

[8] STF, HC 42.560, Rel. Min. Evandro Lins e Silva (p/o acórdão), j. em 27.09.1965.

[9] Conforme a obra Advocacia em Tempos Difíceis para a posição de Ribeiro da Costa e um relato do episódio, v. SILVA, Evandro Lins. Salão dos passos perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / FGV, 1997. p. 381 e ss.

[10] Conforme a obra Advocacia em Tempos Difíceis a contenda entre militares e STF pode ser melhor entendida com a leitura da obra de Elio Gaspari sobre A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p. 271.

A desconhecida desigualdade patrimonial e a urgência da regulamentação do imposto sobre grandes fortunas

A desconhecida desigualdade patrimonial e a urgência da regulamentação do imposto sobre grandes fortunas

Artigo elaborado no âmbito do projeto de pesquisa (em andamento) que tem por objetivo elaborar propostas para a reforma tributária no Brasil. Fruto do esforço de dezenas de especialistas, os produtos finais (livro e documento propositivo) deverão ser divulgados no segundo trimestre de 2018. Trata-se de iniciativa da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco). Com a gestão executiva da rede Plataforma Política Social, conta com o apoio do Conselho Federal de Economia (Cofecon), do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), da Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil (FES), do Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC, do Instituto de Justiça Fiscal (IJF) e da Oxfam Brasil.

REGULAMENTAÇÃO DO IMPOSTO SOBRE GRANDES FORTUNAS

André Calixtre

Economista, Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas e Doutorando em Economia Política pela Universidade de Brasília

Resumo

Os impactos dos sistemas tributários sobre as desigualdades de renda são conhecidos. No entanto, a dimensão patrimonial da riqueza, sua distribuição e comportamento com os impostos, é tema pouco estudado, assim como o sistema tributário brasileiro abrange muito pouco esse aspecto da desigualdade. Os estudos patrimoniais carecem do acesso à principal base de dados constituída sobre esse tema, que é a base do Imposto de Renda sobre Pessoa Física (IRPF) e Pessoa Jurídica (IRPJ), seu acesso é meramente tangencial.

Neste artigo será proposta uma alternativa metodológica e empírica para avançar na questão, recorrendo às declarações patrimoniais de todos os mais de 490 mil candidatos de todos os municípios brasileiros das Eleições de 2016. Essa metodologia será tratada como uma proxy de uma distribuição da propriedade privada imobiliária, mobiliária e financeira do Brasil, por meio da qual serão testados os impactos da regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas sobre a arrecadação potencial e seus possíveis efeitos sobre a desigualdade.

Palavras-chave: Desigualdade Patrimonial; Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF); Eleições de 2016;

INTRODUÇÃO

O que não sabemos sobre a desigualdade brasileira e que, seguramente, desataria o modelo de desenvolvimento com bem-estar social rumo a uma verdadeira mudança estrutural econômica e social? Desde a década de 1960, novas perspectivas teóricas têm sido desenvolvidas para entender melhor o fenômeno da desigualdade no Brasil. Na época, as características profundamente desiguais do processo de modernização brasileiro careciam de ferramentas quantitativas, que pudessem demonstrar que a industrialização transformou o Brasil, mas também ampliou suas contradições com base na desigualdade e na exclusão. Este esforço de interpretação muito se beneficiou do desenvolvimento de técnicas demográficas censitárias a partir de 1970. Estas permitiram a coleta de micro dados individualizados com um grau razoável de precisão para a época, incluindo detalhes relativos à demografia, moradia, mercado de trabalho, renda e bens de consumo duráveis. Um aumento abrupto na desigualdade sob o regime autoritário mudou a natureza do apoio da sociedade civil ao modelo conservador de desenvolvimento nacional, contribuindo assim para o inevitável processo de democratização. Em quaisquer abordagens metodológicas relativas a desigualdades – até nas mais complexas – as principais fontes são pesquisas domiciliares centradas em autodeclarações sobre padrões sociais e econômicos, incluindo renda e gastos. Basicamente, tais pesquisas de domicílios mensuram fluxos. Pouco tratam de patrimônio, riqueza ou ativos. Dada esta centralidade dos fluxos na pesquisa social contemporânea, o índice de Gini, uma das metodologias usadas neste estudo, estabeleceu-se como o instrumento principal para analisar a concentração de renda. Quando os fluxos de renda são distribuídos de forma altamente desuniforme, como no caso do Brasil, o pequeno grupo das famílias mais ricas é subestimado pela amostra. Ademais, rendas altas têm origens mais diversas que a renda média – isto é, os ricos raramente são ricos devido a uma única fonte de renda (um salário, juros, alugueis, etc.) – tornando-se assim mais difícil estimar rendas altas. Esta deficiência, de as pesquisa domiciliares não captarem patrimônio e ativos, é um dos maiores desafios para uma compreensão completa das dinâmicas da desigualdade no Brasil ou em qualquer outra economia capitalista moderna. Esta economia oculta do patrimônio não se baseia nos fluxos de renda, mas em ativos que, grosso modo, podem ser divididos em três tipos: i) riqueza financeira, tais como ações, bônus, derivativos e papeis de dívidas públicas ou privadas; ii) propriedades imobiliárias, isto é, terra, terrenos, construções e ativos urbanos, imóveis de todos os tipos; e iii) riqueza mobiliária, representada pela acumulação de ativos móveis produtivos ou participações patrimoniais em tais ativos e pela posse de bens duráveis, de arte e de luxo. Cada uma destas dimensões representa os pilares dos fluxos de capital, propriedade e trabalho.

Um conhecimento melhor destes estoques de riqueza poderia revelar novas fontes de financiamento para políticas públicas redistributivas. No Brasil, a tributação da herança e da propriedade é completamente subestimada devido à falta de bancos de dados públicos. A desigualdade, que tem um caráter multidimensional, é percebida somente em termos da desigualdade de fluxos, e ninguém sabe o que aconteceu com a desigualdade de estoques, ou seja, com a distribuição da riqueza cristalizada por todos os agentes econômicos. Curiosamente, durante todo o processo de redução da desigualdade de renda ao longo da última década, uma pergunta chave ficou sem resposta: o que aconteceu com a distribuição da propriedade durante o mesmo período? Os dados publicamente disponíveis são insuficientes para responder a esta pergunta. Há indícios que a desigualdade de estoques econômicos seria um dos constrangimentos estruturais mais importantes do New Deal brasileiro e seu modelo de desenvolvimento. Estudos específicos sobre os preços dos imóveis em grandes cidades – muitos deles conduzidos por empresas envolvidas na especulação imobiliária – atestam o brutal processo de concentração e valorização de propriedades nos bairros nobres das principais cidades brasileiras. A Receita Federal publicou recentemente informações sobre estoque patrimonial no Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) (Figura 1) revelando uma perversidade do momento mais dinâmico do modelo de desenvolvimento de 2003- 2016. A difusão da propriedade privada entre os indivíduos foi bloqueada pelo modelo, apesar da redução das desigualdades nas rendas do trabalho. Entre os declarantes de até cinco salários mínimos de renda (aproximadamente 50% do total do IRPF) e o grupo de cinco a 20 salários mínimos (mais 42% do total do IRPF) acumularam ganhos de rendimentos tributáveis em relação aos 8% mais ricos dos declarantes. Em 2007, eram 65,1% da renda tributável total; e em 2014, 69,6%. Entretanto, quando se observam as declarações patrimoniais, o mundo da desigualdade é completamente distinto. Nestas, a maioria dos valores declarados concentra-se nos 8% mais ricos do IRPF (em torno de 57% de todo o patrimônio) e há pouca variação nesta concentração durante o período 2007-2014.

FIGURA 1 – PARTICIPAÇÃO DOS DECLARANTES, RENDIMENTOS TRIBUTÁVEIS E PATRIMÔNIO SOBRE O TOTAL DO IMPOSTO DE RENDA DA PESSOA FÍSICA (IRPF) BRASIL

2007 e 2014

IRPF – PERFIL DOS DECLARANTES ATÉ CINCO SALÁRIOS MÍNIMOS

                      % Declarantes      % Rendimentos Tributáveis              % Patrimônio

2007                    54,4%                                 20,9%                                                14,9%

2014                    49,6%                                 21,3%                                                14,9%

IRPF – PERFIL DOS DECLARANTES DE CINCO A 20 SALÁRIOS MÍNIMOS

                     % Declarantes      % Rendimentos Tributáveis               % Patrimônio

2007                     37,2%                                44,2%.                                               27,9%

2014                     41,9%                                48,3%                                                28,3%

IRPF – PERFIL DOS DECLARANTES ACIMA DE 20 SALÁRIOS MÍNIMOS

                      % Declarantes.     % Rendimentos Tributáveis             % Patrimônio

2007                    8,4%                                   34,9%.                                              57,2%

2014                    8,5%                                   30,4%                                               56,8%

Fonte: IRPF – MF

É muito alta e variou muito pouco a concentração do patrimônio nos 8,5% dos declarantes de imposto de renda com mais de 20 salários mínimos. Porém algumas mudanças ocorreram. Apesar do forte aumento do valor do salário mínimo, a proporção de declarantes com até cinco salários mínimos caiu de 54,4% para 49,6% e sua participação no patrimônio total dos declarantes manteve-se em 14,9%. Isto significa que o patrimônio médio desses declarantes com renda de até cinco salários mínimos passou de 27,4% da média geral para 30,0%. Foi a única faixa de renda em que essa relação aumentou. O “deslocamento” de declarantes da faixa de até cinco salários mínimos para a de cinco a 20 salários mínimos contribuiu para reduzir a relação do patrimônio médio dessa última faixa e a média geral de 75% para 67,5%. A relação entre o patrimônio médio da faixa de cinco a 20 salários mínimos e o da faixa de até cinco salários mínimos diminuiu de 2,74 vezes maior para 2,25 vezes e a relação entre os patrimônios médios das faixas de mais de 20 salários mínimos e de cinco a 20 salários mínimos aumentou de 9,08 vezes para 9,9 vezes. Finalmente, a relação entre os patrimônios médios das faixas de mais de 20 salários mínimos e até cinco salários mínimos diminuiu de 24,8 vezes para 22,3 vezes. A mesma dinâmica observa-se com respeito à riqueza financeira. No período 2003- 2016, as altas taxas de juros e o crescimento do mercado de capitais foram instrumentos chave de concentração de ativos nas mãos dos mais ricos. Estes processos de acumulação financeira são indissociáveis do sistema da dívida pública, e pressionam constantemente as capacidades das políticas monetária e fiscal. O resultado financeiro desta hierarquia é a captura de recursos públicos por setores da sociedade, que realizam lucros abusivos: em 2013, as obrigações relativas à dívida pública excederam um terço de toda a receita federal. O desafio final para entender e combater as desigualdades estruturais no Brasil é a dimensão produtiva da economia dos estoques, que também exibe sinais de concentração. Embora a participação dos salários na renda nacional tenha evoluído positivamente ao longo da última década, há pesquisas sobre a concentração de riqueza que são desencorajadoras,1 mostrando um controle maciço de ativos por parte de poucas famílias ou grupos, particularmente em setores estratégicos, como alimentos, tecnologia, comunicação, saúde, bancos e transporte. Os chamados “vencedores nacionais” e o surgimento de um grande número de fortunas bilionárias, muitas das quais assentadas em processos de concentração de ativos mal estruturados, são fortes indícios de uma concentração de propriedade que, inevitavelmente, porá em risco a recente distribuição de renda do trabalho, observada na superfície da reprodução econômica da sociedade capitalista ao longo do período entre 2003 e 2016. Essa tarefa, essencial para abrir uma nova fronteira de pesquisa sobre a distribuição da riqueza, implicaria a criação de uma base de dados declaratória sobre patrimônio pelo maior número de anos possível, expandindo de forma inédita o horizonte da pesquisa sobre desigualdade (possibilitando, inclusive, o cálculo de um coeficiente de Gini patrimonial). Ademais, isto revelaria setores sociais nos quais a riqueza se acumulou mais que em outros, possibilitando que se corrijam distorções relativas ao acesso à propriedade e se encontrem novas fontes de financiamento para o welfare state redistributivo. Esta perturbação na fronteira expandiria decisivamente o conhecimento sobre as dinâmicas da acumulação capitalista no Brasil e, o que é mais importante, poderia ser estratégica para o New Deal brasileiro poder continuar a avançar rumo aos objetivos de seu modelo de desenvolvimento com bem-estar social.

1 Quem desejar ter uma excelente amostra desse cenário de concentração da propriedade privada no Brasil, ver http://proprietariosdobrasil.org.br/ . Trata-se de uma pesquisa colaborativa organizada pelo Instituto Mais Democracia.

1. UMA POSSÍVEL LINHA DE PESQUISA EM DESIGUALDADE PATRIMONIAL NO BRASIL

O estouro do “fenômeno” Thomas Piketty e seu livro O Capital no Século XXI impulsionou o debate no mundo todo sobre a questão das rendas de capital. No caso brasileiro, o livro ensejou, positivamente, um conjunto de discussões sobre a existência e a operacionalidade de uma base de dados patrimoniais capaz de elucidar um dos maiores segredos da dinâmica de redistribuição da renda do trabalho no Brasil contemporâneo: sua conexão inversa com os estoques patrimoniais. A hipótese de trabalho levantada aqui é que haveria um processo subjacente e anterior de concentração de estoques que, justamente, permitiria o processo de desconcentração dos fluxos, em especial nos fluxos do trabalho. Essa indagação, no entanto, carece de acesso qualificado a uma base empírica suficientemente sólida, que seria o cadastro de pessoa jurídica e pessoa física da Receita Federal, gerado a partir das declarações do Imposto de Renda. A base da Receita permitiria tanto o acesso às rendas de capital quanto aos estoques de riqueza. Ainda que pudesse haver falsas declarações ou subestimação do valor de mercado do patrimônio – o que também é comum para o caso dos fluxos declarados em todas as pesquisas domiciliares –, a base da Receita nortearia um melhor entendimento sobre o processo de desenvolvimento capitalista no Brasil recente. Concordando integralmente com o artigo recente de Nelson Barbosa,2 há condições técnicas para acessar estes dados e, simultaneamente, proteger o sigilo fiscal inerente a eles, por meio de desidentificação ou agregação mínima das pessoas físicas e jurídicas. O entendimento sobre o fenômeno patrimonial, no entanto, deve-se valer de alguns cuidados metodológicos. Primeiramente, a abordagem da riqueza declarada pertence ao mundo dos estoques econômicos, cujas relações com os fluxos são pouco conhecidas, quando muito, claramente contraditórias. Os conceitos de renda do capital e do trabalho, como também sua apropriação e distribuição, pertencem ao mundo dos fluxos, cujas bases disponíveis são as Contas Nacionais e pesquisas domiciliares como a Pnad e a POF, todas estas feitas pelo IBGE. Esse grande fluxo circular da renda, que alimenta a

2 http://brasildebate.com.br/para-conhecer-me-lhor-a-distribuicao-de-renda-e-riqueza-no-pais/

residência onde a família habita, para abarcar todos os imóveis urbanos, rurais, comerciais e residenciais – quanto a admissão verdadeira do peso do 1% mais rico sobre a renda nacional. Sobre esta última, estudo de Medeiros, Souza e Castro (2014), o primeiro a supostamente trabalhar com declarações de fluxos recebidos do Cadastro de Pessoa Física da Receita Federal, apesar de não resolver o problema dos estoques patrimoniais nem a subdeclaração para todos os extratos de renda da Pnad, captou muito bem a ideia de resiliência do extrato mais rico da população brasileira na apropriação da renda total. De todo modo, as conexões entre fluxos e estoques na economia estão veladas pelo impedimento ao acesso às bases declaratórias de pessoa física e jurídica do Imposto de Renda. Enquanto não acessamos esta base, que quebraria uma fronteira na pesquisa social no Brasil, há uma base patrimonial que, até o momento, tem permanecido ignorado pelos interessados no tema. Trata-se do cadastro do Tribunal Superior Eleitoral, uma base impressionante de declarações de pessoas físicas candidatos a cargos eletivos que, nas eleições municipais de 2016, atingiu a ordem de mais de 490 mil candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador, em todos os Municípios de todos os Estados brasileiros (exceto, evidentemente o DF). Os dados são disponibilizados em duas formas: com as características políticas e pessoais de cada candidato; e a declaração patrimonial de cada um. Ao cruzarmos as duas bases, temos uma amostra não estatística, mas relevante, de declaração patrimonial dos candidatos políticos. 4 Importante sempre lembrar que não se trata aqui de um exercício com representatividade estatística. Candidatos a eleições, mesmo distribuídos por todos os municípios e em quantidade maior do que uma amostra da própria Pnad, não são representativos do todo populacional e, portanto, não devem ser levados em conta nessa perspectiva. O objetivo desse estudo é mostrar como, mesmo na

4 Há algumas deficiências nesta base: evidência de subdeclarações ou aparente excesso de candidatos que declararam não possuir patrimônio algum; e claros exemplos de superdeclaração, sendo mais visíveis a partir dos patrimônios acima de R$50 milhões. Estes exemplos, no entanto, foram mantidos em prol da manutenção da objetividade da base, sem a qual uma interferência nesses desvios poderia gerar mais malefícios do que benefícios à análise. Entende-se que as quase 500 mil entradas dão à base uma significativa representatividade para este universo, ainda que não se possa inferir que este seja estatisticamente representativo ao universo da base da Receita Federal.

imensa precariedade estatística desse exercício, é possível enxergar, de relance, um lado oculto da desigualdade no Brasil. Partindo de iguais candidatos a vereadores, prefeitos e vice-prefeitos, as diferenças patrimoniais entre eles são astronômicas, muito maiores do que o observado na distribuição das rendas nas pesquisas domiciliares. A análise da distribuição patrimonial dos candidatos permite calcular o Gini patrimonial tanto total (incluindo os candidatos que declararam não possuir patrimônio algum), quanto pelas características, enunciadas anteriormente, de riqueza patrimonial imobiliária,5 financeira6 e mobiliária.7 O patrimônio imobiliário, representando 72,7% de todo o patrimônio declarado pelos políticos municipais em 2016, apresentou um Gini muito superior ao apontado pelas pesquisas domiciliares, pois aqui estão englobados todos os tipos de imóveis, e não somente a habitação em que mora a família entrevistada pela pesquisa domiciliar. Mesmo o patrimônio mobiliário, cuja desigualdade é a menor entre os três tipos de estoques, o Gini ainda segue muito superior ao apontado pela Pnad. Surpreende o baixo peso da riqueza financeira sobre o estoque total declarado dos candidatos municipais, apenas 15,1%, a um índice de Gini próximo da desigualdade absoluta, de 0,894 (Figura 2).

5 Seguindo a classificação disponível pelo TSE, Patrimônio Imobiliário foi considerado segundo o agrupamento: apartamento; benfeitorias; casa; construção; galpão; loja; outros bens imóveis; poupança para construção ou aquisição de bem imóvel; prédio comercial; prédio residencial; sala ou conjunto; terra nua; terreno.

6 Patrimônio Financeiro considerado: ações (inclusive as provenientes de linha telefônica); aplicação de renda fixa (CDB, RDB e outros); caderneta de poupança; consórcio não contemplado; crédito decorrente de alienação; crédito decorrente de empréstimo; depósito bancário em conta corrente no exterior; depósito bancário em conta corrente no país; dinheiro em espécie – moeda estrangeira; dinheiro em espécie – moeda nacional; fundo de ações, inclusive carteira livre e fundo de investimento no exterior; fundo de aplicação em quotas de fundos de investimento; fundo de capitalização; fundo de investimento financeiro – FIF; mercado futuros, de opções e a termo; ouro, ativo financeiro; outras aplicações e investimentos; outras participações societárias; outros créditos e poupança vinculados; outros depósitos à vista e numerário; outros fundos; plano Pait e caderneta de pecúlio; quotas ou quinhões de capital; VGBL – vida gerador de benefício livre.

7 Patrimônio Mobiliário considerado: aeronave; bem relacionado com o exercício da atividade autônoma; direito de autor, de inventor e patente; direito de lavra e assemelhado; embarcação; joia, quadro, objeto de arte, de coleção, antiguidade, etc.; licença e concessões especiais; linha telefônica; outros bens e direitos; outros bens móveis; título de clube e assemelhado; veículo automotor terrestre: caminhão, automóvel, moto, etc.

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Sobre a crescente intolerância dos neoliberais brasileiros, por Pedro Paulo Zahluth Bastos

Sobre a crescente intolerância dos neoliberais brasileiros
Pedro Paulo Zahluth Bastos

Publicado e Plataforma Política Social

É professor visitante na UC Berkeley, professor licenciado (Livre Docente) do Instituto de Economia da Unicamp e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE)

Não é de hoje que os economistas neoclássicos e neoliberais brasileiros buscam abusar da pretensão de cientificidade para desqualificar quem pensa diferente. Recentemente, é Samuel Pessoa quem anda abusando da intolerância para fugir do debate civilizado. Samuel deu entrevista recente ao Estadão em que alega que os economistas heterodoxos brasileiros (citou UFRJ e Unicamp) são amalucados. Por que o insulto? Porque criticaram o Joaquim Levy, consideram que a política fiscal tem importância na determinação da renda e porque não justificam o argumento com modelos econométricos. Acho que o Samuel Pessoa tem memória curta.

Primeiro, a crítica ao Joaquim Levy foi feita antes mesmo do início da gestão dele. Enquanto as expectativas dos economistas do mercado e do próprio Samuel apontavam para a recuperação rápida do superávit fiscal e do crescimento econômico por conta da retomada da credibilidade do próprio mercado sobre a política econômica, um manifesto, vários artigos e entrevistas de economistas heterodoxos previam que o ajuste fiscal seria contraproducente porque a arrecadação cairia fortemente com a recessão que geraria. Como a economia estava em forte desaceleração em 2014 (mas não em recessão, como dizíamos e os dados mostraram depois), prevíamos que uma política fiscal pró-cíclica empurraria o país para uma forte elevação da relação dívida/PIB. Quem estava certo mesmo?

A propósito, o Samuel ainda não deu luz aos modelos que o levavam a acreditar na viabilidade do superávit fiscal com uma política pró-cíclica, mas há vários modelos teóricos e econométricos que criticam a hipótese de austeridade expansionista e não refutam, mas apoiam fortemente a hipótese de grandes multiplicadores fiscais no mundo e no Brasil (o que o Samuel chama de “moto-continuo”). Não vou dar o caminho das pedras: pode ser educativo para os que desconfiam fazer uma pequena busca na internet.

Segundo, Luiz Gonzaga Belluzzo e eu escrevemos artigos que popularizam alguns debates metodológicos em economia em resposta ao tipo de crítica feita por Samuel na entrevista e que fora desenvolvido em artigo com Marcos Lisboa na Folha de São Paulo. Aparentemente, a defesa do método histórico-estrutural e crítica ao instrumentalismo foi tão devastadora que Samuel prefere responder com insultos (“malucão”) em entrevistas. Que tal continuar o debate, na Folha ou em uma revista científica?

Aliás, não foi a primeira vez em que alertei para a tendência à manipulação de dados e à correlação espúria que Samuel parece ter como método predileto. Escrevi em outubro de 2014 um artigo com o Marcio Pochmann para responder a uma crítica infundada que ele fazia aos economistas de esquerda durante a campanha de 2014. A Folha rejeitou a publicação, claro, mas o Brasil Debate circulou muito.

Sobre austeridade fiscal e crescimento, vamos refrescar a memória dos ortodoxos brasileiros. Para que não achem que eu estou mentindo sobre o alerta feito no final de 2014 sobre os efeitos econômicos e políticos desastrosos da contração fiscal, há um artigo publicado dois dias depois do segundo turno.

O mesmo alerta foi feito pelo Manifesto dos Economistas publicado em novembro de 2014 (do qual fui o principal redator). E em artigo publicado pela Plataforma Política Social na revista Política Social e Desenvolvimento em janeiro de 2015 (enviado para publicação em 2014).

Voltando no tempo, o jornal Valor Econômico publicou três matérias no dia 13/11/2014, que repercutiam com economistas a mudança proposta na LDO para 2014. O alerta se repetia, ao contrário dos cenários róseos traçados com entrevistas paralelas com Samuel Pessôa, Mansueto de Almeida, Monica Bolle, Fabio Giambiagi etc. A primeira matéria diz assim:

“Para Pedro Paulo Zahluth Bastos, professor do Instituto de Economia da Unicamp, a principal peculiaridade para se entender o efeito das contas públicas na economia é que, diferentemente das despesas de uma família que decide economizar, a redução de gastos do governo diminui diretamente a arrecadação de impostos que ele receberá no futuro. Por isso, o pior caminho para resolver a questão fiscal brasileira é, para Bastos, recorrer a mais austeridade fiscal, que aprofundaria a recessão. Ele cita o exemplo de 2011, quando o governo apertou os gastos e passou a ser mais uma força de contração para a economia, junto com o cenário internacional de crise e a desaceleração do consumo e investimento privados. Agora a situação é muito mais grave que em 2011. Lá, a economia estava crescendo 7,5%, e o governo contraiu o gasto, jogou a economia nessa desaceleração que a gente tem hoje. Imagina se o governo buscar uma meta fiscal no ano que vem de 1,5% ou 2%. Teremos uma recessão de quanto? O PIB vai cair 2% também? Se o PIB cair 2%, o que você economizou no gasto, vai perder na arrecadação”, diz o economista da Unicamp.

Na segunda matéria, expliquei brevemente o regime de bandas fiscais:

“Para Bastos, ao anunciar que não vai mais cumprir o objetivo inicial, de poupar 1,9% do PIB neste ano, e decidir negociar com o Congresso, o governo gera desgaste político e com a sociedade, mas era a opção “menos pior” na mesa. Na semana passada, o economista organizou a publicação na internet do “Manifesto dos Economistas pelo Desenvolvimento e pela Inclusão Social”, documento em que um extenso grupo de economistas heterodoxos defendia que elevar a austeridade fiscal aprofundaria a recessão em que o país se encontra atualmente, com perda de avanços sociais. As outras opções disponíveis para o governo eram não anunciar nenhuma alteração e cumprir o objetivo fiscal com receitas extraordinárias ou então fazer contabilidade criativa para fechar as contas, o que, na visão do economista, engana a sociedade e reduz nível de confiança. Reduzir o gasto em um cenário de baixo crescimento também ameaçaria piorar ainda mais a atividade econômica. ´Essas alternativas gerariam desgaste ainda maior. Para o economista, é preciso alterar o regime fiscal para que essa situação não se repita. Entre as medidas, diz, está construir um fundo orçamentário no momento de expansão das receitas, e instituirbandas´ para o superávit primário, à semelhança do regime de inflação, porque assim pode-se acomodar o resultado de acordo com as variações imprevisíveis da arrecadação. Daria alguma previsibilidade maior e, ao mesmo tempo, permitiria que o governo realizasse uma política anticíclica, diz”.

Na terceira matéria, falei dos economistas ortodoxos brasileiros (que, de fato, estão desatualizados mesmo):

“Não é o que pensa o professor do Instituto de Economia da Unicamp, Pedro Paulo Zahluth Bastos. Para ele, o governo não deveria cortar gastos para atender à demanda das agências, mas, ao contrário, buscar reanimar o investimento privado e a economia para elevar a arrecadação e melhorar o retrato fiscal. Segundo o economista, o principal risco para a perda do grau de investimento é a recessão. O FMI hoje em dia reclama da contração fiscal na Europa e alega que os governos, mesmo com os déficits, têm que gastar mais para tirar a economia da crise. E, olha, é o FMI. Os economistas ortodoxos brasileiros estão desatualizados”.

Finalmente, o governo Dilma foi o que MENOS fez crescer o gasto público desde o Plano Real, de modo que a crise fiscal não resulta de gastança, mas da queda da arrecadação tributária gerada pela desaceleração cíclica que a austeridade fiscal transformou em uma recessão; sobre isso, ver o documento AUSTERIDADE E RETROCESSO.

Para quem tiver interesse, este documento, que envolveu um esforço coletivo do Fórum 21, Fundação Friedrich Ebert, GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e da Plataforma Política Social (e principalmente de Pedro Rossi, Vanessa Petrelli Corrêa, Rodrigo Orair Sergio Wolf Gobetti, Guilherme Mello e meu), reflete bem o que os malucões pensam sobre o problema fiscal e o crescimento.

Para outras questões, o livro Austeridade para quem? Balanço e perspectivas do governo Dilma Rousseff, que editei junto com Luiz Gonzaga Belluzzo em 2015 é um bom apanhado de outras maluquices. Pode ser baixado gratuitamente no link da Carta Maior.

Comparando com o Samuel Pessoa que conheci anos atrás, ele parece piorar, tornar-se mais ressentido, agressivo, intolerante, autoritário. Não o leio quase, mas hoje me disseram que seus artigos também vêm se tornando mais religiosos, como em um recente que alegou que o sucesso chinês resultou de “excesso de liberalismo”! Além da perplexidade com o uso de correlações espúrias, confesso que sinto um pouco de medo ao ver um neoliberal brasileiro, hoje em dia, elogiar o modelo chinês.

Por que a intolerância crescente? Será porque a religião neoliberal enfiada goela abaixo da sociedade brasileira pelo governo Temer sofre a ameaça da resistência democrática em ano eleitoral? Ou será porque o Brasil vem transitando do neoliberalismo para o fascismo, ou pior, para o fascismo neoliberal, se não impedirmos? Com bom humor, o economista André Perfeito vem chamando os neoliberais brasileiros de economistas de pantufas. Torço para que seja só isso.

Sabe com quem está falando?, por Cid Benjamin

Sabe com quem está falando?
Cid Benjamin*

Houve tempos em que uma desavença de rua envolvendo militar ou policial poderia levar a que aparecesse o contingente armado de uma corporação do Estado para apoiar um dos contendores. Isso tinha saído de moda. Mas parece estar voltando.

Domingo à noite, no bar Bip Bip, em Copacabana, um cidadão protestou contra uma homenagem de Alfredinho, o dono do estabelecimento, a Marielle Franco no intervalo da roda de samba. Como seria de se esperar, foi vaiado pelos presentes.

Tomando-se de dores, se disse agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF), criou caso, bateu boca e ameaçou deus e todo mundo. Lá pelas tantas saiu e o samba pôde prosseguir.
Mas, o cidadão voltou exibindo uma arma de fogo e, dizendo-se “com o caralho no corpo”, ameaçou os presentes. Afirmou ter sido empurrado por alguém que não poderia identificar e que, por isso, “conduziria” Alfredinho a uma delegacia. A partir daí, no bate-boca só se referiu ao doce Alfredinho, que tem 74 anos, como “o meu conduzido”.

Diante da confusão, frequentadores do bar chamaram a PM e logo chegaram três viaturas. Mas o tal agente da PRF intimidou a tenente, que, ao invés de recomendar-lhe um banho frio e uma noite de sono, aceitou `levar Alfredinho para a delegacia. Afinal, ele era “o conduzido” de um agente federal… Mesmo que numa noite de folga e tendo tomado umas e outras.

O caso foi parar na 14ª DP, no Leblon. Lá, foi “lavrada a ocorrência” e Alfredinho, arrolado como testemunha. Não adiantou insistir em que não tinha visto qualquer empurrão.

A comédia pastelão não terminou aí. Logo chegou uma viatura da PRF com mais quatro agentes armados … de fuzil. Houvesse comando nas instituições policiais, não só o primeiro encrenqueiro seria punido por ameaçar pessoas numa noite de folga com sua arma funcional depois de beber, como seus colegas, que levaram fuzis da corporação para intervir num caso particular, também o seriam.

Conta a lenda que, quando da edição do AI-5, o vice-presidente Pedro Aleixo disse temer pelo comportamento dos “guardas da esquina” num regime de força. Como se vê, um “guarda da esquina” apareceu no Bip Bip domingo.
Abriram o covil das bestas. A direita soltou seus pitbulls e eles não voltaram para o canil.

Os dias do “sabe com quem está falando?” estarão de volta?

*Jornalista

Via Luís Carlos Oliveira e Silva

Marielle

15 mar 2018 • Opinião • MadreMedia
O país onde esta mulher voltará a pisar ainda não existe. Sem o ainda estamos todos mortos. Acredito totalmente nesse país.
Esta mulher, executada no Rio de Janeiro, ocupado por militares há um mês.

O Rio de Janeiro conhece a morte violenta. Conhece as balas perdidas, os tiroteios, os ajustes de contas, as execuções. E quem vive na favela conhece isso desde que nasceu, diariamente. Sabe que é muito possível vir a morrer assim, tem muitos lutos, muitas mortes. Uns quinhentos anos de mortes violentas, sobretudo negras, sobretudo pobres.

Foi esta cidade que há um mês se viu ocupada por militares, a mando de um presidente da república não-eleito, alegadamente para fazer face ao crime. Depois do golpe na presidência, o golpe na cidade que é a cara do Brasil. O crime de Estado tem esta tradição de se justificar pelo crime. O presidente não-eleito, Michel Temer, assinou essa ocupação. O Rio de Janeiro é desde então uma cidade ocupada, num país ocupado. Todos os dias algo se soma ao horror. Chegam amigos de lá, ou mensagens de amigos, vejo as notícias, horror atrás de horror.

E ontem, 14 de Março, aconteceu uma morte violenta que imediatamente se tornou o espelho em que o Rio se viu, o Brasil se viu, os brasileiros pelo mundo se viram, e quem ama o Brasil, em geral. Toda a morte violenta é horrível, mas algumas, raras, são uma visão colectiva do horror. Foi isso que aconteceu esta quarta-feira à noite. A morte de Marielle Franco é um espelho voltado para a cara do Brasil. E para todos nós.

Marielle faria 39 anos em Julho. Nasceu na Maré, o complexo de favelas que qualquer recém-chegado pela primeira vez ao Rio de Janeiro pode ver pela janela, ao vir do aeroporto para o centro. Chama-se Maré porque aquilo eram águas da baía da Guanabara. Os primeiros moradores moravam em barracas de palafita, ou seja, assentes em estacas, sobre a água. Eram sobretudo nordestinos, vindos por causa da construção da Avenida Brasil, a grande via terrestre de entrada no Rio de Janeiro. Hoje, a Maré é uma sequência de favelas, coladas umas às outras, ao longo da Avenida Brasil. Tornou-se também um dos centros fervilhantes de toda uma nova geração que cresceu com os governos Lula. Lá estão o Observatório das Favelas e mil e um projectos, lutando diariamente no meio da violência, do descaso do Estado que originou o avanço do tráfico, e do abuso do Estado com o argumento de deter o tráfico. Este é o berço de Marielle, assim ela se dizia: “cria da favela”.
Nasceu então favelada, negra, mulher. Três circunstâncias que no Brasil tendem a andar juntas. Sobre o começo da adolescência, disse numa entrevista: “Fui catequista e isso vai me compondo também quanto formação, e é importante falar disso porque é uma parte que está presente em meu lugar.” Depois: “Com 17 para 18 anos é um período que estou indo muito a baile, sendo adolescente da favela que curte baile, torcida, farra, fugir da igreja pra ir pro baile…”

Uma menina como tantas na Maré. Em 1997 terminou o ensino médio, a seguir estudou numa escola pública à noite, a seguir tentou fazer um Pré-Vestibular Comunitário, preparação para a universidade. “Seguindo a maioria das meninas da favela, não fugindo a regra: engravidei com dezoito anos. Então eu largo estudos porque mesmo com a mãe ajudando, não tinha como deixar, o foco era cuidar da criança e não tinha ali esse lugar de um pai presente que assumisse suas responsabilidades.”

Foi trabalhar, deixando a filha muito cedo na creche. “Esse lugar da mulher que tem seis meses de aleitamento exclusivo mais férias, eu não tive isso. Com três meses, a Luyara foi para creche.” Mas é a própria existência da filha que a faz não desistir de estudar: “O estigma era que eu iria ser mulher de bandido ou cometer delitos. Mas, no final, o que a Luyara me dá é uma estrutura, um sentido de que eu deveria ir estudar e conseguir sustentá-la e criá-la de uma maneira melhor.”

Marielle voltou ao pré-vestibular e conseguiu entrar na PUC como bolseira integral. A PUC (Pontífica Universidade Católica) é a universidade privada mais prestigiada do Brasil, caríssima para quem não tem bolsa. Lá estudam muitos dos mauricinhos e patricinhas, como são chamados os filhos da elite. Mas conheci de muito perto várias Marielles no boom de acesso à universidade dos anos 2000, jovens, negras, da favela. Uma das minhas amigas no tempo em que lá morei era justamente bolseira integral da PUC, de Ciências Sociais, como Marielle. Digo era porque está mais do que formada, a mil e na luta.

Sobre o tempo da PUC, Marielle falou assim: “Sempre fui política, no sentido mais amplo. Quando entrei na PUC, em 2002, o meu lugar era de reivindicar direitos, naquele momento só para a minha comunidade e para mim. Cheguei muito arredia, ainda tomada pela sensação de pertencimento à favela. Eu me distanciava muito das patricinhas, dos mauricinhos, porque afinal eram de outra classe e outra renda. Mas aprendi a lidar com a diversidade. Fiz amigos, amigas. Tenho lembranças muito boas.” Sendo que o quotidiano não era mole, não. “Não vivi a PUC em sua completude. Eu já era mãe, então houve épocas em que trabalhei em dois horários. Não vivi o movimento estudantil. Só o campus que era impossível de não viver, porque sou apaixonada por ele, mas também era para sentar e resolver algum trabalho ou para estudar mesmo.”

Tornou-se socióloga. Depois veio a fazer mestrado na UFF (universidade pública, Niterói) com uma tese sobre Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, analisando especificamente as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), então em expansão. Mas aí já estava mergulhada na política.

O que levou Marielle a mergulhar na política foi uma bala perdida em 2005, que matou uma amiga próxima, na Maré. Tornou-se uma activista pelos direitos humanos e contra intervenções violentas na favela. Em 2006 estava na campanha que elegeu Marcelo Freixo para a assembleia estadual, pelo PSOL (socialistas ex-comunistas). Freixo tinha-lhe dado aulas no pré-vestibular, conheciam-se daí. Ela tornou-se assessora dele na assembleia, depois passou à Comissão de Direitos Humanos, e em 2012 tornou-se coordenadora.

Faltava Marielle ir a votos. O que aconteceu na eleição de 2016. Ela esperava uns 6000 votos, disse. Teve 46.502, fazendo uma campanha como feminista, negra, gay, contra a violência policial. A quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro.

A 16 de Fevereiro deste ano, quando Temer assinou a ocupação militar do Rio, Marielle foi uma das vozes críticas.

A 28 de Fevereiro, foi nomeada relatora da Comissão da Câmara de Vereadores, criada para acompanhar a intervenção do exército.

A 10 de Março, denunciou o aumento da violência de Estado depois da ocupação e, de forma contundente, violência policial no bairro suburbano de Acari. “O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E acontece desde sempre! O 41° batalhão da PM [Polícia Militar] é conhecido como Batalhão da morte. CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens.”

A 13 de Março, anteontem, escreveu no Twitter: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Ontem foi executada.

Há gravações de Marielle a falar ontem. Ela tinha ido a uma iniciativa na Lapa, centro do Rio: “Jovens Negras Movendo as Estruturas.” Basta ver um pouco para achar o carisma, a força, a beleza. Aquela carioca que em pouco tempo deu corpo a um lema: o lugar da mulher é onde ela quiser. Marielle saiu da Lapa no carro guiado por Anderson Pedro Gomes, de 39 anos, um morador do subúrbio do Rio que se tornara motorista de Uber, e estava a cobrir a baixa por acidente do motorista habitual de Marielle. Na zona do Estácio, bairro central do Rio, um carro emparelhou com o deles, pelo menos nove tiros foram disparados. Morreram Anderson e Marielle, com várias balas na cabeça. Não houve roubo.

O choque do Rio, do Brasil e por aí fora não é só o choque da morte súbita, violenta. Mariella não foi só morta de forma violenta, como Anderson também foi. Foi executada — tudo indica, e é isso que parece tão assustador — por ser tudo o que era: mulher, negra, favelada, gay, socialista, eleita pelo voto, activa contra a ocupação militar e a violência policial no Brasil de 2018. Todas as mortes não são iguais, todas as mortes são diferentes. Algumas mortes são também, de facto, colectivas. Na dor, na angústia, no medo, na raiva, e é isso que está a acontecer.

No momento em que escrevo, milhares de pessoas ocupam a praça da Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. Há protestos marcados em série, incluindo em Portugal (onde à hora a que escrevo estão também marcadas concentrações). A primeira urgência é que o crime seja esclarecido. E para onde o crime aponta é o nó do Brasil: o que são e significam a Polícia Militar, o Exército, a nostalgia da ditadura, as máfias que sustentam os usurpadores da democracia, esse buraco negro que é o fascismo, o fascismo.

Caetano Veloso pegou no violão e gravou para Marielle aquela sua canção que diz: “Estou triste, tão triste / e o lugar mais frio do Rio é o meu quarto.” Por absoluto acaso vi isso no Facebook logo depois de um poema na morte de Marielle que para mim ecoa aquele índio sonhado por Caetano (“virá que eu vi”). Está assinado “Micheliny Verunschk, 15 de março de 2018, a manhã seguinte à execução de Marielle Franco.”

Uma mulher descerá o morro

como se descesse de uma estrela

uma mulher seus olhos iluminados

suas mãos pulsando vida e luta

sob seus pés a velha serpente

[a baba as armas a covardia de sempre].

uma mulher descerá o morro

as inúmeras escadarias do morro

os muros arames que separam o morro

e pisará o chão desse país sem nome

desse país que ainda não existe

desse país que interminavelmente não há

uma mulher descerá o morro

tempestade é o vestido que ela veste

uma mulher descerá o morro

e ainda que seu sangue caia

ferida incessante no asfalto do Estácio

e ainda que anunciem sua morte

[e sim, ainda que a comemorem]

esta mulher ninguém poderá parar.

Não me saem da cabeça estas palavras: e pisará o chão desse país sem nome, desse país que ainda não existe.

Sem o ainda estamos todos mortos. Acredito totalmente nesse país.

Via João Lopes

“Liberalismo Econômico na China”: um projeto para o Brasil, por Isabela Nogueira de Morais e Eduardo Costa Pinto

“Liberalismo Econômico na China” (ci): um projeto para o Brasil

Nota: (ci) = contém ironia. Esta nota não existe no texto original da Carta Maior.

Publicado em cartamaior.com.br

14/03/2018

Tal como lá, precisaremos reestatizar a Vale e a Companhia Siderúrgica Nacional, manter a Eletrobras, retomar a política de conteúdo local da Petrobras e seu controle sobre o Pré-Sal, abrir dois novos BNDES, outro Banco do Brasil e outra Caixa, impor controle de capitais, e fazer a reforma agrária mais radical que o mundo já viu.

Em artigo recente para a Folha de S.Paulo intitulado “Excesso de liberalismo econômico está por trás do crescimento da China”, Samuel Pessôa argumenta que a China tem um Estado mínimo em comparação com o Brasil, dado que tanto a carga tributária quanto os gastos sociais chineses são bem menores (em proporção ao PIB) do que os brasileiros. Segundo ele, isso faz com que a taxa de poupança dos chineses seja muito alta. Portanto, o sucesso do crescimento na China estaria baseado no suposto “liberalismo chinês”: baixa carga tributária, baixo gasto social e alta poupança. Estas seriam as reais causas dos juros baixos na economia chinesa.

O ponto crítico desse diagnóstico não está somente no problema teórico que separa ortodoxos e heterodoxos nas determinações causais da relação poupança-investimento[1], mas, sobretudo, no seu completo desconhecimento da dinâmica capitalista na China.

A fórmula chinesa para política monetária não poderia ser mais heterodoxa: a taxa de juros é mantida baixa de maneira previsível, administrada e estável em virtude de fortes controles de capitais e de um sistema financeiro controlado pelo Estado.

Os controles de capitais preveem restrições pesadas a investimentos em portfólio, a dívidas em moeda estrangeira e a repatriações. Os bancos comerciais estatais são responsáveis pelo grosso da oferta de crédito – e quatro deles já são os quatro maiores bancos do mundo em termos de capitalização. Três enormes bancos de desenvolvimento, obviamente sob controle do Conselho de Estado, orientam o financiamento de longo prazo. As taxas de juros baixas são garantidas por um processo de financeirização com características chinesas que nada tem a ver com a globalização financeira que toma conta de boa parte do mundo e do Brasil. Ao contrário de nós, a financeirização chinesa esteve finamente articulada com um processo virtuoso de investimento e industrialização com progresso técnico.

A financeirização com características chinesas é dirigida por um sistema bancário essencialmente estatal, regulada via controle de capitais e sob intenso comando sobre o capital internacional. Poucos países do mundo regularam o investimento estrangeiro direto em prol do desenvolvimento nacional como os chineses. Desde a obrigatoriedade para formação de joint-ventures com parceiros locais até os acordos para transferência de tecnologia e a definição geográfica da localização do investimento externo, todos esses elementos sempre foram guiados pelo Estado.

Crédito estatal, e não a poupança das famílias, foram cruciais para impulsionar as obras de infraestrutura. Esses investimentos massivos foram operados por empresas que são, nos nódulos da acumulação, igualmente estatais. Em estudo de 2017 sobre desigualdades e a propriedade estatal em diferentes economias do mundo, Piketty, Li e Zucman concluem que fatia da riqueza pública na riqueza nacional na China está em torno de 30% desde meados dos anos 2000 até 2015 (último dado). Isso é significativamente diferente dos Estados Unidos ou da maioria dos países da Europa Ocidental, onde a riqueza pública está virtualmente em torno de zero.

Na China, a propriedade estatal está nos nódulos da acumulação. O Estado afeta a taxa e a direção do investimento por meio do seu controle de gigantescas empresas em petróleo, siderurgia, energia, petroquímica, telecomunicação, ferrovias, sistema bancário e por aí vai. Isso explica, inclusive, a tributação menor em proporção ao PIB e, ao mesmo tempo, uma capacidade de intervenção direta na economia muito maior do que no Brasil. São essas empresas que, articuladas a um sistema nacional de inovação, fizeram parte de algumas das políticas industriais mais exitosas da história recente. Todas aproveitando algo muito caro aos heterodoxos keynesianos: a enorme demanda interna chinesa. O sistema de trens de alta velocidade que Samuel menciona, montado e operado por empresas chinesas estatais, está na fronteira tecnológica do setor e é um caso clássico de articulação da política industrial puxada pelas estatais com um sistema nacional de inovação baseado, entre outras coisas, na monumental demanda doméstica.

O crescimento chinês, entretanto, veio acompanhado daquelas que são as contradições mais perversas do capitalismo. Aqui é necessário historicizar o que Samuel retrata estaticamente. Os baixos gastos sociais em proporção ao PIB são fruto do vácuo de proteção social a partir do desmonte do antigo sistema socialista. Isso levou ao acirramento do conflito de classes no país e, como resposta do Estado, a um conjunto de políticas públicas conhecidas como “sociedade harmoniosa”.

Desde meados dos anos 2000, os gastos públicos com saúde e educação crescem na China em proporção ao PIB enquanto o país se vê envolto em lutas e debates sobre que tipo de Estado de bem-estar será formado. Fato é que entre meados dos anos 90 e meados dos anos 2000 – período de reduzidos gastos sociais –, a proteção social chinesa esteve ancorada em um pilar estrutural: o direito de uso da terra para centena de milhões de camponeses. Isso Samuel ignora. A distribuição equitativa do direito de uso da terra agrícola em pequenos lotes de menos de 1 hectare por família foi a principal rede de proteção social para famílias pobres e trabalhadores migrantes em face ao desmonte do antigo sistema comunal. Além do sistema político repressor, foi também a estrutura agrária que assegurou que não houvesse convulsão social em meio a tantas rupturas sociais.

Em meio a essa transição de uma economia planificada socialista para um capitalismo de Estado, também uma nova classe capitalista foi surgindo. Muitos “capitalistas vermelhos” nasceram da noite para o dia pelo acesso privilegiado às antigas empresas estatais privatizadas. Aqui o forte nacionalismo do Partido Comunista da China (PCC) ficou evidente ao, por exemplo, nem sequer cogitar a entrada de estrangeiros na compra das pequenas e médias SOEs (State-Owned Enterprises) privatizadas. Em meio a tantas mudanças na estrutura política e ideológica da China pós-revolução, uma característica não muda: a busca da modernização como instrumento de fortalecimento nacional. A estratégia chinesa é orientada por uma clara visão de que os condicionantes externos são cruciais para a trajetória de crescimento da sua economia.

Assim como Samuel, nós apoiamos a implementação do “liberalismo econômico chinês” no Brasil. Para tanto, precisaremos reestatizar a Vale e a Companhia Siderúrgica Nacional, manter a Eletrobras, retomar a política de conteúdo local da Petrobras e seu controle sobre o Pré-Sal, abrir dois novos BNDES, outro Banco do Brasil e outra Caixa, impor controle de capitais, e fazer a reforma agrária mais radical que o mundo já viu. Além de traçar estratégias nacionais autônomas que operem segundo as fraturas que se abrem e que se fecham no sistema internacional.

Uni-vos, brasileiros, pelo “excesso de liberalismo econômico chinês”!

  • Isabela Nogueira e Eduardo Costa Pinto são professores do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) e pesquisadores do LabChina (Laboratório de Estudos em Economia Política da China).
    [1] Algumas das características marcantes das análises ortodoxas na economia estão na sua estática comparativa e na derivação lógica de leis gerais a partir de hipóteses ad hoc e microeconômicas. Nas suas versões mais puras, trata-se de trabalhos sem historicidade e completamente despreocupados com a formação social sobre as quais se debruçam.

Créditos da foto: &nbps;

Entrevista com Pedro Rossi: “Não há justiça fiscal no Brasil”, por Stela Pastore

“Não Há Justiça Fiscal No Brasil”

12/03/2018

Jornal Extraclasse | Stela Pastore

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. E a questão tributária contribui fortemente para isto. O tema da justiça fiscal é espinhoso, e faz com que há vários governos e legislaturas no Congresso sejam adiadas as decisões, tanto pelo enfrentamento político, quanto pela complexidade de mexer num emaranhado de impostos e taxas, um verdadeiro quebra-cabeças que envolve União, estados e municípios, em que nenhum ente federado quer perder tributos.

Para o professor do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp, Pedro Rossi, é uma reengenharia, que mais que formulações matemáticas, precisa de vontade política e um amplo debate que explicite e altere a profunda desigualdade do sistema atual, que afeta a produtividade das empresas e gera desigualdades sociais, fazendo com que os pobres paguem muito mais impostos do que os ricos.

O pesquisador esteve em Porto Alegre debatendo Propostas para uma reforma tributária justa, no seminário do Instituto de Justiça Fiscal (IJF), em janeiro, entidade que busca propor soluções para distorções tributárias. “Se não houver força política não haverá a reforma tributária”, registra.

Pedro Rossi analisa a relação entre a estrutura tributária e as desigualdades e o que chama de “cruzada pela demonização dos impostos”. E alerta: é fundamental reverter com urgência as medidas adotadas pelo atual governo que estão gerando um apartheid social.

Extra Classe – Como o senhor vê o trabalho da Comissão Especial do Congresso Nacional que quer aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional para reestruturar o sistema tributário?

Pedro Rossi – As propostas são tímidas e pontuais porque não alteram a regressividade da carga tributária. É preciso ir mais fundo.

EC – Que alterações na matriz tributária são fundamentais para promover maior igualdade econômica?

Rossi – Em termos gerais, é preciso aumentar os impostos que incidem sobre a renda e a riqueza e reduzir o peso dos impostos indiretos, que além de piorar a distribuição de renda, reduzem a eficiência e a competitividade do sistema produtivo. Isso aumenta o custo das mercadorias e dos serviços brasileiros relativamente aos de países com carga tributária centrada na renda e na riqueza, prejudicando a competitividade das empresas e a eficiência do sistema econômico doméstico.

EC – O Brasil é o primeiro país em concentração de renda: 30% da renda na mão de 1% da população. Como reduzir a disparidade com mudanças tributárias?

Rossi – A desigualdade no Brasil tem uma forte dimensão institucional que reproduz e perpetua a desigualdade e impede a mobilidade social e o próprio funcionamento da democracia. Há vários aspectos subjetivos e objetivos responsáveis por isso, mas, objetivamente, a carga tributária é a principal dimensão institucional da desigualdade. Na Constituição de 1988, o Brasil escolheu construir um Estado de bem-estar social, com saúde e educação universais, entre outras, mas não definiu muito bem como financiá-lo. A elite econômica não topou financiar com impostos progressivos e a solução foi financiar com impostos ruins, regressivos. Acabou que os mais pobres são mais prejudicados pelos impostos.

EC – Na lógica da justiça fiscal, quem deveria pagar imposto e não paga?

Rossi – Há duas visões opostas sobre justiça fiscal. Uma extremamente conservadora, baseada no critério do benefício em que a pessoa entende que deve pagar apenas pelo que recebe individualmente do Estado. É uma visão individualista da natureza dos impostos, incompatível com uma sociedade mais justa e equilibrada, com um pacto social no qual o Estado é um provedor de bens sociais universais e tem uma função redistributiva. Para um país como o Brasil, essa visão só levaria ao aprofundamento das desigualdades, à construção de feudos. Já a visão mais aceita de justiça fiscal estabelece o critério de capacidade de pagamento: cada um contribui relativamente à sua capacidade econômica, renda e riqueza.

EC – Afirma-se que no Brasil se paga muito imposto. É correto afirmar e como isso se dá entre pobres e ricos?

Rossi – Não há justiça tributária no Brasil pelo critério da capacidade econômica. Um estudo de Fernando Gaiguer com dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2008/2009 mostra que os 10% mais pobres comprometem 53% de sua renda disponível com tributos, já os 10% mais ricos contribuem com apenas 23% da sua renda disponível. Essa injustiça tributária decorre principalmente do peso dos impostos sobre comércio, bens e serviços na carga tributária. Os impostos indiretos prejudicam os mais pobres por dois motivos: porque todos pagam o mesmo independente da renda, e porque a população mais pobre consome uma parcela maior da sua renda com bens e serviços.

EC – O senhor fala da demonização dos impostos no país.

Rossi – Sim. Há uma cruzada conservadora contra os impostos que difunde a ideia de que esses são perda de rendimentos sem compensações. É uma retórica que impede a consideração de que os impostos devem ser essencialmente uma contribuição ao bem-estar coletivo e à implantação de serviços públicos como segurança, garantir o acesso de todos aos direitos sociais como saúde e educação universal e assim contribuir para justiça, igualdade e coesão social. É preciso repensar a função social do sistema tributário e suas finalidades no contexto do financiamento de um projeto de país que valorize a democracia, a distribuição da renda e da riqueza e a expansão dos direitos sociais.

EC – Quais os principais tributos que devem ser revistos e em que critérios

Rossi – Fala-se muito em aumentar as alíquotas do Imposto de Renda (IR), mas o imposto de renda no Brasil pesa mais sobre a renda do trabalho do que a renda do capital. Não adianta aumentar a progressividade na taxação da renda do trabalho sem mexer no capital. É preciso pensar a equidade no sentido horizontal, ou seja, pessoas que recebem o mesmo por diferentes fontes (rendas do trabalho ou do capital) ou diferentes modalidades de emprego (assalariado, pessoa jurídica etc.) e que devem contribuir de forma igual. Segundo os dados da Receita Federal, os rendimentos mais altos no Brasil não decorrem da renda do trabalho, mas da renda do capital e são isentos de imposto de renda. A proporção de rendimentos isentos cresce à medida em que cresce a renda.

Carga tributária aprofunda desigualdades

EC – Qual a maior distorção hoje?

Rossi – É a isenção de impostos na distribuição de lucros e dividendos que, além de beneficiar os mais ricos, aumenta o incentivo para abertura de pessoas jurídicas, a chamada pejotização. Aumentar as alíquotas do IR sem mexer nisso só vai incentivar a pejotização que também gera desigualdades. O Brasil é o país que mais tem empresas no mundo. E isso não significa empreendedorismo, mas para fugir de uma série de impostos.

EC – Como se dá essa distorção e como corrigir?

Rossi – As empresas contratam cada vez menos assalariados com carteira, para contratar prestadores de serviço, que exercem funções idênticas, mas são pessoas jurídicas. Assim, driblam-se os impostos e a legislação trabalhista. Um grande número de pessoas de alta renda recebe a remuneração do trabalho na forma de PJ, paga menos impostos e ganha bem mais. Essa diferença de tributação entre empregado e prestador de serviço agrava a regressividade da carga tributária. É injustificável que duas pessoas que prestam exatamente o mesmo serviço tenham uma diferença tão grande de tributação. A terceirização deveria ser acompanhada da correção de distorções, equiparando a tributação de empresas que prestam serviços típicos de empregados à dos empregados.

EC – Essa legislação foi estabelecida no governo de Fernando Henrique Cardoso (Art. 10 da Lei 9249/95) que isenta a tributação na distribuição dos lucros. Com a aprovação da Reforma trabalhista a pejotização tende a acentuar?

Rossi – Mudar essa legislação é o primeiro passo de uma reforma. Não adianta aumentar alíquotas de Imposto de Renda sem fazer essa mudança. Ou será uma nova distorção que não pega os mais ricos. Segundo cálculos do Orair e Gobetti, essa alteração geraria uma receita estimada em torno de R$ 50 bilhões ao ano. Além disso, a pejotização tende a se generalizar com a flexibilização das leis trabalhistas e se disseminar para as diversas categorias profissionais. Com a flexibilização do mercado de trabalho, é necessário repensar a arrecadação, caso contrário o financiamento das políticas públicas estará comprometido. Na Unicamp, estimamos que a pejotização de 1% dos trabalhadores com carteira resultaria em R$ 1,5 bilhão de perdas para a Previdência Social, fora outros impostos e contribuições que o governo deixará de receber.

EC – E a taxação das heranças e grandes fortunas como se colocam nesse cenário?

Rossi – O Brasil taxa pouco as heranças e precisa caminhar para isso. É um tema passível de avanços, porque os próprios defensores da meritocracia defendem a taxação de heranças. Um dos obstáculos é a mensuração da riqueza, que no Brasil é carente de dados. Temos que ter a capacidade de medir para taxar com critérios.

EC – Como a questão tributária se articula com o cenário de ajuste fiscal e redução do tamanho do Estado?

Rossi – A política fiscal no Brasil aumenta a desigualdade por meio da arrecadação, mas diminui por meio do gasto social, em especial, previdência, educação e saúde. Ou seja, o governo tira do mais pobre com uma mão os impostos e dá com a outra os serviços públicos. As reformas desse governo, em especial o teto de gastos (Emenda Constitucional 95) não mexe na arrecadação, mas projeta uma redução substancial do gasto social. Ou seja, o governo vai continuar tirando com uma mão, mas não vai mais dar com a outra. Isso aumentará muito a desigualdade no Brasil, que já é campeão de desigualdade. Se consolidado, esse projeto vai levar a um apartheid social. Daí a necessidade da defesa intransigente do gasto social e de uma reforma tributária progressista.

EC – O governo adota o discurso da austeridade como saída para a crise econômica. Como o senhor analisa?

Rossi – A austeridade é um discurso ideológico que fracassou no mundo todo e inclusive no Brasil, a julgar pelo forte ajuste fiscal que vem sendo implementado desde 2015. Não funciona por motivos simples e intuitivos: essa crise é uma crise de demanda, as famílias deixam de consumir, as empresas deixam de investir, a demanda externa é fraca. Com a queda da demanda a renda cai. Se o governo faz o mesmo, a economia vai para o buraco.

EC – O que há de verdade no discurso do ajuste fiscal para fortalecer a confiança dos investidores?

Rossi – Isso é fantasioso. O Prêmio Nobel de economia, Paul Krugman, chamou esse discurso de “fada da confiança”. Empresário não investe porque o governo fez ajuste fiscal, investe quando há demanda por seus produtos e expectativas de lucro. Esse discurso não tem mais qualquer credibilidade.

EC – Mas a Bolsa de Valores não sobe quando as medidas de austeridade são implementadas?

Rossi – A Bolsa de Valores negocia o capital, sua valorização, e os rendimentos do capital. Essa dinâmica pode estar descolada do crescimento econômico e da melhora de vida das pessoas. Eu nunca vi um título que dá retorno quando a vida de um trabalhador melhora.

EC – Muitas vezes o orçamento público é comparado com o orçamento familiar. Esta metáfora está correta?

Rossi – Essa metáfora é burra e serve a propósitos ideológicos. O governo, diferentemente das famílias, tem a capacidade de definir o seu orçamento. Está ao alcance do governo, por exemplo, tributar pessoas ricas ou importações de bens de luxo, para não fechar hospitais. Depois quando o governo gasta, parte dessa renda retorna sob a forma de impostos. Além disso, as famílias não emitem moeda, não tem capacidade de emitir títulos em sua própria moeda e não definem a taxa de juros das dívidas que pagam. O orçamento do governo não somente não deve seguir a lógica do orçamento doméstico, mas deve seguir a lógica oposta. Quando as famílias e empresas contraem o gasto, o governo deve ampliar o gasto de forma a contrapor o efeito contracionista do setor privado.

EC – Quem ganha e quem perde com a escolha dessa política?

Rossi – Ganha o grande capital que quer se apropriar das áreas onde o Estado hoje atua: saúde, educação, previdência, petróleo, energia. Ou seja, o Estado social é concorrente do neoliberalismo, pois ocupa um espaço que o setor privado poderia estar lucrando. Mas, além disso, ganha quem não quer pagar imposto para garantir os serviços sociais por motivos mesquinhos e ideológicos. Quem mora no condomínio, não usa transporte público, escola pública, segurança pública e acha que os serviços públicos são desnecessários e o governo é uma pedra no sapato. Quem perde é a imensa maioria da população que faz uso dos serviços públicos, principalmente, os mais pobres.

EC – Por que a mudança tributária não foi feita nos governos progressistas

Rossi – Vivemos ciclos de governos progressistas em toda a América Latina que não fizeram reformas tributárias profundas. E não fizeram por dois motivos: por conta da dificuldade política, mas, além disso, porque esses governos ocorreram num contexto internacional de crescimento, de aumento dos preços de commodities, o que permitiu financiar o gasto social sem enfrentar uma reforma estrutural.

EC – Mas o cenário agora é outro.

Rossi – Sim. De 2015 para cá a política fiscal virou o centro do conflito distributivo. Desse modo, a reforma tributária tem de estar no centro dos debates. E o ano eleitoral é propício para isso. No atual estágio, com as medidas tomadas recentemente e em andamento, o Estado está reforçando a desigualdade social. Estamos num estágio de degradação institucional. É preciso reverter as reformas, como a trabalhista e a do teto de gastos e discutir as alternativas. Há maneiras de fazer uma sociedade mais justa. Isso é mais que uma necessidade.

Xi Jinping, a ‘China recentralizada’ e a ‘nova formação econômico-social’, por Elias Jabbour

TEXTO PARA DISCUSSÃO

Publicado em Brasildebate.com.br

Elias Jabbour
Xi Jinping, a ‘China recentralizada’ e a ‘nova formação econômico-social’

A marca do governo chinês atual é a reestatização de parte da economia e de seus fluxos de renda, o conflito aberto às frações da burguesia mais afeitas à liberalização financeira e o fortalecimento de retórica marxista

09/03/2018
Motivo de interesse, mas nem sempre profundo, os acontecimentos na China tem tido repercussão cada vez maior no mundo e no Brasil. Neste sentido, é importante discorrer sobre a recente proposta de emenda constitucional, dentre várias, discutida na última reunião do Comitê Central do Partido Comunista da China encerrada em 25 de fevereiro, e sintetizada na retirada do limite de dois mandatos a cargos-chave, incluindo a presidência da República Popular.

Não é difícil supor o imaginário do pensamento jornalístico, acadêmico e de amplas parcelas das esquerdas influenciadas por um liberalismo tosco, importado e profundamente a-histórico: “Xi Jinping é um novo ‘ditador’”; “Aumenta o cerco às demandas ‘democráticas’”; “O livre pensamento dos ‘intelectuais críticos’ está ameaçado” (agora tendo de dar satisfação ao Estado de suas pesquisas no exterior, financiadas por esse mesmo… Estado). Proponho alguns raciocínios iniciais que se confundem com uma agenda de pesquisa em andamento. Vamos a eles.

Percebo que se trata de uma resposta ao esgotamento de um sistema político que teve o mérito de aumentar o grau do exercício de um corpo coletivo de dirigentes em detrimento ao risco de colocar os destinos do país sobre os ombros de um líder carismático. Um sistema legal socialista deu seus primeiros passos de elaboração com vistas, em Deng Xiaoping, de fortalecer ideias-força, entre elas a de “gerações dirigentes”, sendo a primeira delas nucleadas por Mao Tsé-Tung, a segunda pelo próprio Deng, a terceira e a quarta encabeçadas por Jiang Zemin e Hu Jintao. A atual e quinta geração tem à sua testa Xi Jinping. A cada geração, desde Jiang Zemin, cabe a missão de enfrentar os desafios de seu tempo de dez anos (dois mandatos de cinco anos). Observando por este prisma, a proposta de alteração constitucional pode ser uma marcha à ré? Pode ser. Mas não cabem absolutizações.

Uma das características das reformas econômicas chinesas foi a descentralização política que conferiu não somente maior liberdade de ação aos governadores de províncias e regiões autônomas. Tratou-se de uma reforma política exigida pelo seu tempo histórico, mas também uma exigência de “Grande Política” utilizada por Deng Xiaoping para enfrentar a resistência de Pequim nos momentos mais difíceis do início das reformas econômicas.

Essa descentralização, espelhando uma nova ordem “de mercado”, também conferia maior grau de poder e autonomia para gerentes de empresas, grandes e médias, em contraposição ao momento anterior de planificação central. O surgimento das Townships and Village Enterprises (TVE’s) precocemente ligadas ao mercado externo é um exemplo de resultado desta descentralização e de sua expressão no que chamo de “industrialização rural” que inaugurou novas formas de divisão social e regional do trabalho na China.

No geral, o resultado deste amálgama foi extraordinário em todos os sentidos, me dispenso de apresentar números e fatos a respeito. O ponto de conexão entre a proposta de reforma constitucional e o processo iniciado em 1978 está no fato, claro a mim: o “modelo” iniciado em 1978 e seu respectivo marco institucional tem mostrado sinais claros de esgotamento. Da mesma forma que se esgotou – em seu tempo – o “modelo soviético”.

As contradições surgidas no bojo deste longo e grandioso processo de crescimento e desenvolvimento foram proporcionais aos avanços observados: graves problemas sociais e ambientais, desigualdades sociais e regionais explosivas, degeneração social em grandes centros urbanos. Afora o fenômeno da corrupção que estava a abalar os alicerces de poder do PCCh, o levando ao mesmo destino de outras dinastias, ao se tornarem corruptas e ineptas, para darem conta, em seu tempo, de grandes obras hidráulicas.

Evidente que, ao longo dos últimos 40 anos, a capacidade de resposta do PCCh aos desafios postos pela realidade, interna e externa, é muito impressionante. Novos marcos institucionais foram surgindo ao longo do tempo de forma que o enfrentamento a essa gama de contradições possibilitasse novas fronteiras ao próprio processo de desenvolvimento. As “soluções de continuidade” entre um ciclo e outro de crescimento são uma característica fundamental do processo chinês.

Xi Jinping (a quem Fidel Castro classificou como “um dos líderes revolucionários mais firmes e capazes que conheci”) chegou ao poder em 2012 com a clara missão de enfrentar os desafios postos em seu tempo. Da mesma forma que seus antecessores, Jiang Zemin e Hu Jintao, o fizeram com brilhantismo. A marca da era Xi Jinping é a recentralização do poder estatal em todos os níveis, reestatização de amplas parcelas da economia e de seus fluxos de renda e conflito aberto às frações da burguesia mais afeitas à liberalização financeira. Fortalecimento de uma retórica marxista mais aguda e maior protagonismo exterior. Uma campanha violenta contra a corrupção foi desencadeada atingindo altas fileiras do Estado e do Partido.

Parêntese importante. Não devem ser poucos os inimigos criados por Xi Jinping nas altas cúpulas do PCCh. Neste sentido, segundo Richard McGregor, pesquisador do Instituto Lowy na Austrália e autor do livro “The Party”, sobre o funcionamento do Partido Comunista da China, a proposta de reforma constitucional “(…) consolida por enquanto a extraordinária autoridade de Xi sobre o Partido e o Governo, e adverte à sua legião de inimigos na cúpula do Partido, prejudicados por sua campanha anticorrupção, que ele não irá a lugar algum”. Nesses termos, a permanência de Xi dará um impulso ainda maior às ambiciosas iniciativas chinesas que contam com seu respaldo pessoal, como a Nova Rota da Seda e a transformação do país em uma potência tecnológica.

Há cerca de um quarto de século os círculos mais reacionários do planeta comemoravam o “fim do comunismo”. Não seria exagero afirmar que o maior acontecimento de nosso tempo está no fato de um partido comunista formado na esteira da 3ª Internacional fundada por Lênin esteja à frente da maior nação do mundo, um país pronto a tomar a dianteira da economia internacional. Nada disso estaria ocorrendo sem que o próprio PCCh também não demonstrasse capacidade de se reinventar ao longo do tempo.

Tenho dito que o processo recente percebido na economia chinesa (formação de 149 conglomerados empresariais estatais executando grandes políticas de Estado e as inaugurações de novos patamares em matéria de planificação econômica e de coordenação/socialização do investimento, por exemplo) pode estar dando forma a uma “nova formação econômico-social” (“socialismo de mercado”). Essa visão coloca-se em franca oposição aos que definem a China ou como mais um caso de “restauração capitalista” sob a forma de um “capitalismo de Estado” de sucesso, ou uma afirmação empírica das vantagens de uma “economia mista” ou de um “capitalismo wickseliano”.

Essa nova “formação econômico-social” ainda demanda o surgimento de novos marcos e arranjos institucionais capazes não somente de abrir novos campos e possibilidades ao processo de desenvolvimento. Mas também devem ser capazes de responder aos imensos desafios internos e externos do regime. O império chinês de tempos em tempos se recentralizava. A República Popular não tem motivo para ser diferente.

E, assim, o socialismo vai fazendo o caminho de busca de instituições que reflitam, segundo uma aceita definição à categoria marxista de formação social, a totalidade “infra e supra” que se forma e se desenvolve. A burguesia demorou mais de um século para encaixar algo que a Revolução Francesa tentou definir em 1789…

Crédito da foto da página inicial: Gustavo Lima/Câmara dos Deputados

A memória, a história e o esquecimento, por Fernando Horta

Por Fernando Horta

“O título é cópia de uma das grandes obras de Paul Ricoeur. O que o filósofo francês demonstra no livro é a base da política do século XXI até aqui.
Paul Ricoeur afirma que “lembrar” é um ato político. As forças políticas, e dentre elas o Estado, decidem o que deve ser lembrado, o que deve ser mantido e de que forma. Antigamente isto era feito por meio de monumentos, museus, datas comemorativas, feriados, além dos discursos e crônicas. Os objetivos eram manter vivas as memórias escolhidas não por sua alegada “importância histórica”, mas por avaliações morais que serviam a projetos de poder. Como Eric Hobsbawm, Benedict Anderson e outros tinham mostrado, o “nacionalismo” é fruto de um projeto que designa o que deveria ou não ser lembrado.
A batalha pelo ato de “lembrar” foi a tônica do século XX. Durante as guerras, uma intensa luta para mostrar que a Europa era oriunda de lutas por “liberdade” ou por “unidade racial” foi travada.
Nos EUA, a luta era pelos sentidos da Guerra Civil de 1861-1865. Teria sido uma luta fratricida por “liberdade” (em um sentido amplo) ou uma luta de um país de homens contra a escravidão negra? Após a segunda guerra, a luta de sentidos continua.
Era necessário reconstruir imageticamente a Europa e, neste contexto, apagar as ideologias de supremacia racial, que tinham sido a marca do continente desde o século XIX. A Alemanha sente diretamente este processo, e as reflexões Jürgen Habermas são essenciais para mostrar o poder político por trás do ato de “lembrar” durante a “desnazificação”.
Contudo, se a luta pelas memórias não são a novidade das reflexões de Ricoeur, o seu grande argumento é afirmar que o “esquecimento” é também – e talvez de forma mais flagrante – um processo que responde a projetos políticos. Se “lembrar” é numa atividade positiva política, fazer esquecer era também motivo de luta.
Não se trata, como mostra Ricoeur, do processo natural e individual de perder os registros do tempo em uma ou duas gerações. O “esquecimento” de que fala Ricoeur é a ação política voltada a renomear, ressignificar ou mesmo calar sobre determinados fatos ou narrativas do passado que não interessam aos projetos políticos do presente.
A comunidade judaica mundo afora luta incessantemente tanto pelo ato de lembrar quanto pelo de esquecer. Por um lado, a manutenção viva das memórias do holocausto são um projeto político de toda a comunidade, por outro, o Estado de Israel lutando pelo esquecimento da brutalidade com que age e sempre agiu sobre a Palestina.
Normalmente, todos os que disputam os sentidos ligados a esta temática fazem, de forma deliberada ou não, confusão entre as narrativas. Não raro acusações idênticas são proferidas pelos dois lados, o que revela uma discussão sobre objetos diferentes, em tempos diferentes que é descuidadamente “presentificada”.
Os movimentos negros fazem também as lutas de sentido. Pelo mundo afora a ideia de trazer à luz a história da África é muitas vezes classificada como “vitimismo” por grupos reacionários e conservadores.
E, se é verdade que tais grupos reconhecem um projeto político articulado, eles nunca respondem por que a África foi apagada dos currículos e das memórias? Foi apagada porque o projeto político da superioridade do homem branco, cultivado fortemente na Europa do século XIX, assim ordenava (e ainda ordena).
A luta pelos sentidos de “lembrar” é denunciada pelos conservadores. A luta pelo quê esquecer, entretanto, não é vista como um objetivo político. Às populações brancas e conservadoras, seus próprios projetos políticos são erroneamente apresentados como “normais” ou “legais”.
A Lava a Jato, juntamente com toda a perseguição às esquerdas na América Latina, um projeto conservador para “fazer esquecer” as duas primeiras décadas do século XXI. A prisão e inabilitação de Lula, a retirada de Dilma, as reformas e mudanças são objetivos secundários.
A luta “contra a corrupção”, nem secundária é como objetivo. É apenas a desculpa para forçar o “esquecimento”. Nesta esteira, o vice-governo Temer anuncia, nesta semana, que vai mudar o nome do “Bolsa Família”.
Atitude que cumpre o mesmo papel que a tentativa de classificar os governos do PT como “a maior corrupção da história do país”. Hoje, um artigo publicado na CNN traz semelhante argumentação sobre o governo Trump. Segundo, Julian Zelizer, o governo Trump é a resposta conservadora que tenta apagar Obama.
Trump governa especificamente com pauta invertida do que fora a pauta do presidente anterior.
Na Europa, o processo mais dramático de organização do “esquecimento” histórico se dá sobre as memórias da URSS. As narrativas que visam retirar toda e qualquer legitimidade sobre as conquistas soviéticas se cristalizam no errôneo chavão do “não deu certo”.
E correram o mundo assim. O problema é que este “apagar de memórias” permitiu, e ainda permite, que Vladimir Putin se beneficie deste novo arranjo. Putin assume o lugar histórico das memórias surrupiadas do período soviético. O ocidente não foi capaz de oferecer nada em troca das memórias soviéticas retiradas.
O retorno ao czarismo dos Romanov não era uma opção válida, e os russos recriaram a mítica “mãe-Rússia”, e sobre ela reorganizam suas identidades. O efeito colateral é o ressurgimento de um anti-americanismo e anti-ocidentalismo na Rússia atual. Claro que joga papel importante a presença militar ameaçadora da OTAN, mas os russos se compreendem no século XXI, como afirmou Putin em seu discurso do dia primeiro de março, como “a força que contrabalança o poder americano”.
O projeto conservador de esquecimento dos avanços progressistas, no início do século XXI, atinge todos os países do mundo. Na África do Sul, há a tentativa clara de apagamento da política de “concertação racial” colocada em prática por Mandela.
No Japão, há o retorno das capacidades militares, juntamente com a ação deliberada de contestação das narrativas da segunda guerra, que colocavam os japoneses como um dos principais fomentadores daquela barbárie.
O “Brexit” da Inglaterra deve ser entendida também no mesmo sentido. O mundo do século XX, orquestrado com uma série de amarras contra as barbáries das guerras e do fascismo, sucumbe frente aos projetos de esquecimento conservador.
Como respostas, a China de Xi-Jiping vota que este pode se manter no poder indefinidamente.
O Partido Comunista japonês se torna a segunda maior força naquele país. Os movimentos negros nos EUA retomam instância vigilante e ativa e contestam as memórias da Guerra Civil. Na América Latina, volta-se a lembrar as conquistas de Che Guevara, Fidel Castro e Hugo Chavez.
Desta forma, Lula se torna ainda mais importante por ser a grande liderança ainda viva. A própria Revolução Russa de 1917 é saudada e reexaminada e, em virtude da violência das tentativas de esquecimento, as memórias são usadas sem as possíveis críticas. A polarização é, assim, um mecanismo de defesa política. Se não há crítica e “mea culpa” por parte dos conservadores, fascistas e neoliberais, também não haverá pelas forças progressistas.
O problema é que nesta deliberada ação de reescrever acriticamente o passado, o início do século XXI é perigosamente semelhante ao início do século XX. E se a direita conservadora se mantiver neste caminho, para perseguir, prender a inabilitar fisicamente opositores políticos, então o tom das disputas do novo século será dado.
Espero que o Brasil aprenda com a história. Se não fizermos nada contra os golpistas de 2016, em vinte anos surgirão movimentos que vão fazer pronunciamentos pela memória “do grande Michel Temer”, do guerreiro “Romero Jucá” e exaltando a “justa Carmem Lúcia” que colocaram milhões na pobreza e mataram outros milhões de fome mas “nos livraram do comunismo”.
Talvez, algum obscuro personagem agressivo, violento e sem qualquer legitimidade será o “novo Ustra”.
Não me assusta a recolocação do projeto político de “concertação de classes” lulista. Me assusta a reedição do pacto da constituição de 1988.
Aquela que perdoou ditadores, corruptos, torturadores e toda sorte de indecências políticas. Os silêncios e condescendências que colocaram o novo Brasil como tendo sua existência dependendo de permissão dada pela aliança entre militares e corruptos de centro-direita.
Os coturnos que não foram punidos após 1988 voltaram a pisar na democracia e no povo em 2018. As togas de 2016, perdoadas, também voltarão. Um país que não lida com seu passado, nunca terá futuro.”

Sabemos como começa e imaginamos onde vai dar … (está dando), por Luís Carlos Valois

Hoje mantenho  esse adesivo no meu telefone, recebido após a apreensão, para lembrar que não somos imunes à perseguição, à traição, à inveja ou mesmo ao erro de quem quer que seja. Não importa o cargo que você exerça, você está sujeito a ser acusado de algo que não fez. Aliás, eu não estava sendo investigado por nada, porque ser investigado necessita de um fato a se investigar.
Eu era o alvo, como está no adesivo do telefone, o alvo, a pessoa a se investigar para saber se há um fato a se imputar. Procedimento inexistente nas leis e nos códigos, pois não se investigam pessoas, se investigam fatos.
Mas eu era um alvo, e guardo essa lembrança para nunca mais esquecer o quão vulneráveis somos em um Estado Policial, onde o que conta é a suspeita de pessoas, independentemente dos fatos. Onde todos somos suspeitos e denunciantes, onde não se confia em mais ninguém, e morre o que há de melhor no ser humano, a esperança.
O alvo aqui continua trabalhando, estudando, seguindo sua vida, enquanto o procedimento em que é alvo cozinha em banho Maria, como tortura, no sadismo da morosidade processual. A única coisa que eu agradeço à PF é pelos amigos que se afastaram. Os que ficaram, o laço é mais forte!
Por Luís Carlos Valois

Esse é o golpe dos que odeiam tudo, por Ulysses Ferraz.

A responsabilidade pelo título deste post é minha. O texto é do ULYSSES FERRAZ. Assino embaixo e compartilho emocionado.

Paulo Martins

“OS HOMENS que queriam ser PRESIDENTES
Não podemos esquecer que estamos diante de um golpe maquinado por homens.
Esse é o golpe dos homens que queriam ser presidentes. Esse é o golpe dos homens que foram derrotados nas urnas. Esse é o golpe dos homens que não se conformaram em perder as eleições para um ex-metalúrgico.
Esse é o golpe dos homens que não aceitaram a derrota para uma MULHER. Esse é o golpe dos homens sérios que não levam as regras democráticas a sério. Esse é o golpe dos caciques do PSDB.
Serra, Aécio, Alckimin. Esse é o golpe do homem que queria ser rei. FHC. Esse é o golpe dos traidores do PMDB. Esse é o golpe do vice-presidente que também queria ser presidente. Temer. Esse é o golpe dos congressistas da bala. Da bíblia. Do boi. Dos bancos. Da propriedade. Da família.
Esse é o golpe dos lobistas infiltrados na política. Esse é o golpe dos fascistas. Esse é o golpe dos homens que pregam a tortura. Dos bolsonaros. Esse é o golpe dos verdadeiros réus. Cunhas. Renans. Malufs. Esse é o golpe dos tecnocratas. Cristóvãos. Miros. Moreiras.
Esse é o golpe dos homens que rasgam a constituição. Moros. Janots. Gilmares. Esse é o golpe dos moralistas sem moral. Esse é o golpe dos homens que comandam as grandes corporações. Dos barões da mídia. Dos soldados do capital financeiro-especulativo. Dos magnatas das armas. Dos monarcas do petróleo. Dos senhores da guerra. Dos soberanos do tráfico. Dos imperadores das finanças. Dos tiranos da indústria cultural.
Dos magos da moeda virtual e eletrônica. Esse é golpe do velho jeito de fazer negócio dos velhos congressistas de negócios. O golpe dos eternos coronéis da política. Esse é o golpe do conservadorismo jurídico dos homens togados. Esse é o golpe dos homens da Fiesp. da Febraban e da OAB.
O golpe da dominação masculina entranhada nas nossas instituições ainda patriarcais e retrógradas. Esse é o golpe dos homens que não suportam as minorias.
Esse é o golpe dos homens homofóbicos. Esse é o golpe dos homens que odeiam o povo. E a democracia. Esse é o golpe da mentalidade escravocrata e senhorial.
Esse é o golpe dos bigodes pintados, das cabeleiras falsas, das gravatas encurtadas pairando sobre a deselegância indiscreta de suas barrigas. Esse é o golpe de homens que ostentam a cafajestice.
Esse é o golpe do chauvinismo cínico. Da misoginia. Da antidemocracia. Esse é o golpe das mulheres que pensam como os piores homens. Esse é o golpe dos homens que representam o pior do homem.”