A barbárie como projeto, por Marcio Sotelo Felippe

A face hedionda do governo Bolsonaro mostrou-se claramente nestes 50 dias em dois projetos. A reforma da previdência e o código Moro. Não são estanques. Estruturalmente se complementam.

A reforma da previdência é parte de um projeto de acumulação em detrimento dos trabalhadores (que começou a aparecer no golpe do impeachment) que em sua totalidade vai aprofundar a miséria da massa trabalhadora, metade da qual vive com menos de um salário mínimo. Uma tal estrutura iníqua de dominação não é mantida apenas com mecanismos ideológicos.

É preciso também a violência do Estado para controle dos excluídos, em especial dos jovens da parte de baixo da pirâmide social, para os quais todas as portas para ascensão social e melhoria de vida estão fechadas. Essa é uma das funções estruturais do direito penal e a realidade por trás da aparência do Projeto Moro. A extensão da excludente de ilicitude para incluir “medo”, “surpresa” e “emoção”, na prática, diante do conservadorismo do Judiciário, por vezes filofascismo, do uso perverso que faz de expressões de linguagem aberta nesse campo, significa a legalização do homicídio para a polícia. Não atingirá quem mora no Leblon ou nos Jardins.

Temos assim o modelo do Estado neoliberal. Ele se caracteriza pela flexibilidade de seu tamanho. Conforme a necessidade é grande ou pequeno. É grande para punir, mas encolhe para ser utilizado como instrumento de acumulação.

A reforma da previdência, a longo prazo, retira do Estado a função de gerir a previdência. Receber uma aposentadoria estatal que não condene o trabalhador à miséria na velhice transforma-se em uma corrida de obstáculos praticamente impossível de ser superada. Assim, abre-se o espaço para fundos privados, dominado por grandes grupos financeiros que passam a controlar de acordo com a lógica do mercado uma massa formidável de recursos. O resultado disso no Chile estamos vendo: suicídio de idosos.

O déficit da previdência é a grande mentira do século 21, pelo menos até este ano da graça de 2019. Ele simplesmente não existe. É uma manobra grosseira martelada incessantemente, dia e noite, pelos grandes órgãos de comunicação, uma aplicação da estratégia Goebbels, segundo a qual uma mentira torna-se verdade se repetida à exaustão.

Previdência, saúde e assistência social compõem a seguridade social. Isto está no artigo 194 da Constituição Federal. As fontes de financiamento dessas três áreas estão discriminadas no artigo 195 e são múltiplas e abundantes. Contribuições dos empregados e empregadores, COFINS, PIS-PASEP, importações e até loterias. Considerando essa massa de recursos, a seguridade social tem superávit. O suposto déficit da previdência é fabricado desconsiderando os Arts. 194 e 195 da Constituição para só computar o que se arrecada com a contribuição previdenciária e o que se gasta em aposentadorias e pensões.

O que na verdade sangra o orçamento da União é a dívida pública. Ela que suga a riqueza produzida pelos trabalhadores para pagar juros e o serviço da dívida. Em 2018 foram dispendidos 380 bilhões de reais, algo entre 40 e 50% do orçamento da União.

Começa-se a entender a lógica do mercado ao exigir a reforma da previdência quando se verifica de onde vem parte dos recursos para a dívida. Exatamente das fontes de financiamento da seguridade social que estão lá no Art. 195 da Constituição e que deveriam apenas financiar a seguridade social. Pelo mecanismo da DRU (Desvinculação de Receitas da União) esses recursos são utilizados também para a dívida pública. Então, o de que se trata é o seguinte: é preciso diminuir as despesas com a Previdência para que o superávit das fontes de receita da seguridade social esteja disponível para o pagamento dos juros e serviço da dívida.

O ajuste fiscal de que precisamos é outro e para outros fins. Lucros e dividendos, por exemplo, estão isentos de Imposto de Renda. Claro que os pró-labores diminuem e essa massa de recursos tributáveis vai para a rubrica a salvo do imposto. A monstruosidade aparece quando, em vez de tributar lucros, corta-se o Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos pobres com mais de 60 anos. Ele passaria, com a reforma, a ser de meio salário mínimo até os 70 anos. Não há como qualificar isso. Dizer monstruosidade é insuficiente. O ajuste fiscal precisa ser feito para que o Estado possa oferecer saúde, educação, bens sociais, investir, gerar empregos. Mas esses gastos estão congelados porque o parasitismo financeiro precisa de recursos.

Mais e mais as classes dominantes refestelam-se no capitalismo financeiro parasitário provocando a desindustrialização. Segundo dados do IBGE, a indústria responde hoje por apenas 11 por cento do PIB, a menor desde os anos 50, quando deixávamos, nas décadas anteriores, de ser um país eminentemente agrário. Nos anos 1980 a participação da indústria era superior a 20%.

A desindustrialização gera um efeito tremendo na base da sociedade. Circulação de ativos financeiros não produz riqueza real. Como diz Ladislau Dowbor, “é o rabo que balança o cachorro”. Ou seja: “ sistema financeiro é de mediação, não produz nada. Então as áreas produtivas se tornam o meio para os especuladores ganharem dinheiro”. Menos empregos, mais trabalhadores tendo que sobreviver na economia informal, sem direitos e garantias e os que estão na economia formal sendo mutilados em seus direitos pela reforma trabalhista. Pauperiza-se a base da sociedade, que não tem como consumir e constitui-se o círculo vicioso da desindustrialização.

Nesse cenário irracional e caótico, que não abre qualquer perspectiva para os despossuídos, oprimidos economicamente e oprimidos também psicologicamente pela desigualdade ao contemplar a orgia de luxo e consumo dos privilegiados, é preciso um xerife Moro para manter essa pirâmide social lotando presídios.

Neste espaço, em outra oportunidade, transcrevi parte de uma entrevista de John Ehrlichman, assessor de Nixon. Peço licença aos leitores para fazê-lo de novo porque é exatamente disto de que se cuida, na essência: “Quer saber realmente do que se tratava? A campanha de Nixon em 1968 e a Casa Branca, depois, tinham dois inimigos: a esquerda contrária à guerra (do Vietnam) e os negros (…) Sabíamos que não podíamos tornar ilegal ser contra a guerra ou ser negro, mas ao fazer com que as pessoas associassem aos hippies a maconha e aos negros a heroína, e penalizar severamente ambas as substâncias, podíamos pegar as duas comunidades. Podíamos deter seus líderes, realizar incursões em suas casas, interromper suas reuniões e difamá-los noite após noite nos noticiários. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim”.

É uma confirmação empírica do conceito de direito penal como meio de dominação pelo controle da massa de excluídos. O endurecimento das leis penais, o punitivismo, que puseram no sistema prisional brasileiro 800 mil pessoas, a maior parte jovens negros, é tanto maior quanto maior a desigualdade e a irracionalidade da estrutura social. É para isto que serve o Código Moro.

No governo do capitão, as duas pontas do laço que vai apertar mais o pescoço da massa excluída estão nas mãos de Guedes e Moro. Pouco importa para os setores beneficiados quem seja o presidente. Pouco importa que seja notoriamente despreparado, com um comportamento fora da curva do padrão de normalidade psicológica e incapaz de articular uma frase que não derive do mais estulto que há no senso comum e de fácil apelo popular.

O caos e as trapalhadas desse governo somente incomodam essa elite se põem em risco a reforma da previdência, vale dizer, o capitalismo parasitário. Aí então editoriais e colunistas irados passam uma carraspana no tresloucado presidente e deixam nas entrelinhas a ameaça de apeá-lo do poder. E eles o farão se realmente o trapalhão se revelar incapaz de conduzir a reforma que eles querem.

Bolsonaro é uma sombra. O real é esse projeto de acumulação e consequente pauperização da massa e seus condutores são de verdade o poder hoje. O real é esse projeto de barbárie social.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

Publicado em revistacult.uol.com.br

Escolha o título …

“Ele parecia um jovem universitário recebendo um diploma”.

Se faltava alguma imagem que pudesse traduzir fielmente o protagonismo submisso que vem seduzindo celebridades do Judiciário no apego à popularidade, as palavras do presidente eleito sobre o momento em que Sérgio Moro recebeu o convite ao Ministério da Justiça cumpriram eficazmente esse papel.

Contra uma plêiade de prognósticos de quem supôs que a lisonja já bastasse por si só como um cartaz emoldurado na sala de troféus, o juiz acabou por aceitar o encargo.

Pouco importou se sobraram acusações de utilização de caixa 2 na campanha do eleito, especificamente para o disparo de fake news em grupos de Whatsapp –balas de prata de uma eleição digital. Meses antes, o próprio Moro havia retrucado de forma severa àqueles que empunhavam a tese para reduzir a gravidade da corrupção: “Caixa 2 no contexto de uma eleição é trapaça”.

Pouco importou, também, se no último e mais contundente discurso de campanha, o candidato propôs-se a banir os opositores e deixar um preso apodrecer na cadeia –injúrias indecorosas à Constituição que o juiz, como todos os seus demais colegas, prometeu cumprir ao ser empossado.

Pouco importou, por fim, a generalizada ideia de parcialidade que, retrospectivamente, passou a planar sobre o processo do ex-presidente. Afinal, Moro não foi apenas o juiz que condenou Lula, mas o que divulgou conversa dele que, por disposição expressa de lei, deveria ter sido mantida em sigilo; como ainda aquele que autorizou, durante o processo eleitoral, a publicidade de delações aptas a influenciá-lo. Foi ainda o que interrompeu suas próprias férias para evitar que o ex-presidente gozasse da liberdade que lhe fora concedida por instância superior.

Para muitos analistas, inclusive da imprensa internacional, tornou-se cada vez mais difícil negar as aparências. “Bolsonaro promete cargo para o juiz que prendeu seu rival”, foi a manchete do jornal londrino The Times, que viralizou nas redes sociais.

Não há mais vergonhas ou constrangimentos.

Sem meias-palavras, aliás, o candidato fez da nostalgia da tortura uma questão de ordem; a ditadura militar, nas suas mais sórdidas facetas, a morte e o desaparecimento de centenas de corpos, um exemplo a ser não apenas seguido, mas fortemente ampliado.

Quanto a Moro, não se trata de vaidade ou merecimento. Dos atributos privados, cada um cuida dos seus. O que está em jogo é mais do que isso. É um projeto de autoritarismo, ainda que não necessariamente na versão mais crua ou sanguinária, como talvez encantasse o presidente eleito.

A democracia da forma que conhecemos não existirá mais, mas isso não implica que o poder precise se valer, como antes, de fuzis e baionetas para dar suporte às suas censuras, sustentar os seus arbítrios. Certamente não teremos, como no período nazista, policiais que passavam por cima de juízes; mas quem há de negar que já não vimos produzindo a cultura de juízes que incorporam funções policiais?

A ditadura, como sofremos por duas décadas, pode até não se repetir; a prepotência das maiorias também é uma forma hábil de se construir um regime autoritário. Até por incluir aqueles que mal tenham consciência dos limites que acabarão por ultrapassar.

Alguns podem entrar no autoritarismo pela via da desesperança ou da frustração; outros de boa-fé aderem em nome de um inimigo supostamente mais poderoso, o maior de todos, o monstro da corrupção – sem perceber que o autoritarismo é, em si mesmo, a corrupção de todo o sistema. E que não há autoritarismo sem as mais diversas corrupções embutidas.

Não são poucos, é verdade, os que vêm aplaudindo entusiasticamente as normas rigorosas que, já de um tempo, ajudam a pavimentar o caminho para a implantação deste projeto, que hoje se acelera de forma brutal. De ideologias ou siglas diversas. Que fique claro, a denúncia do autoritarismo não é uma manifestação político-partidária – e não deve ser assim compreendida.

Alguns a ele aderem ainda, por mais paradoxal que possa parecer, porque se arrogam liberais.

Mas novos liberais que nada têm a ver com os antigos, que, mesmo pensando na melhor acomodação do capital, acabaram por construir espaços democráticos, justamente pela contração de um poder absoluto e ilimitado. Os neoliberais não querem destruir o poder que sufoca, mas sim desarmar o Estado que ampara.

Na nova governamentalidade, ensinam Christian Laval e Pierre Dardot, a forma de empresa de que se revestem os Estados, e até mesmo as pessoas, implode qualquer possibilidade de cidadania. Arguto observador do nascimento do neoliberalismo na Inglaterra, Stuart Hall já descrevia, no final dos anos 1970, a pulsão do governo Thatcher como a combinação de um mercado livre e de um Estado forte. Nada menos do que se viu, de forma grosseiramente caricatural, no Chile de Pinochet.

A atualidade vem nos mostrando isso: para que os mercados fiquem cada vez mais livres; os Estados vão ficando cada vez mais fortes. Especialmente no direito penal, como é prova a guinada punitiva norte-americana.

Aliás, foi de lá mesmo, dos Estados Unidos, que vieram as ideias estampadas no projeto politicamente bancado pelos homens da Lava Jato (e financeiramente suportado pelo Ministério Público Federal), equivocadamente intitulado Dez Medidas Contra a Corrupção (pois nem eram dez medidas, nem eram propriamente contra a corrupção). Tratava-se, na verdade, de uma espécie de Código de Processo da Acusação. Empoderando irrestritamente o Ministério Público, tal qual uma tropa de elite, e colocando a lei como um obstáculo a ser ultrapassado na luta contra a corrupção. A defesa, uma instituição em extinção, cuja principal tarefa, na onda de tornar eficiente o processo, é a de secundar a acusação com confissões e delações premiadas.

O resultado do sistema prisional norte-americano e seus mais de dois milhões de presos, jovens negros sobre-representados dentro das celas, mostra bem o resultado deste tipo de projeto draconiano que agora, enfim, volta repleto de chances.

Mas o maior problema à vista, e aquele que se vincula diretamente com o convite ao juiz, é a fissura na visão contramajoritária do papel do Judiciário.

É o sentido contramajoritário que permite ao Judiciário assegurar os direitos fundamentais, mesmo à revelia da população, por exemplo, estimulada por um processo penal de espetáculo. É ele que permite absolver réus detestáveis, porque as provas juntadas aos autos não foram capazes de demonstrar suas culpas; que autoriza a concessão de liberdade a quem quer que esteja respondendo a um processo criminal, antes de ser considerado culpado, desde que não exista nenhum fundamento de perigo ao processo ou ao cumprimento da pena.

O sentido contramajoritário não mostra desprezo pela sociedade; ao revés, é uma cápsula de proteção ao indivíduo. Só no fascismo o sentimento da sociedade não tem freios e, a pretexto de sua tutela, os indivíduos são simplesmente destroçados.

Os processos que se legitimam pelo apoio popular tornam seus juízes celebridades instantâneas –mas produzirão sempre um protagonismo submisso, pois sua legitimidade depende do apelo do público e assim está vinculada a uma condenação, que o garante. O juiz condenado a condenar não julga –é réu de si mesmo.

Em uma democracia constitucional como a nossa, juízes são garantidores de direitos. A Constituição lhes outorga esse poder; as maiorias os tornam reféns da política. O protagonismo não é apenas submisso, é também suicida.

A partir de janeiro, os dilemas do STF serão drásticos: a ameaça desengonçada e nada sutil de um cabo e soldado de um lado; a pressão popular de um juiz das maiorias de outro. E ao que tudo indica, só o Supremo estará em condições de impedir as barbaridades com que se pretende desfigurar o sistema legal. Da redução inconstitucional da maioridade penal à macarthista proposta da Escola Sem Partido, sem esquecer de uma inusitada e ampla licença para matar aos policiais.

Pelo retrospecto da Corte nos últimos anos, da forma como vem flexibilizando as garantias constitucionais no âmbito penal, notadamente como implodiu a presunção de inocência, não há como ficar tranquilo. A proibição unânime de censura política no ambiente universitário na semana passada, todavia, pode ter dado a mostra de que os ministros enfim estão atentos quanto aos riscos que nos cercam.

O timing da decisão foi, aliás, muito importante – especialmente em uma Corte que já estava se acostumando a postergar as questões mais sensíveis.

Verdade seja dita, não é só a justiça que tarda.

Muitas pessoas ainda não atinaram que a supressão indevida da liberdade de um réu é sempre um esvaziamento da liberdade de todos. E até aplaudiram ao ver seus inimigos no cadafalso. Outros tantos demoraram a entender que quando os fins justificam meios, todos serão ilegítimos.

Aqueles que estimularam o esvaziamento da política, que criaram ondas seletivas de indignação e que, enfim, acabaram por acrescer os sentimentos de aversão que contribuíram para esse enredo, somente agora estão despertando. É o caso da imprensa, que começa a experimentar a amarga intimidação da censura se formando.

Para muitos, é preciso sentir na pele a força do poder até percebê-lo como uma ameaça. Infelizmente, há corpos frágeis demais que não podem pagar para ver. Cabe a todos os democratas cuidarem de protegê-los.”

MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

Dois artigos sobre a correta decisão do desembargador Favreto

#1:

O ACERTO DE FAVRETO, por Fábio Sa e Silva

Há dois dias estou lendo textos e postagens tomando como um dado que “Favreto errou”

Fiquei me perguntando: errou mesmo?

HC é a classe processual na qual o juiz tem o maior grau de liberdade. Observando constrangimento ilegal, pode conceder a ordem até mesmo de ofício

Favreto identificou constrangimento ilegal na inércia da juíza da execução, que até hoje não apreciou pedido de Lula para poder dar entrevistas e participar de debates, uma vez que é pré-candidato à presidência da República

Portanto:

1) Nada há de “teratológico” em sua decisão (porque não trata de prisão após condenação de segunda instância);

2) Tampouco essa decisão contradiz súmula do CNJ que impede a reapreciação, em plantão, de questão já decidida (porque o constrangimento ilegal decorre exatamente de uma não-decisão);

3) É sem nenhuma procedência a pretensão do MPF de que a única instância competente para conhecer HCs em favor de Lula é o STJ. Em se tratando de um constrangimento ilegal provocado por omissão da juíza de execução, inegável que a competência é do TRF4; e

4) A questão sobre a pertinência de se conceder o HC em plantão pode ser levantada tanto contra como a favor de Favreto. Se não havia fato rigorosamente novo – há tempos se sabe que Lula é candidato -, Favreto não poderia ou deveria deixar a decisão do HC para o juiz natural, que assumiria o caso na segunda-feira? Digamos que sim. Mas ao se defrontar com uma ilegalidade (a não-decisão da juíza, não obstante a “notória” pré-candidatura), Favreto não poderia ou deveria agir? A resposta também deveria ser “sim”.

Isso me leva ao mérito do HC, o qual envolve questão da mais elevada relevância constitucional: em que medida pode o Estado restringir direitos políticos de condenados criminalmente?

O texto da CF/1988 dá a resposta para isso, determinando o seguinte:

“Art. 15 – É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
(…)
“III – condenação criminal TRANSITADA EM JULGADO, enquanto durarem seus efeitos”

No caso de Lula, apesar de condenado, ainda assim ele mantém seus direitos políticos (de votar e ser votado). Isso porque a sentença (que, entre outras coisas, teria o efeito de suspender tais direitos), AINDA NÃO TRANSITOU EM JULGADO. Portanto, se Lula é “notoriamente” um pré-candidato à presidência da República, o Estado deveria respeitar essa condição e se abster de qualquer ato que a prejudicasse. ATENÇÃO, isso não é comunismo; é liberalismo do século XVIII

Mas o sujeito pode ser candidato e preso?

Pois é. Como sabemos, Lula só está preso porque:

1) Em 2016, no contexto da lavajato, o STF modificou casuisticamente sua jurisprudência em relação à possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado; e

2) Fachin e Carmen Lúcia manobraram para manter tal “status quo” no julgamento do HC de Lula, quando a composição do Tribunal, alterada em relação a 2016, já não mais confirmaria aquele giro interpretativo

Se o STF tivesse honrado o que está literalmente escrito na CF/1988 – ou seja, o fato de que não se pode, como regra, começar a cumprir pena privativa de liberdade até o trânsito em julgado -, não teríamos esse problema. Lula poderia fazer sua campanha, mesmo condenado, e caberia ao eleitorado decidir se ele merece ou não se tornar novamente o presidente. Aliás, naquela votação, Juízes como Marco Aurelio e Celso de Mello insistiram quanto ao fato de que o instituto do “trânsito em julgado” tem várias implicações no direito, as quais não estavam sendo adequadamente levadas em conta pelo plenário

Mas e a ficha-limpa, não constitui um impedimento a uma candidatura de Lula?

Em princípio sim, mas há mais de 100 candidatos condenados em 2a instância que obtiveram no TSE autorização para se manterem candidatos. Teríamos que ver o que o TSE diria em relação à candidatura de Lula para só então afastá-lo do pleito. Até lá, ele poderia e pode ser candidato (isso também é liberalismo do século XVIII)

Por tudo isso, quero abrir divergência das leituras que estão correndo, e dizer que, no quadro em que operou, Favreto proferiu uma decisão bastante razoável. Talvez não precisasse mandar “soltar”; poderia ter concedido um alvará “autorizando a participação em entrevistas e debates sob o compromisso de se apresentar ao juízo da execução 24h depois”. Na prática, o resultado disso seria muito parecido com o de uma soltura, pois não faltariam convites para entrevistas e debates com Lula daqui até as eleições

Mas por que até agora ninguém ousou falar isso? Por que parece haver um consenso de que Favreto “errou”?

Há duas prováveis razões. A primeira é a tentativa de diminuir o peso dos ERROS, aí sem aspas e em caixa alta, que vieram depois, por parte de Moro, Gebran, e do próprio Thompson Flores. A segunda é a intenção de criminalizar o próprio Favreto, contra quem já pesam oito representações no CNJ. “Se errou, tem que pagar”

Uma dessas representações, a propósito, registra que “a quebra da unidade do direito, sem a adequada fundamentação, redunda em ativismo judicial pernicioso e arbitrário”

O texto caberia mais ao STF, que, ao ignorar a CF/1988 para prender Lula “quebrou a unidade do direito”, que a Favreto, que, premido por muitos limites, inclusive os da condição de ex-filiado ao PT, ousou juntar os cacos.

#2:

 

Dos embargos de declaração: da Defesa à inovação de Moro, por Leonardo Isaac Yarochewsky

Leonardo Isaac Yarochewsky
Advogado Criminalista – Quinta-feira, 20 de julho de 2017
Dos embargos de declaração: da Defesa à inovação de Moro

“Se a história das penas é uma história dos horrores, a história dos julgamentos é uma história de erros”. –Luigi Ferrajoli

A garantia da jurisdição assevera Aury Lopes Júnior, e, “principalmente, da motivação das decisões judiciais não se contenta com ‘qualquer’ decisão ou com a presença de ‘qualquer’ juiz”.[1] De tal forma que os atos decisórios devem revestir-se de clareza, coerência e lógica.

Dispõe o artigo 382 do Código de Processo Penal:

Art.382. Qualquer das partes poderá, no prazo de 2 (dois) dias, pedir ao juiz que declare a sentença, sempre que nela houver obscuridade,ambigüidade, contradição ou omissão.

Assim sendo, a Defesa do ex-presidente Lula considerando que a sentença do juiz Federal da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR que condenou Luiz Inácio Lula da Silva a pena de 09 (nove) anos e 06 (seis) meses de reclusão e multa, contém contradições, omissões e obscuridades, interpôs dentro do prazo legal embargos de declaração.

Primeiramente, a Defesa salientou que “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (“ex-presidente Lula”) não reconhece a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR, tampouco a necessária imparcialidade deste juízo para a condução e julgamento dos feitos a ele relacionados”.

A Defesa, em apertada síntese, insurgiu contra as seguintes omissões, contradições e obscuridades em relação à decisão condenatória:

Omissão no tocante às afirmações feitas pelo juízo em relação ao ex-presidente Lula e sua Defesa;
Omissão e contradição no tocante à negativa de juntada da íntegra dos procedimentos licitatórios, contratos e anexos discutidos na ação (item 192) e o reconhecimento de vícios e ilegalidades em relação à contratação envolvendo a Petrobras e os Consórcios CONPAR e CONEST/RNEST com base em documentos selecionados pelo Ministério Público Federal na apresentação da denúncia, com manifesto cerceamento de defesa e violação à garantia da paridade de armas;
Omissão, contradição e obscuridade quanto à desqualificação das declarações prestadas por testemunhas que corroboram a tese defensiva, estas de ilibada reputação e que ocuparam – ou ainda ocupam – relevantes cargos na Administração Pública enquanto, convenientemente, se deu desproporcional (e indevido) valor probatório às declarações do corréu Léo Pinheiro, a delatores e candidatos a delatores e, ainda, a reportagens jornalísticas;
Contradição ao desqualificar os diversos instrumentos e as instituições de auditoria, de controle interno e externo, que não detectaram atos de corrupção ligados ao ex-presidente Lula, e reconhecer, ato contínuo, existência de corrupção como “regra do jogo” e relacioná-la ao ex-presidente Lula;
Omissão em relação aos fatos efetivamente relacionados à transferência do empreendimento Mar Cantábrico à OAS Empreendimentos Ltda. pela Bancoop e seus desdobramentos;
Omissão quanto ao exercício das faculdades inerentes à propriedade da unidade 164-A do Condomínio Solaris do Município do Guarujá/SP, pela OAS e pela desconsideração dos fartos elementos de prova que mostram que o ex-presidente Lula jamais teve a propriedade ou a posse do imóvel;
Omissão e contradição quanto à origem dos valores utilizados no custeio do empreendimento e das melhorias na unidade 164-A e, ainda, da importância conferida às palavras isoladas de um corréu após a negativa da prova pericial requerida pela Defesa;
Contradição ao defender sua imparcialidade desrespeitando diversas vezes o ex-presidente Lula e sua Defesa;
Omissão quanto aos evidentes equívocos apresentados na reportagem do “Globo”, apontados nas alegações finais do ex-presidente Lula;
Omissões quanto à pena aplicada.
Embora haja certa divergência doutrinária sobre a natureza jurídica dos embargos de declaração, entre os doutrinadores pátrios prevalece o entendimento de que se trata de recurso. A rigor, observa Aury Lopes Júnior, “os embargos de declaração servem apenas para que o órgão julgador declare, esclareça a decisão, não para que ele volte a decidir, retrate-se ou modifique o decidido (…)”.

Sem adentrar no mérito dos embargos de declaração que tem por escopo, justamente, sanar as ambiguidades, obscuridades, contradições ou omissões da sentença.

Verifica-se que o juiz Federal da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR ao invés de se debruçar sobre as omissões, contradições e obscuridades trazidas pela Defesa do ex-presidente Lula, além de novamente atacar a Defesa, serviu-se da oportunidade para em mais uma “pirotecnia intelectual” – expressão utilizada pelo jornalista Reinaldo Azevedo para criticar a sentença condenatória do juiz Moro – criar fatos com intuito meramente midiático.

Em mais uma decisão arbitrária e despropositada, ao comparar a situação do ex-presidente Lula ao ex-deputado Federal Eduardo Cunha – atualmente preso – o juiz de piso foi muito além da imaginação. Quando afirmou que “ele [Eduardo Cunha] também afirmava, como álibi, que não era o titular das contas no exterior que haviam recebido depósitos de vantagem indevida”, Moro conseguiu o que ambicionava: levar à ilação as primeiras páginas dos principais jornais do país.

Ressalta-se, que não há em relação ao ex-presidente Lula qualquer discussão sobre a titularidade de conta no exterior. A vida de Luiz Inácio Lula da Silva e de seus familiares foi devassada e nada, absolutamente nada, foi encontrado que ligue o ex-presidente com contas em países estrangeiros ou a propriedade do famigerado triplex do Guarujá.

Na decisão em que rejeita os embargos, o juiz Federal Sérgio Moro declara que: “Este juízo jamais afirmou na sentença ou em lugar algum que os valores obtidos pela construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-presidente (…)” Disse, ainda, o prolator da sentença que “não havia essa correlação”.

Ora, com essa decisão, o que já havia sido demonstrado e alegado pela laboriosa defesa ficou ainda mais evidenciado: o juiz Federal da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR não é competente para julgamento do referido processo.

Não se pode olvidar que todos, absolutamente todos os fatos imputados ao ex-presidente Lula teriam ocorridos no Estado de São Paulo. Qual razão, então, indaga a Defesa, em suas alegação finais, “está a explicar o motivo de todos esses fatos serem investigados e julgados em Curitiba, no Estado do Paraná? Megalomania jurisdicional? ‘Pantagruelismo’ judicante?”

Certo é que, sendo “a Petrobras sociedade de economia mista, conforme artigo 61 da lei instituidora vigente – Lei nº 9478/97 –, e possuindo personalidade jurídica de direito privado, não compete à Justiça Federal julgar os supostos crimes praticados em seu detrimento”.

É lamentável que julgamentos odiosos, por juízes incompetentes e parciais, com inversão do ônus da prova, com violação do contraditório e da ampla defesa e com desprezo a presunção de inocência, ainda, insistem em prevalecer em detrimento do Estado Democrático de Direito.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Doutor em Ciências Penais (UFMG).

[1] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

Insucesso na busca de prova leva Moro ao descontrole das argumentações, por Janio de Freitas

Insucesso na busca de prova leva Moro ao descontrole das argumentações
Por Janio de Freitas

Publicado em Folha de São Paulo – 20/07/2017

Novidade destes tempos indefiníveis, sentenças judiciais substituem a objetividade sóbria, de pretensões clássicas como se elas próprias vestissem a toga, e caem no debate rasgado. Lançamento de verão do juiz Sergio Moro, nas suas decisões iniciais em nome da Lava Jato, o “new look” expande-se nas centenas de folhas invernosas da condenação e, agora, de respostas a Lula e sua defesa. Tem de tudo, desde os milhares de palavras sobre o próprio autor, a opiniões pessoais sobre a situação nacional, e até sobre a sentença e sua alegada razão de ser. Dizem mais do juiz que do acusado. O que não é de todo mal, porque contribui para as impressões e as convicções sobre origens, percurso e propósitos deste e dos tantos episódios correlatos.

A resposta do juiz ao primeiro recurso contra a sentença é mais do que continuidade da peça contestada. É um novo avanço: lança a inclusão do insulto. Contrariado com as críticas à condenação carente de provas, Moro argumenta que não pode prender-se à formalidade da ação julgada. Não é, de fato, um argumento desprezível. Se o fizesse, diz ele, caberia absolver Eduardo Cunha, “pois ele também afirmava que não era titular das contas no exterior” que guardavam “vantagem indevida”.

A igualdade das condutas de Cunha e Lula não existe. Moro apela ao que não procede. E permite a dedução de que o faça de modo consciente: tanto diz que Eduardo Cunha negava a posse das contas, como em seguida relembra que ele se dizia “usufrutuário em vida” do dinheiro. Se podia desfrutá-lo (“em vida”, não quando morto), estava dizendo ser dinheiro seu ou também seu. Simples questão de pudor, talvez, comum nos recatados em questões de vis milhões. Moro não indica, porém, uma só ocasião em que Lula tenha admitido, mesmo por tabela, o que o juiz lhe atribui e condena.

Diferença a mais, os procuradores e o juiz receberam comprovação documental de contas de Eduardo Cunha. O insucesso na busca de documento ou outra prova que contrarie Lula, apesar dos esforços legítimos ou não para obtê-la, é o que leva os procuradores e Moro ao descontrole das argumentações. E a priorizar o desejado contra a confiabilidade. Vêm as críticas, e eles redobram as ansiedades.

É o próprio Moro a escrever: “Em casos de lavagem, o que importa é a realidade dos fatos, segundo as provas e não a mera aparência”. Pois é. Estamos todos de acordo com tal conceituação. Nós outros, cá de fora, em grande medida vamos ainda mais longe, aplicando a mesma regra não só a lavagens, sejam do que forem, mas a uma infinidade de coisas. E muitos pudemos concluir que, se o importante para Moro é a realidade “segundo as provas e não a mera aparência”, então, lá no fundo, está absolvendo Lula. Porque o apartamento pode até ser de Lula, mas ainda não há provas. A Lava Jato e o juiz só dispõem da “mera aparência”, o que Moro diz não prestar.

Já está muito repisado que delações servem para dar pistas, não como prova. Apesar disso, Moro dá valor especial a escapatório de Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, de que o apartamento saiu de uma conta-corrente da empreiteira com o PT. Convém lembrar, a propósito, que Pinheiro negou, mais de ano, a posse do apartamento por Lula. Em meado do ano passado, Pinheiro e Marcelo Odebrecht foram postos sob a ameaça, feita publicamente pela Lava Jato, de ficarem fora das delações premiadas, que em breve se encerrariam. Ambos sabiam o que era desejado. E começaram as negociações. Odebrecht apressou-se. Pinheiro resistiu até há pouco. A ameaça de passar a velhice na cadeia o vendeu.

Infundada, a igualdade de Eduardo Cunha e Lula passou de argumento a insulto. A rigor, assim era desde o início. E juiz que insulta uma das partes infringe a imparcialidade. Mostra-se parte também.

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Análise da sentença de condenação de Lula: livro está sendo organizado (das redes: 18/07/2017)

A sentença dada pelo juiz Sérgio Moro ao ex-Presidente Lula está sendo analisada por mais de 120 professores de direito, advogados, criminalistas e processualistas, brasileiros e estrangeiros, desde que foi publicada na semana passada.

Até o final desta semana, esses estudiosos vão entregar artigos cujo objetivo é analisar a sentença e suas circunstâncias.

Todos os trabalhos farão parte de um livro que está sendo organizado por Juarez Tavares, Carol Proner, João Ricardo Dornelles, Gisele Ribocon e por mim.

Trabalhos espetaculares, pois tive a oportunidade de ler alguns que já foram entregues.

Nenhum centímetro dessa sentença absurda ficará de fora da análise. Aguardem a primeira quinzena de agosto.

Por Gisele Cittadino

Entre fatos e convicções: análise da sentença do juiz Sérgio Moro que condena o ex-presidente Lula, por Alexandre Costa

 

Compartilho análise da sentença do juiz Moro que condena o ex-presidente Lula, escrita por Alexandre Costa, doutor em Direito e professor adjunto da Faculdade de Direito da UNB. Publicado no Facebook, este artigo recebeu comentários de boa qualidade, contra e a favor.

O autor faz uma análise quase que exclusivamente técnica, fixando-se na sentença do juiz Moro, deixando de analisar todas as evidências de seletividade e manipulação que ficaram claras desde o início do processo. Ele parece não acreditar na má-fé do  juiz Moro.

Nós, que acompanhamos todas as notícias sobre o assunto nos últimos 3 anos,  tendo em vista os fatos, as ações e omissões deste que deveria agir como magistrado e atuou como linha auxiliar da acusação, não conseguimos acreditar em boa-fé, nem dos membros da força-tarefa, nem do juiz Moro, mesmo com muita boa vontade e tentativa de ter uma visão equilibrada sobre esse assunto.

De qualquer forma, o autor da análise tenta fazer entregar uma análise equilibrada e isenta de pré-julgamentos. Vale a pena ler com atenção

Paulo Martins

 

Entre fatos e convicções: análise da sentença do juiz Sérgio Moro que condena o ex-presidente Lula

Por Alexandre Araújo Costa (*)

Li vários comentários que criticavam a decisão de Sérgio Moro que condenou o ex-presidente Lula por causa de seu resultado e de suas consequências. Porém, li poucas análises que avaliaram a consistência dos argumentos, inclusive porque as mais de 200 páginas do documento dificultam a elaboração de análises mais completas, que exigem um bom tempo de leitura e reflexão.

Considerando que minhas atividades de docência fatalmente me exigirão o desenvolvimento de uma opinião mais elaborada sobre esse tema, decidi ler a sentença e escrever um pouco sobre ela.

Assim, em vez de começar dizendo que eu não li a sentença, mas discordo dela mesmo assim, começarei de outro modo: eu li a sentença e a condenação me pareceu absurda.

Cabe ressaltar que achei bem feita a descrição dos fatos, a explanação dos argumentos e a construção das narrativas. Existe uma clareza na exposição que tem muito mérito, especialmente porque se torna evidente que Sérgio Moro quis tornar a sentença compreensível para cidadãos comuns que se dessem ao trabalho de ler a decisão.

Também cabe ressaltar que a decisão esclarece muito bem que os argumentos utilizados pela defesa foram muito frágeis, provavelmente porque a narrativa verdadeira provavelmente seria muito indigesta para as pretensões políticas do ex-presidente.

Apesar disso, creio que as conclusões que Sérgio Moro infere não estão devidamente baseadas nos fatos que ele narra e nas provas que ele explicita.

As provas indicam que Lula obteve benefícios da OAS que ele não quer admitir isso? Sim.

A OAS fez uma reforma em benefício dele? Fez.

Esse tipo de recebimento causa danos à sua imagem? Causa.

Ele mentiu negando tudo isso? Sim.

É lícito que réus mintam em seu próprio benefício? Sim, mas essa mentira pode ter impactos políticos relevantes.

Mas a pergunta central é: há comprovação de recebimento de benefício em função do cargo de Presidente da República? E penso que aqui a resposta é negativa.

Há comprovação de fatos que podem ter sido corrupção. Verdade. Há comprovação de que Lula recebeu da OAS uma série de benefícios em 2014.

Existem indícios que esses benefícios seriam pagos com verba decorrente da corrupção da Petrobrás? Nesse sentido, existe um indício: a afirmação de Léo Pinheiro de que ele acertou com Vaccari Neto em maio de 2014 que a OAS doaria o imóvel para Lula e debitaria isso da conta de corrupção (item 529).

Se as palavras de Léo Pinheiro forem verdadeiras, não haveria indícios de que Lula recebeu benefícios da OAS em função do seu cargo, mas que a OAS serviu como intermediária para pagamentos do PT a Lula, redistribuindo para ele parte do que o PT recebeu de forma ilícita da OAS. Não há, porém, provas dessa operação, para além das palavras de Léo Pinheiro, que são insuficientes para justificar uma condenação por corrupção.

Além disso, o que Léo Pinheiro afirma expressamente é que, em maio de 2014, ele acertou com Vaccari que certos custos que a OAS teve deveriam ser cobertos com o dinheiro que seria pago pela OAS para o PT em função de contratos da Petrobras. Isso quer dizer que primeiro a OAS pagou as obras e somente depois ajustou com Vaccari a compensação, o que quer dizer que talvez não fosse esse o ajuste final do acordo e o custo das reformas ficasse por conta da OAS, não da conta de corrupção do PT.

Tudo isso pode indicar que Lula foi beneficiado por dinheiro originado de corrupção, mas isso não indica que ele praticou atos de corrupção.

Não há mais indício de corrupção nesses fatos do que há no pagamento pela OAS do depósito do acervo presidencial. E, nesse caso, Moro absolveu Lula, por considerar que não havia indícios de que o pagamento foi feito com dinheiro ligado à corrupção.

Percebe-se, portanto, que o critério de condenação utilizado por Moro não é aquele definido pela lei (o recebimento de benefício em função do cargo), mas um critério bastante diverso (o recebimento de benefícios oriundos de dinheiro ligado à corrupção).

Por mais que seja imoral o recebimento desse tipo de benefício, ele não configura crime de corrupção, como reconheceu o próprio juiz Sérgio Moro ao analisar o pagamento da OAS pelo depósito do acervo.

E em 2009, quando Lula era presidente, existe algum indício de recebimento ilícito de benefícios? A única coisa que existe é uma afirmação de Léo Pinheiro no sentido de que João Vaccari Neto e Paulo Okamoto lhe disseram que em 2009 “O apartamento triplex, essa unidade é uma unidade específica, você não faça nenhuma comercialização sobre ela, pertence à família do presidente, a unidade tipo você pode vender porque eles não vão ficar com essa unidade, a unidade seria o triplex” (item 525). Esse “pertence”, no meio da frase, é a palavra central do processo, pois foi com base nisso que Sérgio Moro concluiu que a propriedade “de fato” do apartamento era de Lula. Todavia, esse pertence parece ter sido usado de forma demasiadamente ambígua, pois a narrativa toda não indica claramente que deveria haver uma transferência gratuita do apartamento ao ex-presidente. Tanto que, na continuidade do depoimento, Léo Pinheiro afirmou que conversou com Vaccari e Okamoto depois da reportagem da Globo sobre o triplex e que lhe foi dito: “ […]a orientação que foi me passada naquela época foi de que ‘Toque o assunto do mesmo jeito que você vinha conduzindo, o apartamento não pode ser comercializado, o apartamento continua em nome da OAS e depois a gente vê como é que nós vamos fazer para fazer a transferência ou o que for’, e assim foi feito. Isso, voltamos a tratar do assunto em 2013, se não me falha a memória.” (item 525) Essa conversa torna evidente que não havia clareza alguma no que deveria ser feito com o imóvel, exceto que ele não deveria ser comercializado. Todavia, não havia clareza sobre pagamentos, sobre compensações, sobre propriedade, sobre quem pagaria. O que Léo Pinheiro diz é que lhe foi pedido para não vender o apartamento e ele o fez, mas não existe em nenhum dos diálogos contidos na sentença uma indicação clara de que ele deveria ter transferido o apartamento gratuitamente para Lula.

A OAS beneficiou Lula ao manter esse apartamento fora do comércio? Sim.

Fez isso intencionalmente? Fez, e há indícios fortes nesse sentido, já que o comportamento com relação a esse imóvel foi muito particular durante todo o período. Todavia, não há nesses fatos nenhum indício claro de que a OAS estaria repassando a Lula em 2009 qualquer benefício em função do cargo que ele exercia, exceto a reserva do apartamento, que é um benefício deveras pequeno para justificar uma condenação penal por corrupção.

E os benefícios posteriores, especialmente os de 2014, não são em momento algum ligados diretamente ao exercício do cargo de presidente. Inobstante, Moro evidentemente faz a leitura de que os benefícios da OAS a Lula no caso do triplex ocorreram em função de seu cargo de presidente. Todavia, o próprio Moro foi levado a considerar que os benefícios da OAS ao presidente com relação à manutenção de seu acervo (que têm vulto maior do que as reformas do triplex) não podem ser consideradas corrupção porque a OAS tinha interesse em manter a proximidade com Lula por ser ele um ex-presidente. Benefício pago a ex-presidente, em função de sua influência política, pode ser de uma imoralidade atroz. Pode ser uma situação política desgastante para os envolvidos. Mas não é crime de corrupção. E foi somente esse tipo de benefício que está devidamente comprovado nos autos.

Os benefícios da OAS para Lula podem ser o pagamento de ajustes feitos durante o exercício do cargo? Podem. Mas, de fato, os benefícios efetivamente parecem muito pequenos para justificar essa interpretação, pois eles são muito compatíveis com presentes da OAS para conquistar a boa vontade do ex-presidente.

Ademais, se a situação houvesse se consolidado, com uma utilização do apartamento de forma dissimulada, talvez se consumasse um crime de lavagem de dinheiro, mas não de corrupção. Ocorre, todavia, que Lula está correto ao afirmar que a transmissão do bem (de fato ou de direito), nunca se operou. Não parece verdade que ele era apenas um potencial comprador, mas parece razoável que ele tenha desistido do negócio quando percebeu o tamanho do problema que poderia vir a ter com ele. Assim, a dissimulação da propriedade não chegaria a se consumar. De toda forma, em vez de caracterizar o ato de Lula como uma recepção de benefícios pagos com dinheiro de corrupção, Sérgio Moro procura estabelecer uma narrativa muito diferente: a de que Lula recebeu benefícios em função de ter nomeado certos diretores para a Petrobras. A tentativa de estabelecer essa narrativa gerou vários problemas para a argumentação da sentença. Seria razoável indicar a existência de corrupção (por receber valores indevidos, independentemente da fonte) se a OAS tivesse feito as reformas em 2009 e Lula tivesse ocupado o apartamento. Mas isso não ocorreu e Moro faz toda uma ginástica para afirmar que se tratou de “um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente” (item 878). Ele precisava retroagir o fato para outubro de 2009 para caracterizar que Lula recebeu o benefício em razão do cargo ocupado. Como a retroação para 2009 ficou frágil, a argumentação foi complementada no item 881: “881. Não importa que o acerto de corrupção tenha se ultimado somente em 2014, quando Luiz Inácio Lula da Silva já não exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens lhe foram pagas em decorrência de atos do período em que era Presidente da República.” Aqui novamente há um grande salto entre os fatos e a interpretação. Moro considera claro que se trata de recebimento decorrente da corrupção na Petrobras, mas não há nada nesse sentido. Ele retoma a ideia de que o dinheiro seria debitado da conta da corrupção, mas o único indício nesse sentido é uma afirmação tangencial de Léo Pinheiro. De todas as explicações possíveis, ele escolhe aquela que convém a suas convicções. São convicções compatíveis com os fatos, há de se reconhecer. Mas há muitas interpretações possíveis do fato que permitem outras narrativas, mais sólidas inclusive do que a de Moro. É muito razoável descrever todos os fatos como favores prestados pela OAS a uma pessoa que, a despeito de ter saído do cargo, era provavelmente o político mais influente da República.

Essa escolha interpretativa fica ainda mais frágil quando se verifica que Lula foi absolvido no caso do depósito do acervo presidencial porque Leo Pinheiro “negou, em Juízo, que os pagamentos pelo Grupo OAS da armazenagem do acervo presidencial estivessem envolvidos em algum acerto de corrupção” (item 934). E continua afirmando que “as declarações do acusado, de que não vislumbrou ilicitude ou que não houve débito da conta geral de propinas, afastam o crime de corrupção” (item 935). Torna-se evidente, portanto, que Lula foi condenado no caso do triplex porque Léo Pinheiro afirmou ter ajustado com Vaccari Neto que benefícios da OAS seriam pagos a partir da “conta geral de propinas” (item 529) e que foi absolvido na mesma sentença porque o mesmo Léo Pinheiro disse que a intenção da OAS nesse caso não tinha a ver com o cargo (item 935).

Parece-me absurdo esse modo de lidar com as provas e construir narrativas descoladas dos fatos. Não creio o juiz atuou com má-fé, mas parece-me clara a operação de um viés de confirmação a partir do qual ele enxergou “provas” em todos os indícios que eram simplesmente “compatíveis” com sua narrativa pessoal sobre o evento.

Ao desconsiderar as narrativas alternativas, que ele levou em conta na avaliação do caso do depósito, as conclusões da sentença se tornaram arbitrárias. Assim, resta claro que a condenação por corrupção se deveu menos aos fatos do que às convicções de Moro. E a condenação por lavagem de dinheiro é ainda mais frágil. Moro afirma que a “atribuição a ele de um imóvel, sem o pagamento do preço correspondente e com fraudes documentais nos documentos de aquisição, configuram condutas de ocultação e dissimulação aptas a caracterizar crimes de lavagem de dinheiro” (item 893).

Por considerar que houve corrupção (e, portanto, infração penal), Moro considera que se tratou de ocultação patrimonial a atribuição do imóvel (que não ocorreu de forma definitiva) e as fraudes documentais (com documentos pré-datados), voltada a dissimular os bens decorrentes da infração penal. Todavia, uma vez que se entenda que não há provas de corrupção, essa acusação se esvai. Além disso, a justificativa de que é possível cumular os crimes neste caso é muito frágil. Uma coisa é receber dinheiro como corrupção e “lavá-lo” por operações autônomas de dissimulação e ocultação. Coisa diversa é quando o próprio benefício recebido é justamente a disponibilidade do bem. O diagnóstico de Moro é de que “através de condutas de dissimulação e ocultação, a real titularidade do imóvel foi mantida oculta até pelo menos o final de 2014 ou mais propriamente até a presente data” (item 899).

Assim, a narrativa é de que Lula recebeu o bem em outubro de 2009 e que o ocultou até 2014. Porém, essa narrativa não é plenamente adequada às provas, pois não há indicação clara de que ele recebeu o imóvel de forma definitiva e que todos os atos
posteriores foram uma dissimulação do recebimento. Creio que é plenamente razoável a leitura de que o imóvel estava sendo reservado para ele, mas que não havia sido transferido para ele. Talvez seja verdade o que diz Léo Pinheiro, que ele acertou com Vaccari em 2014 que a OAS doaria o imóvel para Lula e debitaria isso da conta de corrupção. Mesmo que isso tenha ocorrido, não seria suficiente para caracterizar crime de corrupção. Ademais, talvez não seja verdadeira essa afirmação, que não é corroborada por outros elementos probatórios. Não são apresentados indícios de que o dinheiro foi debitado da conta de corrupção. Só há indícios de que o bem foi reservado para Lula em 2009 e que sofreu uma série de benefícios a partir de 2010. E há a afirmativa de Léo Pinheiro de que somente em 2014 ficou acertado que o pagamento desses benefícios seria feito por meio de uma compensação com a conta de corrupção do PT. Parece-me evidente que a reserva do apartamento e as obras de melhoria não caracterizam uma “propriedade de fato” e que, mesmo que tenha havido uma disponibilização de bens da OAS para Lula nesse período, não há indicação concreta de que isso ocorreu em função do exercício do cargo de Presidente. Tal como no caso dos depósitos, todos esses favores e presentes poderiam ser caracterizados como estratégias para agradar um ex-presidente que tinha influência muito grande no governo e no PT.

Por tudo isso, não vejo como entender que a base fática apresentada por Sérgio Moro seja uma justificativa razoável para suas conclusões jurídicas e, portanto, que a condenação de Lula não foi baseada nas provas, mas em certas convicções pessoais de Moro que não estão assentadas diretamente nos fatos e que não se adequam às leis penais brasileiras.

Brasília, 14 de julho de 2017

(*) Alexandre Araújo Costa
Cargo: Professor Adjunto
Área: Teoria Geral, Sociologia e Filosofia do Direito
Regime: Dedicação Exclusiva
Atuação: Graduação, Pós-Graduação
E-Mail: alexandre@arcos.org.br
Site: http://www.arcos.org.br/
Currículo: http://lattes.cnpq.br/1540773562032795
Perfil
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Credenciado nos programas de pós-graduação em Ciência Política e em Direito. Doutor em Direito (2008), Mestre em Direito e Estado (1999) e Bacharel em Direito (1996) pela UnB. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Política e Direito.
Formação
Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB, 2008)
Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB, 1999).
Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB, 1997)
Temas de Pesquisa
Política e Direito
Ética e Direito
Hermenêutica filosófia e jurídica
Filosofia Política e Jurídica
Linhas de Pesquisa na Pós-Graduação
Linha de Pesquisa Constituição e Democracia
Grupos de Pesquisa
Grupo de Pesquisa em Política e Direito
Publicações Selecionadas
COSTA, Alexandre Araújo ; ARAUJO, E. B. . Legitimidade Política e Compatibilidade Constitucional: A Recepção pelos Juristas das Propostas de Assembleia Constituinte Exclusiva para Alterar o Sistema Político.A&C. Revista de Direito Administrativo & Constitucional (Impresso), v. 60, p. 207-241, 2015.
CARVALHO, Alexandre Douglas Z. de ; Costa, Alexandre Araújo . Derechos > Fundamentales y la Evolución del Control de Constitucionalidad Concentrado > en Brasil. Sortuz: Oñati Journal of Emergent Socio-Legal Studies, v. 7, p. 112-138, 2015.
COSTA, Alexandre A. Teologia Moral para Ouriços: a teoria da justiça de Ronald Dworkin. Revista Direito.UnB, v. 1, p. 199-219, 2014.
COSTA, A. A. . Judiciário e Interpretação: Entre Política e Direito. Pensar (UNIFOR), v. 18.1, p. 09-46, 2013.
COSTA, Alexandre A. . O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria & Sociedade (UFMG), v. 19, p. 198-227, 2011.
COSTA, Alexandre A. ; CARVALHO, Alexandre Douglas Z. de . Resenha crítica do livro ‘A ideia de Justiça’ de Amartya Sen. Revista Brasileira de Ciência Política (Impresso), v. 8, p. 305-316, 2012.
COSTA, A. A. O Controle de Razoabilidade no Direito Comparado. Brasília : Thesaurus, 2008.
COSTA. A;. A. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do STF. Brasília : Thesaurus, 2008.
COSTA. A. A. Direito, Dogmática e Linguagem. Notícia do Direito Brasileiro, v.12, p.67 – 83, 2007.
COSTA, A. A. Introdução ao direito: uma perspectiva zetética das ciências jurídicas. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 2001.
COSTA. A. A. Outras Publicações: vide http://www.arcos.org.br/publicacoes/
Universidade de Brasília.
Campus Universitário Darcy Ribeiro
Asa Norte
70910-900 – Brasilia, DF – Brasil
Telefone: (61) 3107-0707 Fax: (61) 3107-0710
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Livre apreciação da prova é melhor do que dar veneno ao pintinho?, por Lenio Luiz Streck

Compartilho artigo de Lenio Luiz Stock, publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico.

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Vale a pena ler até a última linha do texto. Sugiro repetir a leitura para bom entendimento do texto. Como eu já disse, vale a pena.

Paulo Martins

SENSO INCOMUM
Livre apreciação da prova é melhor do que dar veneno ao pintinho?

13 de julho de 2017, 8h00
Por Lenio Luiz Streck

Depois de ver que aqui em Pindorama estão querendo, a fórceps, enfiar o bayesianismo e o explanacionismo para “dentro” da teoria da prova (ver aqui), algumas questões devem ser postas aos leitores. Penso que teorias como bayesionismo e explanacionismo podem ser úteis em determinados aspectos da filosofia e áreas ligadas à economia e gestão. Trata-se da discussão de probabilidades, “calculadas” a partir da lógica, na busca de caminhos para uma (melhor) tomada de decisão. Bayesianismo, explanacionsimo e outras teorias quetais podem ser úteis para análises econômicas envolvendo risco nas decisões. E há autores que trabalham com essas teorias na Análise Econômica do Direito (AED).

Mas, atenção: isso não quer dizer “decisão jurídica” e tampouco que se possa condenar alguém com base em cálculos de probabilidades. Usam análises para aferir eficiência de (e entre) fins e meios. O erro nas teorias desse tipo é o de pensar que o único critério de controle da ação seria o de analisar como que se “relacionam” fins (vazios) e meios (indeterminados) em busca de um resultado eficiente. Como o Direito, mormente o Penal e Processual Penal, trata de direitos fundamentais à liberdade e integridade, parece-me que tais teorias não podem ser aplicadas aqui, sob pena de estarmos criando uma espécie contemporânea de ordálias ou “prova do demônio”: atirem o réu às probabilidades! Direito e democracia não combinam com qualquer forma de teoria cética ou não cognitivista moral (uso aqui o conceito de Arthur Ferreira Neto em seu livro Metaética e a fundamentação do direito). Teorias céticas constituem um problema, porque, nelas, há uma crença de que a verdade, com um mínimo grau de objetividade, não importa. Quer dizer: paradoxalmente, para essas teorias “é verdade que não existe verdade”. Com isso, o Direito — e a teoria prova — são transformados em uma katchanga (real ou não).

Queria ver, por exemplo, alguma sentença que usasse, efetivamente, a fórmula do Teorema de Bayes. A relação do bayesianismo com a AED é, para mim, absolutamente temerária. O próprio criador da AED (Ronald Coase) não o fez. Aproveito para dizer que: a) quem aposta na AED adere a um tipo de ceticismo externo ou interno (ver aqui o belo texto de Marcos Marrafon sobre isso); b) a AED foi uma reação ao positivismo (formalismo), sendo uma versão 2.0 do realismo jurídico, cujo resultado pode ser visto no cotidiano do irracionalismo das decisões do judiciário brasileiro; c) AED? Você gosta? Então veja este exemplo, advindo de um dos corifeus da AED, R. Posner – que, aliás, custou uma enorme dor de cabeça, quando falou da venda de crianças. (ver aqui).

Aliás, defender a AED no Brasil é um grande e barulhento tiro no pé, porque, por ela, muitas operações da Justiça-MPF-PF podem ser severamente criticadas — mormente a operação carne fraca, assim como a divulgação das gravações do presidente Temer com Joesley (nesse dia, a bolsa perdeu 200 bilhões), porque mais causam prejuízo que felicidade (no sentido utilitarista — que, como se sabe, está por detrás da AED) — sem considerar os altos custos em diárias e logística das operações.

Bom, só para avisar, eu não sou adepto da AED. Logo, essas contradições não são problema meu nem são problemas que atrapalham minha análise. Ah: e também não sou contra a lava jato – sou contra os desmandos e autoritarismos que a operação institucionaliza.

Minha oposição a qualquer teoria ceticista (emotivista, não-cognitivista moral e/ou pragmaticista, todos parentes entre si) está assentada na CHD – Crítica Hermenêutica do Direito – tendo por suporte a ideia de que existem padrões objetivos que sustentam “o certo e o errado”. Meu Dicionário de Hermenêutica e o livro Diálogos com Lenio Streck mostram isso à saciedade. Direito sem teoria da decisão vira irracionalidade na veia. Estamos cheios de profetas sobre o passado. No Brasil existem até realistas (retrôs) que sustentam que precedentes são fonte primária de direito. Aceita-se, no atacado, que, primeiro se decide e, só depois, busca-se a fundamentação. Ou seja: atravessam a ponte, chegam do outro lado e depois voltam para construir…a ponte pela qual passaram. Aporias em cima de aporias. Processualismo…sem processo. Bingo.

O que quero dizer é que, para uma teoria da prova, não se pode jogar com probabilidades, intuições, deduções e subjetivismos tipo “busco a verdade real”. No fundo, isso dá tudo no mesmo, porque há um desprezo por critérios substantivos e uma ode à ficcionalização das respostas. Na verdade, teorias como essas querem dar respostas antes das perguntas. Fazem “deduções” porque constroem, artificialmente, as premissas.

Porque a “teoria do pintinho envenenado” é melhor!
Para quem aposta em teses intuitivas, emotivistas, probabilísticas e quer trazer isto para a seara dos direitos e garantias de liberdade (processo penal), sugiro algo mais “seguro”, como o “Teorema do Pinto” (o apelido é dado por mim), “praticado” pela Tribo Azende, da África central. Sem intuicionismo e sem deduções, a tribo, para construir a prova e “buscar a verdade”, lança mão do que chamo de “fator benge”, que consiste em dar para um pintinho um veneno previamente preparado (há um ritual para isso) e, se o pinto morrer, o réu é considerado culpado. Se o pinto sobreviver, é absolvido[1].

Pergunto: Qual é a diferença da “teoria do pintinho benge” e a inversão do ônus da prova que ainda é aplicado pelos tribunais da pátria? Qual é a diferença da teoria do pintinho e a tese bayesianista pela qual Pr(A) e Pr(B) são as probabilidades a priori de A e B Pr(B|A)? Ou que Pr(A|B) são as probabilidades a posteriori de B condicional a A e de A condicional a B respectivamente? Ou que o réu Tício deve ser condenado porque a hipótese fática H foi tomada como verdadeira por Caio porque é a que melhor explica a evidência E? Ou que, pela AED, Tício… O leitor pode complementar.

Falemos sério. O Brasil tem um precário ensino jurídico. E práticas judiciárias que não possuem racionalidade. Em São Paulo, um grupo estrangeiro comprou um conjunto de faculdades e despediu mais de duas centenas de professores, trocou o currículo e esticou o percentual de aulas em EAD (que não deixa de ser resultado de uma “análise econômica”, se me permitem a ironia). Como se o direito fosse mero instrumento. Ora, fala-se em bayesianismo e quejandos e, pelo país afora, nas salas de aula ainda se ensina que Kelsen é um positivista exegético, que cumprir a letra da lei é uma atitude positivista, que princípios são valores, que o juiz deve decidir conforme sua consciência, etc. E o professor posta no Facebook a sua maior conquista — a de ver aprovado um artigo seu no Conpedi.

Erros e epistem(olog)ias fakes que se refletem na operacionalidade do direito nos fóruns e tribunais. Por que há tanta insegurança e falta de previsibilidade? Simples: Porque não há critérios. Porque não há preocupação com um mínimo grau de objetividade e respeito à coerência e à integridade do direito (aliás, isso é obrigação legal – artigo 926 do CPC). Porque sequer se cumpre a objetividade mínima do texto como ponto de partida limitador de um processo hermenêutico. Pergunto: O que são a livre apreciação da prova e o livre convencimento se não argumentos emotivistas (ou coisa desse gênero)? Por isso, envenenar o pinto pode ser mais eficiente. Um relógio parado também acerta hora duas vezes ao dia.

Deixemos o bayesianismo na (e para a) filosofia moral e a lógica. Quero no direito a preservação de garantias. Quem tem de provar robustamente a culpa do réu é o Estado. Isso não pode vir de presunções. E nem de probabilidades. E duvido alguém provar a existência de um fato a partir do Teorema de Bayes.

Além de tudo, determinadas teorias, analisadas no plano filosófico, constituem-se em um paradoxo: se estiverem certas, estão erradas, isto é, se estiverem certas, a filosofia e seus dois mil anos não serviram para nada. Matemos os filósofos. Matem o cantor e chamem o garçom, diria Fausto Wolff.

Para encerrar, conto uma historinha bem ao gosto dos realistas retrôs brasileiros (que são, todos, não cognitivistas morais), com uma advertência – A anedota abaixo é uma carapuça – ponha-a quem quiser. Quem a conta é o professor Arthur Ferreira Neto:

“Um professor alemão, responsável pela disciplina Niilismo, que se enquadra em qualquer dos não cognitivismos acima, foi indagado por um aluno acerca do significado de um conceito complexo e um tanto obscuro que estaria ele apresentando em aula. Respondeu o professor: – não sei a resposta agora; mas, não se preocupe, porque até amanhã inventarei uma”.

Bingo! Bem assim se faz na cotidianidade das práticas jurídicas e nas salas de aula de Pindorama. Como diz a mãe de um amigo meu, nem tudo que parece, é. Mas se é, parece.

Para quem conseguiu chegar até aqui: Escrevi esta coluna para falar das mistificações que começam a ser feitas a partir do uso de teorias exóticas para dentro da teoria da prova no processo penal brasileiro. Já teve até decisão em que se disse que não havia prova, mas a doutrina que tratava do assunto autorizava a condenação (e citava Malatesta). Que se use teses sofisticadas como o bayesianismo onde se quiser. Mas não na teoria da prova. Por favor, não vamos conspurcar a já combalida teoria da prova. Temos 350 mil presos cautelarmente que teriam melhor destino se, para os seus processos, fosse utilizada a teoria do pintinho envenenado… A chance de cada réu seria maior. Ou estou exagerando?

Salvemos, pois, a professorinha, com seu toco de giz. Salvemos as teorias da verdade. Não desistamos da (busca da) verdade!

Post scriptum: lendo a sentença condenatória do ex-Presidente Lula prolatada pelo Juiz Sérgio Moro, deu-me a nítida impressão que o réu teria mais chance de ser absolvido se tivesse sido usado o “Teorema do Pintinho Envenenado”, que faz sucesso na tribo Azende, da Africa Central.

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2017, 8h00

Exóticas, teorias usadas pelo MPF no caso Lula seriam chumbadas pelo CNMP, por Lenio Luiz Streck

Exóticas, teorias usadas pelo MPF no caso Lula seriam chumbadas pelo CNMP

Por Lenio Luiz Streck

Recentemente, o conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Valter Shuenquener concedeu liminar (aqui) para anular a questão número 9 do 54º concurso público para promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. No voto, o conselheiro cita coluna Senso Incomum, na qual denunciei o exotismo das teorias perquiridas no certame, como a teoria (sic) da graxa e do Estado vampiro. O CNMP, assim, dá importante passo para desbaratar embustes epistêmico-concurseiristas, como o uso de questões exóticas e quiz shows. Bingo, conselheiro Valter. Estava na hora de passar um recado às bancas de concursos. Há que se avisar que o concurso não é da banca; é do “público”; é res publica. Não é res concurseira.
Pois parece que o recado do CNMP não retumbou em certas teorias utilizadas pelo Ministério Público Federal nas alegações finais subscritas recentemente no processo criminal movido contra o ex-presidente Lula. Que o procurador signatário da peça cite em seu livro teorias exóticas e incompatíveis com qualquer perspectiva contemporânea acerca da prova, OK. Mas que queira fazer uso de teorias, teses ou posturas acopladas a fórceps no Direito é outra coisa. Qual é o limite ético do uso de determinadas teses, tratando-se de uma instituição que deve ser imparcial (MP deveria ser uma magistratura) e zelar pelos direitos e garantias dos cidadãos e da sociedade?
É possível, na ânsia de condenar, jogar para o alto tudo o que já se ensinou e escreveu nas mais importantes universidades do mundo sobre a prova e a verdade no processo penal? Aliás, nas alegações finais que tive a pachorra de ler (e só o fiz depois que fiquei sabendo que o procurador usou o bayesianismo e o explanacionismo), sequer são citados os livros nos quais ele se baseia.

O que diz o signatário? Vamos lá. “As duas mais modernas teorias sobre evidência atualmente são o probabilismo, na vertente do bayesianismo, e o explanacionismo. Não é o caso aqui de se realizar uma profunda análise teórica delas, mas apenas de expor seus principais pontos, a fim de usar tal abordagem na análise da prova neste caso”. (grifei)
Sigo. E ele explica: “Muito sucintamente, o bayesianismo, fundado na atualização de probabilidades condicionais do Teorema de Bayes, busca atualizar a probabilidade de uma hipótese com base em evidências apresentadas. Na linguagem probabilística, uma evidência E confirma ou desconfirma uma hipótese H. Contudo, a vertente probabilística de análise de prova apresenta inúmeras dificuldades para as quais ainda não foi apresentada resposta convincente, como o problema das probabilidades iniciais, a complexidade dos cálculos, o problema da classe de referência, o paradoxo das conjunções, as evidências em cascata etc. Já de acordo com o explanacionismo, a evidência é vista como algo que é explicado pela hipótese que é trazida pela acusação ou pela defesa”. (sic)

Bom, isso se pode ver também na Wikipédia (e olha que a fonte das páginas Wikis nem são tão confiáveis). Aliás, na Wiki está mais “clara” essa “bela” tese sobre “a prova” adaptada à fórceps ao Direito. Vejamos: O teorema de Bayes (por isso bayesianismo!) é um corolário do teorema da probabilidade total que permite calcular a seguinte probabilidade:
(vide imagem no banner)
Pronto. Eis aí a fórmula para condenar qualquer réu e por qualquer crime. Você joga com as premissas (ou probabilidades) e… bingo. Tira a conclusão que quiser. Algo próximo a autoajuda para entender o que é isto — a verdade no processo penal. Gostei mesmo foi do “Paradoxo das conjunções…”. Deve ser esse o busílis do teorema aplicado à teoria da prova. Fico imaginando o juiz dizendo (não resisto a fazer uma blague e peço já desculpa aos leitores e ao signatário da peça por isso — mas é que a situação é por demais peculiar): “— Condeno o réu Mévio porque o Pr(A), na conjunção com o Pr(AB) deu 0,1. Isso porque a probabilidade a posteriori indicava que Pr(B-A) era inferior a Pr (B+). Perdeu. A casa caiu; a pena aplicada é de X anos”.
Mas a peça é ornamentada com mais uma “teoria jurídica”: O explanacionismo, que “tem por base a lógica abdutiva, desenvolvida por Charles Sanders Peirce no início do século XIX. Para se ter ideia da força que assumiu a abdução, que foi denominada inferência para uma melhor explicação (“inference to the best explanation”) pelo filósofo Harman, pode-se citar uma obra da década de 1980 em que Umberto Eco, junto com outros renomados autores, examinaram exemplos do uso dessa lógica em inúmeras passagens de Sherlock Holmes.
Na linguagem explanacionista, a hipótese fática H (cuidado com a cacofonia) que é tomada como verdadeira é aquela que melhor explica a evidência E, ou o conjunto de evidências do caso. Assim, a melhor hipótese para a evidência consistente em pegadas na areia é a hipótese de que alguém passou por ali. (…) Combinando o explanacionismo com o standard de prova da acusação, que se identifica como a prova para além de uma dúvida razoável, pode-se chegar à conclusão quanto à condenação ou absolvição do réu”. (sic)
Pronto. Sherloquianamente, a partir do explanacionismo, chega-se à conclusão de que… de que, mesmo? Ou seja: Tício pode ser condenado porque a hipótese fática H (cuidado de novo) foi tomada como verdadeira por Caio porque é a que melhor explica a evidência E. E eu poderia dizer que, a partir da teoria da incompletude de Gödel, a tese esgrimida na peça processual está errada. Ou está certa. Quem sabe? Ou que pelo sistema de Hilbert (por essa ninguém esperava, hein; pensam que não leio essas coisas?) há 85% de chances de a abdução realizada pelo procurador signatário da peça ser falsa, porque, no plano sistêmico — entendido a partir de uma epistemologia não-cognitivista moral (teoria metaética) — ele está absolutamente equivocado. Mas isso que eu acabei de falar é tão verdadeiro quanto a teoria do bayesianismo. Ou não. Entenderam?

Ou seja, cada coisa que está dita — e vou utilizar o neopositivismo lógico (não inventei isso) e sua condição semântica de sentido — pode ser refutada com a simples aposição da palavra “não”. Vou me autocitar só uma vez (há 7 autocitações na peça processual): no meu Dicionário de Hermenêutica, há um verbete sobre Resposta Adequada a Constituição, em que mostro como usar a condição semântica de sentido (por óbvio, sob um viés hermenêutico que não vou explicar aqui). De uma forma simples, é assim: Um enunciado só é verdadeiro, a partir do neopositivismo lógico, se passar pelo filtro da sintaxe e da semântica. Se eu digo “chove lá fora”, esse enunciado pode ser testado. Sintaticamente, correto. E semanticamente? Fácil. Basta olhar para fora. Se estiver chovendo, beleza. Se estiver tempo seco, basta colocar um “não” no enunciado. Bingo. Enunciado verdadeiro. Parcela considerável do que está dito nas três centenas de laudas não passa pela CSS (condição semântica de sentido). Coloque a palavra “não” nos enunciados (frases) e constate. No Dicionário, uso o exemplo da decisão em que uma juíza do Rio de Janeiro nega ao detento o direito de não cortar o cabelo, enquanto que para as mulheres era dado esse direito. Argumento: as mulheres são mais higiênicas que os homens. Bingo: se eu colocar um “não”, que diferença fará? Não há qualquer possibilidade empírica de verificar a veracidade do enunciado.
Aliás, qualquer coisa que você quiser demonstrar é possível com as duas “modernas” teorias (sim, são modernas…, mas não para o Direito e/ou teoria da prova). Aliás, abdução ou dedução ou coisa que o valha só é possível — na filosofia — se estivermos em face de um enunciado auto evidente. Caso contrário, como nunca falamos de um grau zero de sentido, colocamos a premissa que quisermos, para dali deduzir o que queremos. Sherlock mesmo tem várias passagens em que brinca com esse tipo de raciocínio. Isso também está explicado no diálogo entre Adso de Melk e Guilherme de Baskerville, no romance O Nome da Rosa. É a passagem da subida em direção à Abadia… Deduções que parecem deduções…
Trazer isso para o Direito e tentar, de forma malabarística, dizer que uma coisa é porque não é mas poderia ter sido por inferência ou abdução, cá para nós, se isso for ensinado nas salas de aula dos cursos de direito… Bom, depois da teoria da graxa, dos testículos partidos, da exceção da nódoa removida, do dolo colorido, do estado vampiro, da teoria régua lésbica aristotélica (sim, isso é ensinado em alguns cursinhos), porque não incluir duas novas — bayesianismo, e o explanacionismo?

Aproveito para sugerir uma nova: a TPP — Teoria da Prova de Procusto. Inventei agora: Procusto era um sujeito que tinha um castelo no deserto. Quem por ali passava recebia toda mordomia. Só tinha um preço: dormir no seu leito. Procusto tinha um metro e sessenta. Se o visitante medisse mais, cortava um pedaço; se medisse menos, espichava o vivente. Pronto. Se os fatos não comprovam alguma coisa, adapte-se os às teorias. Ou se crie uma teoria para construir narrativas.

Numa palavra: não coloco em dúvida o valor do teorema de Bayes e o esplanaciosimo. Mas um processo penal é uma coisa séria demais para experimentalismos. Ou jogos de palavras. O que consta da peça processual, se verdadeiras as adaptações que se quer/quis fazer para a teoria da prova no Direito, jogará por terra dois mil anos de filosofia e todas as teorias sobre a verdade. Mas tem uma explicação para essas teses ou “teorias”: na verdade, são teses que se enquadram, no plano da metaética, no não cognitivismo moral, como bem explica Arthur Ferreira Neto no seu belo livro Metaética e a fundamentação do Direito. São não-cognitivistas todas as teorias emotivistas, niilistas, realistas (no sentido jurídico da palavra) e subjetivistas.
E por que? Porque são posturas céticas (ceticismo externo, diria Dworkin). Por elas, não é possível exercer controle racional de decisões. Direito, por exemplo, será aquilo que a decisão judicial disser que é. E isso resultará de um ato de verificação empírica. Um ato de poder. E de vontade. Prova será aquilo que o intérprete quer que seja. Para essa postura, decisões jurídicas sempre podem ser variadas. Uma postura não-cognitivista não concebe a possibilidade de existir nenhuma forma de realidade moral objetiva; relativismo na veia; não é possível, por elas, dizer que uma coisa é ruim em qualquer lugar; somente a dimensão empírica é capaz de influenciar a formação do direito. O decisionismo é uma forma não-cognitivista. Niilismo, do mesmo modo é uma forma não-cognitivista, assim como uma corrente chamada emotivista. O uso das teses em testilha e seu signatário podem ser enquadrados como um não-cognivismo moral, seguindo os conceitos das teorias mais modernas sobre a diferença entre cognitivismo e não-cognitivismo ético (aqui, moral e ética são utilizadas, na linha de Arthur Ferreira Neto, como sinônimas). De minha parte, sou confessadamente um cognitivista.

Por que estou dizendo tudo isso? Porque quem sai na chuva é para se molhar. Ou corre o risco de se molhar (isso seria uma inferência? Ou uma abdução? Ou dedução?). Estamos falando de um agente do Estado que possui responsabilidade política (no sentido de que fala Dworkin). O agente do MPF nos deve accountability. Deve ser imparcial. Não pode dizer o que quer. Há uma estrutura externa que deve constranger a sua subjetividade. Essa estrutura é formada pela Constituição, as leis, as teorias da prova, as teorias sobre a verdade, enfim, há uma tradição acerca do que são garantias processuais. E do(s) agentes(s) estatais podemos questionar o uso de “teorias” sobre a prova que o próprio CNMP poderia — se indagadas em concurso público — chumbá-las, porque exóticas. Comparando com a medicina, é como se alguém defendesse a tese de que é possível fazer operação a partir da força da mente. Ou algo exótico desse jaez.
Por fim, poder-se-á dizer que há provas nos autos etc., coisa que aqui não me interessa. Não sou advogado da causa. Não quero e nem posso discutir o mérito do processo. Discuto as teorias de base utilizadas por um agente público. Poder-se-á dizer que o uso das duas “teorias” citadas nem são (ou foram) importantes para o deslinde da controvérsia (embora o próprio procurador signatário diga que fará a análise das provas a partir dessas duas “teorias”). Mas que estão aí, estão. O juiz da causa poderá até acatá-las. Mas, com certeza, se perguntadas em concurso público, haverá a anulação das questões. Pelo menos é o que se lê na liminar do CNMP (atenção – até porque no Brasil as metáforas têm de ser anunciadas e explicadas – a alusão ao CNMP tem apenas o condão de comparar a dimensão do sentido do uso de “teorias exóticas”).
Se alguém ficou em dúvida em relação ao teorema de Bayes, retorne no texto e veja de novo a fórmula. Não entendeu? Ora, é fácil.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: http://www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2017, 8h00

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SENTENÇA CONTRA LULA

Por Fernando Hideo I. Lacerda
(Advogado criminalista – PUC/SP)

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SENTENÇA CONTRA LULA

  1. Não me proponho a exaurir o tema, tampouco entrar num embate próprio das militâncias partidárias, relatarei apenas as minhas impressões na tentativa de traduzir o juridiquês sem perder a técnica processual penal.
  2. OBJETO DA CONDENAÇÃO: a “propriedade de fato” de um apartamento no Guarujá.

Diz a sentença: “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram PROPRIETÁRIOS DE FATO do apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá”.

Embora se reconheça que o ex-presidente e sua esposa jamais frequentaram esse apartamento, o juiz fala em “propriedade de fato”.

O que é propriedade ?

Código Civil – Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

Portanto, um “proprietário de fato” (na concepção desse juiz) parece ser alguém que usasse, gozasse e/ou dispusesse do apartamento sem ser oficialmente o seu dono.

Esse conceito “proprietário de fato” não existe em nosso ordenamento jurídico. Justamente porque há um outro conceito para caracterizar essa situação, que se chama POSSE:

Código Civil – Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

E não foi mencionada na sentença qualquer elemento que pudesse indicar a posse do ex-presidente ou de sua esposa do tal triplex: tudo o que existe foi UMA visita do casal ao local para conhecer o apartamento que Léo Pinheiro queria lhes vender.

Uma visita.

Portanto, a sentença afirma que Lula seria o possuidor do imóvel sem nunca ter tido posse desse imóvel. Difícil entender ? Impossível.

  1. TIPIFICAÇÕES:
  • corrupção (“pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”)
  • lavagem de dinheiro (“envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”).

    1. PROVAS DOCUMENTAIS: um monte de documento sobre tratativas para compra de um apartamento no condomínio do Guarujá (nenhum registro de propriedade, nada que indique que o casal tenha obtido sequer a posse do tal triplex) e uma matéria do jornal o globo (sim, acreditem se quiser: há NOVE passagens na sentença que fazem remissão a uma matéria do jornal o globo como se prova documental fosse).

    Esse conjunto de “provas documentais” comprovaria que o ex-presidente Lula era o “proprietário de fato” do apartamento.

    Mas ainda faltava ligar o caso à Petrobras (a tarefa não era assim tão simples, porque a própria denúncia do Ministério Público do Estado de São Paulo — aquela mesmo que citava Marx e “Hegel” — refutava essa tese)…

    1. PROVA TESTEMUNHAL: aí entra a palavra dos projetos de delatores Léo Pinheiro e um ex-diretor da OAS para “comprovar” que o apartamento e a reforma seriam fruto de negociatas envolvendo a Petrobras.

    Não há nenhuma prova documental para comprovar essas alegações, apenas as declarações extorquidas mediante constante negociação de acordo de delação premiada (veremos adiante que foi um “acordo informal”).

    1. CORRUPÇÃO

    Eis o tipo penal de corrupção:

    Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem

    Portanto, deve-se comprovar basicamente:
    – solicitação, aceitação da promessa ou efetivo recebimento de VANTAGEM indevida; e
    – CONTRAPARTIDA do funcionário público.

    No caso, o ex-presidente foi condenado “pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”.

    O pressuposto mínimo para essa condenação seria a comprovação:
    – do recebimento da vantagem (a tal “propriedade de fato” do apartamento); e
    – da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás.

    Correto ?

    Não.

    Como não houve qualquer prova sobre a contrapartida (salvo declarações extorquidas de delatores), o juiz se saiu com essa pérola:

    “Basta para a configuração que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam.”

    E prossegue, praticamente reconhecendo o equívoco da sua tese: “Na jurisprudência brasileira, a questão é ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes inclinam-se no sentido de que a configuração do crime de corrupção não depende da prática do ato de ofício e que não há necessidade de uma determinação precisa dele”.

    Ou seja, como não dá pra saber em troca de que a oas teria lhe concedido a “propriedade de fato” do triplex, a gente diz que foi em troca do cargo pra que as vantagens fossem cobradas “assim que as oportunidades apareçam” e está tudo certo pra condenação !

    Para coroar, as pérola máxima da sentença sobre o crime de corrupção:

    • “Foi, portanto, um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente”.

    Haja triplex pra tanta vantagem…

    • “Não importa que o acerto de corrupção tenha se ultimado
      somente em 2014, quando Luiz Inácio Lula da Silva já não exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens lhe foram pagas em decorrência de atos do período em que era Presidente da República”.

    Haja crédito pra receber as vantagens até 4 anos depois do fim do mandato…

    1. LAVAGEM DE DINHEIRO

    A condenação por corrupção se baseia em provas inexistentes, mas a pior parte da sentença é a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro.

    Hipótese condenatória: lavagem de dinheiro “envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”.

    Ou seja, o ex-presidente Lula teria recebido uma grana da oas na forma de um apartamento reformado e, como não estava no nome dele, então isso seria lavagem pela “dissimulação e ocultação” de patrimônio.

    Isso é juridicamente ridículo.

    Lavagem é dar aparência de licitude a um capital ilícito com objetivo de reintroduzir um dinheiro sujo no mercado. Isso é “esquentar o dinheiro”. Exemplo clássico: o cara monta um posto de gasolina ou pizzaria e nem se preocupa com lucro, só joga dinheiro sujo ali e esquenta a grana como se fosse lucro do negócio.

    Então não faz o menor sentido falar em lavagem nesses casos de suposta “ocultação” da grana. Do contrário, o exaurimento de qualquer crime que envolva dinheiro seria lavagem, percebem ?

    Não só corrupção, mas sonegação, roubo a banco, receptação, furto… Nenhum crime patrimonial escaparia da lavagem segundo esse raciocínio, pq obviamente ninguém bota essa grana no banco !

    1. DELAÇÃO INFORMAL (OU SEJA, ILEGAL) DE LÉO PINHEIRO

    Nesse mesmo processo, Léo Pinheiro foi condenado a 10 anos e 8 meses (só nesse processo, pois há outras condenações que levariam sua pena a mais de 30 anos).

    Mas de TODAS AS PENAS a que Léo Pinheiro foi condenado (mais de 30 anos) ele deve cumprir apenas dois anos de cadeia (já descontado o período de prisão preventiva) porque “colaborou informalmente” (ou seja, falou o que queriam ouvir) mesmo SEM TER FEITO DELAÇÃO PREMIADA OFICIALMENTE.

    Ou seja, em um INÉDITO acordo de “delação premiada informal”, ganhou o benefício de não reparar o dano e ficar em regime fechado somente dois anos (independentemente das demais condenações).

    Detalhes da sentença:

    “O problema maior em reconhecer a colaboração é a FALTA DE ACORDO de colaboração com o MPF. A celebração de um acordo de colaboração envolve um aspecto discricionário que compete ao MPF, pois não serve à persecução realizar acordos com todos os envolvidos no crime, o que seria sinônimo de impunidade.” –> delação informal

    “Ainda que tardia e SEM O ACORDO DE COLABORAÇÃO, é forçoso reconhecer que o condenado José Adelmário Pinheiro Filho contribuiu, nesta ação penal, para o esclarecimento da verdade, prestando depoimento e fornecendo documentos” –> benefícios informais

    “é o caso de não impor ao condenado, como condição para progressão de regime, a completa reparação dos danos decorrentes do crime, e admitir a progressão de regime de cumprimento de pena depois do cumprimento de dois anos e seis meses de reclusão no regime fechado, isso independentemente do total de pena somada, o que exigiria mais tempo de cumprimento de pena” –> vai cumprir apenas dois anos

    “O período de pena cumprido em prisão cautelar deverá ser
    considerado para detração” –> desses dois anos vai subtrair o tempo de prisão preventiva

    “O benefício deverá ser estendido, pelo Juízo de Execução, às penas unificadas nos demais processos julgados por este Juízo” –> ou seja, de todas as penas (mais de 30 anos) ele irá cumprir apenas dois anos em regime fechado…

    1. TRAUMAS E PRUDÊNCIA

    Cereja do bolo: o juiz diz que “até caberia cogitar a decretação da prisão
    preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, mas “considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação”.

    É a prova (agora sim, uma prova !) de que não se julga mais de acordo com a lei, mas pensando nos traumas e na (im)prudência…


    Independentemente da sua simpatia ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações dessa natureza.

    Eis o processo penal de exceção: tem a forma de processo judicial, mas o conteúdo é de uma indisfarçável perseguição ao inimigo !

    Muito cuidado para que não se cumpra na pele a profecia de Bertolt Brecht e apenas se dê conta quando estiverem lhe levando, mas já seja tarde e como não se importou com ninguém…

    O golpe “deu ruim”. Agora não adianta tirar o corpo fora …

    Por Pedro Breier, colunista do Cafezinho

    Um amigo que apoiou o impeachment me disse, resignado, alguns dias atrás: “foi golpe mesmo”.

    Um conhecido pediu desculpas públicas hoje, em sua página do Facebook, às pessoas com quem ele discutiu defendendo o impeachment. “Eu preciso admitir que a palavra golpe é a melhor definição para a queda da Dilma”, escreveu.

    As provas contra os bandidos que assaltaram o poder, especialmente contra Temer, que aparentemente vai morrer abraçado à cadeira onde nunca deveria ter sentado, estão fazendo as pessoas acordarem do torpor a que foram induzidas pelo massacre midiático liderado pela Globo.

    O retumbante fracasso do golpe é um fato consumado.

    Vai ficando cada vez mais claro que a mídia hegemônica e a dupla PSDB/PMDB tinham dois objetivos para o pós-golpe.

    O primeiro era aplicar sua agenda de desmonte do Estado e ataque à direitos, visando rebaixar a renda dos trabalhadores e manter a margem de lucro dos grandes empresários e especuladores. O neoliberalismo prega que a economia deve chegar ao rés do chão o mais rápido possível para que o ciclo de recessão acabe e a expansão da economia seja retomada.

    Ninguém admite isso publicamente, mas a ideia das medidas de austeridade é justamente aprofundar a recessão para que a economia volte a crescer o mais rápido possível. Afinal, quando se chega ao fundo do poço, só se pode subir mesmo.

    Os milhões de desempregados e miseráveis que resultam desta teoria econômica são mero detalhe para os cabeças de planilha. Gente sofrendo são apenas números para essa gente.

    O problema é que o fundo do poço está demorando para ser vislumbrado. Além disso, o desemprego, o rebaixamento dos salários e a piora brutal nas condições de vida estão irritando profundamente os brasileiros. Temer é o presidente mais mal avaliado da história e a população quer eleger o novo mandatário do país o mais rápido possível.

    O segundo objetivo da ala midiática/partidária do golpe era controlar o MP e a Justiça para que tudo voltasse à “normalidade” dos anos 90, onde a dilapidação do patrimônio público e as grandes negociatas eram tranquilamente engavetadas e abafadas.

    Deu ruim também.

    O endeusamento de Moro, Janot, Dallagnol e companhia criou um monstro que passa por cima do que estiver pela frente, inclusive da lei e da economia nacional, em nome de sua heroica luta contra a corrupção (É claro que no caso de Temer e de seus bandidos de estimação há provas abundantes de crimes, e não apenas delações obtidas por meio de tortura).

    As reformas tão sonhadas pelos donos do dinheiro neste país subiram no telhado de um arranha-céu. O presidente colocado no poder justamente para transformá-las em realidade apenas luta pateticamente pela própria sobrevivência.

    Paulo Skaf agora diz que a Fiesp “não se mete em política”. A Globo grita “Fora Temer”. O PSDB continua abraçado ao zumbi putrefato que, incrivelmente, ainda é presidente do Brasil.

    São todos uns grandes brincalhões.

    Mas agora não adianta tentar tirar o corpo fora. A ruína do golpe ficará marcada na testa de cada um dos conspiradores por muito tempo.

    Pedro Breier, colunista do blog O Cafezinho, é formado em direito mas gosta mesmo é de jornalismo. Nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo.

    O depoimento de Lula ao Moro (11/05/2017)

    Compartilho post publicado no Facebook por Fernando Horta. Ē  um dos melhores comentários sobre o depoimento que eu li na internet.

    Paulo Martins

    Vi as cinco horas do depoimento do Lula ao Moro e é preciso que se registrem algumas coisas:

    1) Moro foi extremamente cortês no trato e inflexível em sua tese. Na história aprendemos a reconhecer os meta-textos, que são ideias subjacentes ao que se diz abertamente, que o sujeito deixa transparecer em suas ações ou falas. Moro se arroga o direito de avaliar moralmente e politicamente Lula. Um advogado mais velho se esganiçou dizendo que o “juiz tem direito de medir até moralmente o réu” … talvez tivesse, quando este advogado se formou. Estamos no século XXI e hoje se sabe que julgamento moral é quase como uma condenação sumária. É não jurídico, portanto.

    2) O ministério público é rizível. Fiquei chocado de saber que o primeiro procurador é sustentado pelo país para fazer aquele papel. E recebe muitíssimo bem. O segundo procurador foi melhor e mais profissional. Penso que fez bem o seu papel. Ele tem que apertar mesmo o Lula. É a função.

    3) a defesa de Lula fez o bom combate. Criminalizada como é sempre por Moro. Já assisti outros depoimentos e Moro faz sempre a mesma coisa. Ele parece não conhecer teoria jurídica, pois a defesa nunca ATRAPALHA o processo jurídico (como ele afirma). A defesa é PARTE integrante do próprio veredicto. É no jogo dialético entre acusação e defesa que o juiz DEVERIA se pautar. Assim, é do interesse DO JUIZ ouvir a defesa. E quanto mais aguerrida ela for, maior será a convicção do juiz para condenar ou absolver. Isto, claro, contando que o juiz não tenha convicção a priori. Se ele já se convenceu, aí sim a defesa atrapalha.

    4) Moro faz uso, com polidez, de três grandes erros que nós, historiadores, aprendemos a reconhecer de pronto: a) Moro faz afirmações anacrônicas e procura confundir a temporalidade dos fatos para o acusado. As relações de causa e efeito são sempre datadas. É preciso que a defesa atente a isto. b) A causa de um evento ocorrido em X momento é uma, e o evento ocorrido adiante no tempo não tem NECESSARIAMENTE relação. Trocando em miúdos, não é porque A aconteceu antes de B que A é causa de B. E pode-se dizer que o que causou B pode não ter efeito em A e vice versa. Não é possível PRESUMIR uma causalidade operante ao longo de período tão longo, senão por convicção anterior de culpa.
    Dou um exemplo prático. Um casal era casado por dez anos e numa briga decide se separar. Um dos indivíduos envolvidos sai naquela noite e encontra outra pessoa. Ficam juntos. Quem enxerga a história pode dizer que a separação ocorreu porque tal indivíduo JÁ tinha a relação com a outra pessoa. Mas isto não necessariamente é correto. Ele pode, realmente, ter conhecido a pessoa naquela noite e os fatos apenas serem sequência temporal um do outro e não terem correlação causal. Na ciência, no primeiro semestre de qualquer disciplina de introdução científica, ensinamos que “correlação não é causação”. E para o crime é preciso provar a causa. c) Moro é teleológico. E talvez este seja o pior dos seus defeitos. Ele tentou montar uma narrativa explicando o passado através dos desembaraços que este passado teve. Acontece que ele Moro conhece os desdobramentos porque está adiante no tempo, mas o sujeito que toma a decisão não. Ele tenta culpabilizar o presidente por indicar a pessoa A ou B. Sabendo – hoje – que a pessoa foi pega em corrupção. E quando ele pergunta ao Lula se o presidente sabia (e esta é a pergunta-chave) o presidente nega. A questão é que NÃO HÁ COMO provar que o presidente sabia. Por isto o direito exige culpa objetiva em processo criminal. Mas se Moro se convencer que sim (e acho que nem precisamos ser gênios para vermos que ele já tomou a decisão) Lula será condenado. E será condenado teleologicamente por uma Teoria do Dominío do Fato camuflada com um julgamento moral, que reproduz exatamente o argumento de senso comum dos fascistas: “Não tinha como o presidente não saber”. Baseado numa impossibilidade lógica de comprovação, comprova-se a tese por negação. Um absurdo lógico que arrepia.

    Por fim, Lula transforma tudo o que o atinge em palanque. Isto é uma habilidade rara. Poucos líderes conseguiam fazer isto. Ouvindo Lula, recordei-me das acusações que fizeram a Roosevelt no final da sua vida, quando disseram que ele era “soft with commies” (amigo dos comunistas). Esta acusação era o que de mais absurdo existia nos EUA na época. Roosevelt disse que se ele tivesse que ser “soft” com quem quer que fosse para que os EUA fossem grandes e estivessem seguros “ele faria este supremo esforço”. Roosevelt invertia a acusação se fortalecia. Fidel, em uma entrevista, foi perguntado se era verdade que Cuba era um país tão pobre que universitárias precisavam se prostituir. O velho líder comunista disse “não! Em Cuba a educação é tão universal e um valor tão importante, que até mesmo nossas prostitutas tem nível universitário”.
    Lula é assim. Isto não tem lado político. Isto é qualidade pessoal. Penso que Lula sai maior do que entrou. Mas acho que Moro já o condenou. Desde 2009. Precisa apenas achar o crime. Qualquer um serve. Ainda que imaginário.

    Edit 1: Uma coisa que me chama a atenção é Moro fazer PRIMEIRO as perguntas. Me parece um protagonismo que fala muito. Primeiro, eu quero ouvir a acusação. Ele fez tanta pergunta que chegou a dizer ao promotor que tal pergunta ele, Moro, já tinha feito. Ora, se isto não é uma comprovação de quem efetivamente está no polo ativo da ação então não sei mais nada.
    Fernando Horta

    SENSO INCOMUM: Moro dá às palavras o sentido que quer! O Direito através do espelho!, por Lenio Luiz Streck

    SENSO INCOMUM
    Moro dá às palavras o sentido que quer! O Direito através do espelho!

    30 de março de 2017, 8h00
    Por Lenio Luiz Streck

    Eu tinha uma coluna pronta. Todavia, quando li a matéria a seguir, resolvi fazer outra. Deu-me muito trabalho. Semana cheia. Terça publiquei o artigo Foro Privilegiado: “Supremo em Números” (FGV) não é Números Supremos. Quem não leu ainda, faça-o já (favor acessar a página do  autor).

    Sigo. Não bastassem tantas polêmicas o envolvendo, — como a recente ilegal e arbitrária condução coercitiva e a violação do sigilo da profissão do blogueiro Eduardo Guimarães — Sergio Moro não pode ficar 24 horas sem os holofotes. Falem mal, mas falem. Agora ele mesmo está deixando de cumprir algo que assinou. Incrível. E o que assusta é o modo como ele decide e o silêncio eloquente dos democratas. Poucos reclamam.

    O que quero falar e denunciar é a ilegalidade flagrante da possibilidade do uso da imagem do ex-presidente Lula no filme sobre a Policia Federal (que por certo, dará o Oscar para Pindorama — já imagino a Glória Pires comentando o filme sem tê-lo visto). Já denunciei aqui que os atores do filme “oscarizando” fizeram um tour pelas celas, porque queriam ver os “dentes dos presos”.

    Lembremos que no despacho em que autorizou a condução coercitiva de Lula, Moro afirmou que “NÃO deve ser utilizada algema e NÃO deve, em hipótese alguma, ser filmado ou, tanto quanto possível, permitida a filmagem do deslocamento do ex-presidente para a colheita do depoimento”. Atenção: os dois “NÃOS” maiúsculos são da ordem original de Moro.

    Pronto: não deve ser filmado em hipótese alguma. Não deve ser permitida, tanto quanto possível a filmagem (por terceiros e pela própria Polícia Federal) do seu deslocamento. O que se entende disso? Que qualquer filmagem do ex-presidente sendo conduzido estava proibida. Qualquer filmagem. E a filmagem de seu deslocamento (foi de carro até o aeroporto) também não devia ser permitida. Portanto, qualquer filmagem é ilegal. Írrita. Nenhuma. Ou seja; se em hipótese alguma deveria haver filmagem, mesmo que alguma fosse feita, por óbvio não poderia ser utilizada pela Polícia Federal. E nem cedida a qualquer diretor de filmes. Simples assim.

    Pois bem. Diante de revelações feitas para diferentes veículos de comunicação, nas quais atores do já famoso filme e até mesmo o diretor afirmam — sem nenhum segredo — que tiveram acesso aos vídeos gravados pela Polícia Federal, a defesa de Lula apresentou nova petição no dia 27 de março de 2017. Os advogados de Lula juntam entrevista do produtor do filme, Tomislav Blazic, na qual afirma ao jornal Folha de S.Paulo que havia feito “acordo sem precedentes” com a Polícia Federal. Vejam: “acordo sem precedentes”. Sem querer, acertou: não há precedentes de tamanha bizarrice.

    O que mais precisa demonstrar? O filme pronto e o estrago feito? Na Idade Média era permitida a tortura por ordem judicial. Mas o réu podia interpor recurso para a instância superior. Com um detalhe: não tinha efeito suspensivo. Bingo. Algo como o que está ocorrendo com os estragos feitos por determinadas decisões judiciais pindoramenses. Feito o estrago, depois vem ou um pedido de desculpas ou uma “explicação” tipo “dou-me conta de que, de fato, blogs podem ser equiparados a jornais”. Mas aí Inês já é morta.

    A primeira petição dos advogados foi respondida com uma sutil ironia pelo juiz Sergio Moro, que afirmou que não podia impor censura a veículos de comunicação ou mesmo à produção de algum filme. Bingo de novo. Genial. Ele proíbe a filmagem e depois, uma vez usada à socapa e à sorrelfa essa filmagem, lava as mãos, posando de liberal porque não pode impor censura. Desta vez o Brasil ganha ou o Oscar com a película ou o Nobel pela decisão “anticensura”.

    A parte melhor da decisão de Moro é quando afirma que a petição dos advogados de Lula se baseava apenas em reportagem jornalística, não sendo apresentada qualquer gravação durante a condução coercitiva. Para Moro, se qualquer veículo de comunicação ou produção do filme tivesse tido acesso às imagens, provavelmente estas já teriam sido disponibilizadas.

    “Provavelmente” é bom, não? Mas o Direito lida com “provavelmente”? E se tivessem sido disponibilizadas as gravações? Isso resolveria o quê? Por óbvio que o tal filme não pode utilizar as imagens de Lula sendo conduzido coercitivamente. Mesmo que Moro não tivesse dito que NÃO (e disse), ainda assim não poderiam usar.

    Há de ter um Tribunal neste país que barre esse tipo de autoritarismo e ilegalidade. O filme está quase pronto. Se for lançado e isso não tiver sido resolvido, estaremos em face do “fator tortura do medievo”: uma vez torturado, adianta ganhar o recurso se o ferro quente já lanhou o lombo do vivente?

    Será que ainda há juízes em Berlim? Porto-me, aqui, como o Moleiro de Sans Souci (ver vídeo Direito & Literatura (https://youtu.be/UaqSCsYh07o);  não é longo; podem olhar). O Imperador Frederico pode tudo ou pensa que pode tudo. Mas, como disse o pobre Moleiro, não tiro o meu moinho daqui nem a pau, Juvenal (essa parte do “nem a pau Juvenal” parece que não consta na frase original do Moleiro — não sou cineasta, mas faço minha licença poética). O Moleiro tinha certeza que, mesmo contra o poder despótico do Imperador da Prússia, haveria de ter um juiz que lhe daria razão. Bingo para o moleiro. Esse moleiro deveria vir ministrar aulas nas faculdades de Direito de Pindorama.

    Enfim, a literatura sempre corre à frente do Direito. Por exemplo, as decisões de Moro parecem a manifestação do personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, de Lewis Caroll. Ali ele, o personagem Humpty Dumpty, dá às palavras o sentido que quer. Para quem não leu: discutindo sobre o papel do “desaniversário”, Humpty Dumpty diz para Alice que é melhor que haja 364 dias destinados ao recebimento de presentes — que são os desaniversários — e somente um de aniversário. É a glória para você, aduz Humpty, pois poderá receber, em vez de um, 364 presentes. Ela responde: mas isso não pode ser assim. E Humpty Dumpty complementa: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Como consta no livro, é o fim “demolidor” de uma discussão.

    Por isso, feliz desaniversário, Dr. Sergio Moro. Afinal, mesmo que hoje não seja o seu aniversário (que, como sabemos — e é também o meu caso — só ocorre uma vez por ano), podemos comemorá-lo em qualquer dia dos outros 364. Afinal, as palavras valem o que queremos que elas valham, certo?

    Mundo, mundo, vasto mundo; se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima… mas não seria uma solução, dizia Carlos Drummond de Andrade. Nem vou falar do juiz Azdak, do livro O Círculo de Giz Caucasiano, também adaptável à situação. Mas o texto ficaria longo e nestes tempos de pós-verdades, isso afasta o leitor, que gosta mesmo é de drops. De todo modo, para quem quiser, eis o vídeo do programa Direito & Literatura (https://youtu.be/UaqSCsYh07o).
    Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: http://www.streckadvogados.com.br.

    Revista Consultor Jurídico, 30 de março de 2017, 8h00

    Ministro da CGU critica prisões longas e vazamentos da operação “lava jato”

    PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
    Ministro da CGU critica prisões longas e vazamentos da operação “lava jato”

    1. Publicado em conjur.com.br
      22 de fevereiro de 2017, 20h23
      Por Felipe Luchete

    Responsável pelo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle (CGU), o ministro Torquato Jardim criticou, nesta terça-feira (21/2), alguns procedimentos da operação “lava jato”. O ministro listou problemas como as longas prisões provisórias, com duração de até 30 meses, e condenações sem provas, já reconhecidas pela Justiça. Ao comentar a operação, ele afirmou ainda que vazamentos seletivos geram “nulidade absoluta” de processos.
    Torquato Jardim apontou que TRF-4 derrubou condenações de executivos por falta de prova, e não diferente interpretação de norma.
    Felipe Lampe/Divulgação
    Para Torquato Jardim, o pretexto de chegar à ética na política não pode descumprir princípios fundamentais nem abandonar o princípio do in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu).

    A uma plateia de advogados, na noite de terça-feira (21/2), em São Paulo, o ministro afirmou que a operação tem como desafio encontrar “equilíbrio entre o bem jurídico a ser tutelado e os meios [que utiliza] para chegar até lá”. As declarações foram feitas durante reunião promovida pelo Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados).

    Sem citar nomes, ele disse que conduções coercitivas só fazem sentido contra quem se recusou a cumprir ordens judiciais. A prática é comum na “lava jato” — foram mais de 180 — e ganhou repercussão quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi levado à Superintendência da Polícia Federal em São Paulo, há um ano. “Quem colocar isso [a possibilidade de condução coercitiva] numa prova de magistratura está reprovado. Não pode”, afirmou o ministro no evento.

    Jardim também não citou o nome do juiz federal Sergio Fernando Moro, responsável pelas ações da operação na 13ª Vara Federal de Curitiba, mas criticou o fato de pelo menos dois executivos da OAS terem sido condenados sem provas. Moro considerou improvável que quem assina um contrato de valor milionário não tenha conhecimento de irregularidades, porém esse trecho da sentença foi reformado pelo TRF-4, por falta de “indícios mínimos”. “Não foi nem interpretação de norma. É falta de prova, essência da ordem constitucional”, disse o ministro.

    Segundo ele, prisões antes de qualquer condenação só são necessárias quando há efetivo prejuízo à instrução penal, como ameaças a testemunha ou fuga. Medidas alternativas também têm eficácia, disse: “Se colocar tornozeleira eletrônica, tirar o passaporte e avisar a polícia da fronteira, [o investigado] vai fugir para onde? Goiás Velho?”, questionou, fazendo referência à terra de onde vem sua família.

    Ainda de acordo com Torquato Jardim, o ministro Teori Zavascki (morto em janeiro, na queda de um avião) havia confidenciado preocupação com “falhas técnicas” em denúncias do Ministério Público Federal.

    Tentativas de leniência
    Apesar das manifestações, o ministro já declarou em entrevistas anteriores que o governo Michel Temer (PMDB) apoia o andamento da “lava jato”. Jardim reconheceu nesta terça que ainda seguem sem resultado prático as tentativas de fechar acordos de leniência com consenso de diferentes atores — o próprio ministério, a Advocacia-Geral da União e o MPF.

    Um dos motivos do impasse é que cada instituição envolvida aplica a leniência de determinada forma: a Controladoria-Geral da União (termo que o ministro ainda utiliza) pode abrandar multas ou atenuar a proibição de que a empresa envolvida feche novos contratos com a administração pública, enquanto a AGU tenta ressarcir os cofres públicos e o MPF quer responsabilizar os envolvidos.

    Questionado pela revista eletrônica Consultor Jurídico, ele manifestou-se contra as cláusulas em que procuradores da República tentam repassar a órgãos responsáveis pela investigação até 20% do valor das multas pagas pelas empresas. Jardim disse que essa condição ainda vem sendo discutida, mas concorda com posição do ministro Teori – uma decisão do ano passado proibiu a medida, por considerá-la sem justificativa legal.

    Moro, Polícia Federal e a possível artimanha nas prisões temporárias

    Que as justificativas para as prisões eram todas semelhantes independentemente da situação específica de cada acusado até eu, que sou muito mais bobo, já havia percebido. Chamei a isto de pretextos “copia-e-cola”.

    Trata-se de um texto para discussão escrito pelo jurista Afrânio Silva Jardim. Se confirmadas as desconfianças do autor, trata-se de fato muito grave, a exigir ação exemplar do Conselho Nacional de Justiça.

    Leiam e tirem suas próprias conclusões.

    Paulo Martins

    AGORA  PERCEBI UMA ESTRATÉGIA ILEGAL DA “OPERAÇÃO LAVA-JATO” PARA TENTAR LEGITIMAR ALGUMAS PRISÕES.

    A estratégia seria esta: a polícia federal representa pela prisão preventiva do indiciado e o juiz, mostrando não ser tão severo, decreta a prisão temporária, que é menos gravosa.

    Como não estão presentes os requisitos da prisão temporária (cito abaixo), o juiz Sérgio Moro invoca a regra do art.312 do Cod.Proc.Penal e trabalha com os requisitos da prisão preventiva. Forçando a mão, ele se utiliza dos conceitos indeterminados previstos na lei: “garantia da ordem pública”, “conveniência da instrução criminal” e “assegurar a aplicação da lei penal”.

    Mesmo assim, ele não aponta as condutas ou fatos concretos que justifiquem a custódia cautelar, mas, de qualquer forma, consegue disfarçar a legalidade da medida coercitiva, pois fundamenta a sua decisão com base em requisitos genéricos. Para a prisão temporária, o legislador foi preciso e objetivo. Confira abaixo.

    Desta forma, como os indiciados têm identidade certa e residência fixa, ele teria de afirmar que as prisões seriam “imprescindíveis” para as investigações do inquérito policial, o que não teria qualquer pertinência nestes casos. Para a prisão temporária, o requisito é claro e objetivo e o magistrado não teria como contorná-lo …

    Como dizer que a prisão do ex-ministro Palocci seria imprescindível, se os fatos são muito antigos e as investigações estão ocorrendo, ao longo de anos, com ele em liberdade?

    Mesmo que se admita uma “fungibilidade” entre as duas espécies de medidas cautelares, torna-se imperioso que estejam presentes os requisitos legais da prisão que venha a ser, ao final, efetivamente decretada. É até mesmo intuitivo.

    Note-se, por derradeiro, que a DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA SÃO UNÂNIMES EM DIZER QUE NÃO SE EXIGEM TODAS AS TRÊS HIPÓTESES PREVISTAS NOS INCISOS ABAIXO. É NECESSÁRIA A HIPÓTESE DO INCISO III (prova de autoria ou participação em um dos crimes graves elencados) e MAIS A HIPÓTESE DO INCISO I OU O INCISO II).

    Vale a pena repetir e esclarecer novamente: ALÉM de prova de autoria ou participação em um dos crimes graves elencados pelo legislador, a lei especial exige também, para a caber a prisão temporária, que o indiciado não tenha residência fixa ou não forneça elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade ou ainda seja a prisão imprescindível para as investigações do inquérito policial.

    Vejam como estão previstos, na própria lei, os requisitos da prisão temporária, que, habilmente, acabam não sendo considerados … Artimanha ilegal, dotada de certa dose de cinismo.

    LEI Nº 7.960, DE 21 DE DEZEMBRO DE 1989.
    O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
    Art. 1° Caberá prisão temporária:
    I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;
    II – quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;
    III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:
    (segue então uma grande enumeração de crimes, que não cabe aqui examinar).
    (segue então uma grande enumeração de crimes, que não cabe aqui examinar).

    Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual da Uerj. Mestre e Livre-Docente em Direito Proc.Penal (Uerj).

    Temer e Moro: estratégias conformes para controle da Lava Jato

    Muita gente desconhece que o juiz Sérgio Moro escreveu em 2004 um artigo intitulado “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, publicado na Revista CEJ, do Centro de Estudos Judiciários, de jul/set. 2004.

    A estratégia do núcleo responsável pela Operação Lava Jato formado pela força-tarefa do Ministério Público, pela Polícia federal e pelo juiz Sérgio Moro está claramente delineada neste artigo.

    Minha tese é que a estratégia de Moro está conforme com a estratégia do governo Temer, dos meios de comunicação oligopolizados e dos partidos políticos amigos e que há um grande acordo tácito para limitar a Lava Jato  a determinados partidos e atores. A Lava Jato, tal como concebida pelo juiz Moro e explicitada em seu artigo, não tem força suficiente para ampliar a sua atuação e atingir a imprensa e os partidos amigos, da qual é refém.

    Quase todos os atos reprováveis praticados pela Lava Jato estão confessados  e justificados no citado  artigo do juiz Moro.

    Os principais pontos da estratégia do núcleo operativo da Lava Jato mencionados no artigo são:

    • Deslegitimação da classe política;
    • adoção, desde o início do inquérito, de uma estratégia de investigação que submete os investigados e suspeitos à pressão para confessar;

    • ganhar para a magistratura – na Itália, a magistratura inclui o Ministério Público e os magistrados – uma espécie de legitimidade direta dada pela opinião pública;

    • fazer prisões preventivas, manter o investigado em isolamento e fazer interrogatórios separados;

    • realizar vazamentos sobre confissões, delações ou documentos apreendidos para jornais e revistas simpatizantes da operação;

    • municiar a imprensa com constante fluxo de revelações para manter o interesse do público elevado e os políticos visados na defensiva;

    No artigo o juiz Sérgio Moro considera os ritos necessários para prisão, adotados na Constituição Federal e no Direito Penal nacional, como um “excesso liberal”.

    Sem as prisões arbitrárias, falsas, baseadas em um conjunto de pretextos  “copia e cola”, desmoronaria a estratégia do núcleo responsável pela Lava Jato, confessada no artigo em comento.

    Levar os presos para Curitiba faz parte da tática de intimidação dos suspeitos estrategicamente selecionados.

    O núcleo operador da Lava Jato tem um quebra-cabeça já montado, preenchido sem provas, com os futuros condenados já selecionados. Sua atuação, com a estratégia delineado no artigo, visa formar convicção para condenar  atores previamente selecionados, sejam culpados ou não. Não havendo provas, servem indícios, ligação de pontos, ilações, pauerpointes e delações torturadas.

    Considero o artigo uma confissão da utilização de métodos de tortura, da procura por uma “legitimidade direta” obtida nas ruas ao atropelo da Constituição e da manipulação midiática com criminosos vazamentos seletivos para órgãos selecionados.

    O juiz Moro reconhece que “há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado”. Menciona o caso do político italiano Giulio Andreotti, líder da Democracia Cristã e ex-primeiro-ministro, processado pela Procuradoria de Palermo em 1993 e absolvido. Nas suas palavras:

    “O fato é que Andreotti, seja ou não culpado, foi, mais recentemente e após várias decisões e apelos, absolvido das acusações por falta de provas”.

    Ora,  como um juiz, ou qualquer operador da justiça, pode ainda considerar alguém culpado – “seja ou não culpado”- se esta pessoa foi absolvida?

    Não conheço a situação específica de Giulio Andreotti nem colocaria a minha mão no fogo por ele. Mas, a realidade é que os processos contra ele tramitaram na justiça e ele foi absolvido. Para considerá-lo ainda culpado, mesmo após os julgamentos, o juiz Moro deveria apresentar em seu artigo informações sobre as provas que o levaram a duvidar da decisão da justiça italiana.

    Fascistas são assim. Têm interpretação própria e personalista dos conceitos de direito e justiça. Suas convicções contra o investigado permanecem mesmo após trânsito em julgado de sentença absolutória.

    Já tivemos, na operação Lava Jato, a citação na grande imprensa amiga e a prisão indevida de diversos inocentes.  Suas imagens foram denegridas e carreiras arruinadas, sem que isso causasse qualquer preocupação no Juiz Moro, no Conselho Nacional de Justiça ou na instância máxima de julgamento e condenação no Brasil: a mídia amiga.

    Estou escrevendo este artigo e observando o espetáculo da prisão do ex-ministro Antônio Palocci. O modo de operação segue exatamente o roteiro predefinido pelo juiz Moro. O advogado de defesa de Palocci reclama que não sabe quais são as acusações que pesam sobre o seu cliente. O processo continua absolutamente sigiloso, até para a própria defesa. Mas a imprensa amiga já foi previamente municiada com vazamentos seletivos e já houve uma sessão de acusação – entrevista coletiva dos procuradores da força-tarefa – sem a possibilidade de defesa.

    Em sua confissão no artigo em análise, o juiz Moro esqueceu-se de citar outras importantes táticas de sua estratégia ilegal:

    • Manter o processos em sigilo sem dar acesso à defesa;
  • selecionar cuidadosamente os partidos e os políticos que serão investigados;

  • selecionar as delações que serão consideradas válidas e aceitas;

  • definir critérios sigilosos para aceitação de delações.

  • Esta tática de centrar as investigações em poucos partidos e em determinado grupo de políticos em vez de prender e forçar a delação de todos os suspeitos já citados, de todos os partidos, visa manter o apoio da mídia amiga, que tem os seus partidos protegidos, de estimação.

    Como bem observou o juiz Moro em seu artigo: “os responsáveis pela operação mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa.” … “a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial”.

    Assim, melhor manter felizes a Rede Globo, a Veja, a Istoé, a EXAME, a FSP,  o Estadão, etc… , os políticos, ministros e o presidente da república, que garantem a sobrevivência destes veículos com renovação das concessões, isenções tributárias, desregulação, vistas grossas para sonegações, assinaturas desnecessárias  e empréstimos públicos generosos.

    Pode anotar: no conluio entre a mídia amiga e os partidos políticos ADA – Amigos dos Amigos, Moro não mexerá. Se mexer, a base sobre a qual assenta sua operação Manipule desmorona e a operação termina.

    Pelas últimas notícias da imprensa fica claro que o ministro da justiça de Temer já controla os passos da Lava Jato. É bem-vindo. As estratégias, suas e da Lava Jato, se complementam. Nem a GolpeNews conseguiu negar.

     

    Vox mídia, Vox Dei

    No período de 2005 a 2008 cursei, já aos 54/56 anos, metade do curso de Direito. Tive oportunidade de cursar, com extrema dedicação, Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e, obviamente, Direito Penal. A Declaração Universal dos Direitos Humanos está recepcionada pela Constituição Federal de 1988 e seus princípios mais importantes estão explicitamente inseridos na CF.

    Esta introdução foi necessária para mostrar que meu respeito à Constituição, às liberdades (em seu sentido verdadeiro e mais profundo) e à profissão dos operadores de direito – juízes, advogados e todo pessoal envolvido no processo de administrar justiça, um direito humano fundamental – não é recente. Não sou um novo democrata, um novo indignado on-line ou um neo-caçador de marajás ou de corruptos. Não sou, também, neo-patriota, nem neo-nazista. Hoje, estamos com inflação de sonegadores e espertos do dia-a-dia tornados, subitamente, santos, cruzados anti-corrupção.

    Saímos, muitos  brasileiros, traumatizados pela ditadura e com uma lei de anistia ditada, como se faz em ditaduras, que ficou atravessada na garganta da nação. Saímos da ditadura mas a ditadura continua entranhada em muitos. Misturou-se ao sangue, faz parte do DNA.

    A grande mídia, cúmplice e conivente, saiu premiada pela ditadura, com concessões de estações de rádio e de emissoras de TV. Como sairão premiados todos os delatores da Lava Jato. No Brasil, delator tem tapete vermelho, olhares de admiração. Aqui o crime compensa, desde que você tenha acesso a caríssimos advogados especializados em delações premiadas bem formatadas e vantajosas. Delações sem provas, com nexos de causalidade, tipicações e culpabilidades espúrias, vagas …

    A constituinte, e seu resultado, a Constituição de 1988, apesar dos seus defeitos, representariam, acreditávamos então, um remédio contra os golpes e ditaduras. Ledo engano.

    Fico surpreso de ver os argumentos estafúrdios a justificar as conduções coercitivas de inimigos investigados e as prisões com justificativas ralas para forçar delações premiadas.

    Não tenho acesso privilegiado aos detalhes dos processos instaurados no âmbito da operação Lava Jato. Só os cúmplices têm. Estes processos são vazados para a mídia empresarial e divulgados com estardalhaço, de forma parcial e seletiva, com objetivos que estão claramente predefinidos: dar um golpe de estado e assumir o poder.

    Tenho acompanhado, na medida do possível, as justificativas para prisões arbitrárias e conduções coercitivas. Na ausência de provas claras utiliza-se do recurso da condenação pela opinião pública: se muitos acreditam depois de grande bombardeio midiático que alguém cometeu um crime, então deve ter cometido mesmo. Vox mídia, Vox Dei.

    Vamos invadir seu lar às 6:00 horas da manhã e vasculhar sua residência, arrombar portas, violar seus computadores e suas contas bancárias para ver se encontramos as provas que possam confirmar a prévia condenação pelo ouvido. As justificativas do Ministério Público ao solicitar prisões e conduções coercitivas, bem como as decisões do juiz Moro, são verdadeiros copia e cola.

    Apresentamos, a seguir, vídeo com entrevista do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, condenando as conduções coercitivas praticadas no âmbito da operação Lava Jato. Notável observar a cara de ….. dos entrevistadores quando confrontados com o claro e firme posicionamento do ministro. Vale a pena observar, ainda, a cara do um apresentador reserva de uma emissora de São Paulo cujo nome me foge neste momento.

    O segundo assunto, também associado a este artigo, refere-se ao interrogatório de uma testemunha da acusação na 24a. fase da Lava Jato, cujo foco indisfarçável é incriminar o ex-presidente Luiz Inácio da Silva – Lula. O Ministério Público solicitou e o juiz Moro autorizou a citação de uma testemunha. Por engano, convocaram a testemunha errada. Um capoteiro de Belo Horizonte. Devem ter visto correlação entre a profissão de capoteiro – faz capotas e estofados para carros – e a operação Lava Jato. “Teoria da culpabilidade por similaridade de objeto”. Kafka é pouco … Mussoline também.

    Antes que alguém argumente que o capoteiro foi convocado a prestar depoimento como testemunha da acusação, respondo que este é o modus operandi da operação Lava Jato. Para ele sair de lá preso por estar omitindo informações seria apenas um passo, ou melhor, um texto copiado e colado, de três linhas, com uma assinatura eletrônica do juiz.