A Constituição, o Supremo e a voz das ruas, por Lenio Streck

Por Lenio Luiz Streck

Tempos interessantes estes em que vivemos: tempos em que o clamor social é capaz de afastar a densidade principiológica da Constituição que lhe dá sustentação. Tempos em que a “voz das ruas”, seja lá o que isso signifique, é capaz de dizer que, onde está escrito x, deve-se ler y.

Em países como nosso, uma visão de uma “realidade social” que vem para substituir a Constituição e sua força normativa é uma temeridade. Porque, quando a voz das ruas vale mais que a Carta Maior, viramos uma espécie de democracia plebiscitária. E essa democracia plebiscitária, por sua vez, acaba por validar um Judiciário plebiscitário.

Afinal… O que é isto — a voz das ruas? Quando um ministro do Supremo diz “Estou atendendo ao anseio popular”, “Temos de ouvir a voz das ruas”, eu estarei aqui para dizer “Alto lá! Como se afere isso? Como se determina e mede a voz das ruas? Tem uma pesquisa?”.

“A-há! Pegamos o professor Lenio”, alguém dirá. “Temos uma pesquisa.”

Bom, se a resposta for “sim, há uma pesquisa”, aí, paradoxalmente, o Judiciário não precisaria existir. A tese da voz das ruas torna o Judiciário autofágico. Porque se o anseio popular vale mais que a Constituição, caímos em um paradoxo: uma vez que podemos demonstrar o que pede o anseio popular, que vale mais que tudo, o Judiciário passa a ser dispensável.

Na verdade, nestes 30 anos da Constituição, ainda há um déficit considerável acerca do verdadeiro papel do rule of law. As faculdades de Direito colaboraram enormemente para que o ensino do Direito viesse a ser substituído por péssimas teorias políticas do poder. Resultado: na hora em que precisamos de resistência constitucional, o debate é tomado por posições ideológicas, em que soçobra(ra)m as garantias constitucionais.

Quando um magistrado diz que julga “conforme sua consciência” ou julga “conforme o justo” ou “primeiro decide e depois vai encontrar um fundamento” ou ainda “julga conforme os clamores da sociedade”, é porque está repetindo algo enraizado no imaginário jurídico. É o velho dualismo metodológico que volta. E, naturalmente, um comportamento que se naturaliza leva muitos anos para “desnaturalizar”. Transforma-se em dogmática, eliminando o tempo e as coisas (cronofobia e factumfobia). E o que ocorre é que não queremos admitir que ideologizamos — para usar uma palavra suave — a aplicação da lei no país.

A comunidade jurídica está em insolvência epistêmica. Fracassamos, porque não conseguimos contrapor ao dualismo uma coisa minimamente óbvia, obviamente mínima: Constituição é remédio contra a maioria. Um Supremo Tribunal não pode atender à “voz das ruas”, porque, entre o clamor das ruas e da Constituição, vale o ronco da Constituição. Ora, nenhuma democracia no mundo se fortaleceu com questões sazonais.

Resumindo: se for verdade que o Judiciário (em especial, o STF) deve ouvir a voz das ruas e até existir pesquisa indicando isso, temos a seguinte questão: se a tese é boa, é ruim. Por uma simples razão: se a voz das ruas pode ser mensurada e deve ser levada em conta, já não precisa(re)mos do Judiciário. E a Constituição se torna desnecessária.

Via Dalva Olliver

Rancho da Goiabada: doze milhões de famintos

Vou repetir: doze milhões de famintos. Doze milhões de famintos. Doze milhões de famintos … PQP, doze milhões de famintos!

Quase quatorze milhões de desempregados. Quase quatorze milhões de desempregados. PQP, quatorze milhões de desempregados!

Vinte e três mihões de “sevirantes”. Vinte e três milhões de “sevirantes”. A máfia da mídia os chama pomposamente de “empregados por conta própria”. A mão direita assina o seu contrato de emprego como empregadora e a mão esquerda assina este mesmo contrato como empregado. O ‘sevirante” trabalha o mês todo sem direito ao pagamento das despesas de transporte e alimentação e, ao final do mês, o empregador, sua mão direita, enfia a mão no bolso direito e tira o dinheiro para pagamento do mês de trabalho. Sua mão esquerda recebe, conta, e enfia o dinheiro em seu bolso esquerdo. “Empregado por conta própria”. Premiado. Está empregado e não tem patrão.

São bóias-frias. Burros-sem-rabo. Camelôs. “Moradores” de rua. Fogueteiros. Aviões. Gerentes. Assaltantes. Flanelinhas. Guardadores de lugar na fila do INSS. Guardadores de celular na fila do Consulado norte-americano. Vendedores de balas nos sinais. Limpadores de vidro de carro. Malabaristas de sinal fechado. Mendigos de chão de calçada. Pedintes de porta de bancos.

“Sevirantes”.

A tomada do poder mediante um reles artifício teve este exato objetivo: adotar um plano econômico que não teria a menor possibilidade de ser aprovado nas urnas. O estado mínimo e a miséria máxima, o outro lado desta moeda, implantados na marra, goela abaixo. Pós-golpe.

O investimento público quase zerado. Não cobre nem os custos de depreciação, ou seja, estão destruindo bens de capital. Bens de capital são aqueles necessários à produção de novos bens. Se não se repõe, mediante novos investimentos o que se perdeu, como pensar em futuro?

Desempregados eternos. “Sevirantes” para sempre

E, apesar de tudo, de toda a recessão planejada, a relação dívida/PIB dispara. Resultado mais do que óbvio da adoção da política de recessão. Nós avisamos. Os economistas não envolvidos no golpe avisaram. “Austericídio” à la grega.

Um país que encolhe, empobrece, será, mais adiante, ruim para todos. Até para quem abandonou o barco e virou “sevirante” em Nova York, Miami ou Portugal.

O rancho da goiabada.

Paulo Martins

QUEM SE COMOVE COM A PRISÃO DE LULA?
E COM OS DADOS DO DESEMPREGO?

Por Gilberto Maringoni

Quantas pessoas estão revoltadas com a prisão de Lula? Quantas estão desoladas? Quantas outras estão espantadas?

Não sei. Talvez a minha bolha virtual e outras semelhantes, mais alguns conhecidos e amigos pelo Brasil? A esquerda, num sentido amplo? Quanto dá isso? Dez mil pessoas? Cem mil? Um milhão? Dois?

Não sei e não penso que seja isso o mais importante. O importante é verificar que, três semanas depois da prisão, os que alegam terem vencido o ex-presidente agora – às vésperas do 1o. de Maio – apresentam seus feitos. Suas realizações. Seus troféus!

Eles estão aí, repetidos pelas redes:

A. O número de desempregados em todo o Brasil, no primeiro trimestre do ano, alcança 13,7 milhões de pessoas. Dados do IBGE.

B. A construção civil demitiu 280 mil trabalhadores em doze meses;.

C. O investimento público desabou. Todo o setor público, união, estados e municípios investiram 1,17% do PIB, o menor patamar em meio século. Investimento público, como se sabe, é a construção do futuro.

D. Um país em acelerado processo de degringolada social e desesperança.

A prisão de Lula em si é uma injustiça, uma fraude jurídica e um atentado á democracia. Mas não é – desculpem – o centro dos dramas do país.

O centro dos dramas do país é a catástrofe social que se avizinha.

A prisão de Lula tem potencial politicamente explosivo se as pessoas perceberem que ela está conectada direta e objetivamente ao programa e aos resultados do golpe. Quando escrevo pessoas, devo completar: dezenas de milhões de pessoas.

É um tapa na cara: prenderam o Lula dizendo que iam consertar o país e o resultado está aí! Os que o prenderam são os mesmos que arrebentam com a renda e destroem o emprego. E comprometem nosso futuro.

Parece fácil o vínculo, mas não é. Ainda é abstrato para um enorme contingente de brasileiros e brasileiras.

Mas é tão eloquente que, mais cedo ou mais tarde, os dois processos aparentemente desconectados se juntarão na cabeça de todos.

Será assim ainda neste ano em que a CLT completa 75 anos e a carta de 88 apaga trinta velinhas!

Uma bomba atômica social está em processo de montagem. Ela precisa ser direcionada contra os de cima.

Até quando vamos suportar essa farsa toda? Por Gilson Caroni Filho

Nos morros e periferias de todas as cidades brasileiras nunca houve democracia. Sequer o reconhecimento da própria condição humana os seus moradores tiveram.
Democracia no Brasil, gente boa e bronzeada das praias e jardins, sempre foi um pacto restrito entre burguesia subalterna, oligarquias e frações seletas da classe média.
A violência só é percebida quando atinge as zonas nobres, aquelas que, ao contrário dos lugares onde habitam os invisíveis, o dia a dia não é vivido sob fuzis e extermínios diários.
Aí vem o clamor contra a violência.
Parem com isso. O medo é real, mas o discurso é cínico. A insegurança não é combatida com Forças Armadas, que nem treinadas para isso foram. Muito menos com incitamentos fascistas ao ódio.
A danação de todos nós só será enfrentada de fato quando os ” cidadãos de bem” abrirem os ouvidos para a polifonia de gritos que sempre fingiram não escutar.
Quando se derem conta de que a desigualdade social é mãe da violência do tráfico, dos milicianos e de policiais que se alternam nos três papéis.
O mesmo vale para o apreço ao regime democrático: quanto mais cidadania, menores as chances de golpes acontecerem em intervalos tão curtos de tempo. Marielle, e com ela várias outros, sabiam disso.
Pagaram um preço caro e tiveram suas narrativas reescritas pela mídia corporativa. Até quando vamos suportar essa farsa toda? Pior, até quando vamos legitimá-la, prezados cidadãos que moram no espelho de Alice?
Por Gilson Caroni Filho

Via João Lopes

Delírio nacional, uma reflexão sobre a irracionalidade e a loucura, por Márcia Tilburi

Delírio nacional, uma reflexão sobre a irracionalidade e a loucura.
Marcia Tiburi
25 de Abril de 2018

Discursos irracionais por todo lado. Ideias estapafúrdias provenientes dos mais diversos personagens na cena pública. Mentiras deslavadas nos meios de comunicação de massa. Fundamentalistas religiosos a dominar o poder político e econômico com posturas e falas cínicas. Tribunais em gambiarras teóricas a rasgar pomposamente a Constituição.

Falas sem sentido, jargões e clichês de cidadãos comuns que seguem a opinião dos personagens políticos e midiáticos e se expressam pateticamente no cenário das redes sociais, nas ruas, nos mais diversos ambientes. Juras de morte. Apologia do ódio, proposições de caos nos chamados em nome da ordem. Preconceitos tomam o lugar do respeito devido a cada pessoa. Hoje é condenado sem crime e sem provas, aquele que antes era sujeito de direitos. Injúrias, calúnias difamações. O ódio na base dos discursos de conspurcação generalizada. A verdade descartada como uma embalagem plástica na era do descaso ecológico-político. O desrespeito reinante na vociferação paranoica nas ruas e redes.

Se de um lado, os interesses por trás desse estado de coisas são evidentes, há mais que isso. Há algo de estranho no ar. É o caso de voltar a Freud e lembrar do que ele chamou de “estranheza inquietante”. O clima de terror que sai das páginas de ficção e das telas e toma a vida real. Pessoas comuns ainda preocupadas com o que veem, buscam explicação em seriados de TV, mas não conseguem mais separar a realidade da ficção. Os livros são esquecidos nos tempos das telas a prometer a verdade possível. Filosofia e sociologia descartadas do currículo escolar pelo governo e por cada cidadão que se une ao coro dos que desvalorizam a educação. O pensamento pronto embalado para viagem toma conta.

Mergulhado na zona cinzenta do imponderável, muitos se sentem reféns de um destino funesto. E é sob o domínio sombrio do medo elevado à Razão de Estado que o surgimento do mais básico bom senso está de fato impedido.

Delirar

As pessoas se entregam a algo de desesperador. Tornam-se agentes do desespero. A irracionalidade toma conta e a sociedade inteira entra em estado de delírio. Por delírio entendemos uma narrativa imaginária que tem uma função importante na economia psíquica de algumas pessoas. No nosso caso são muitos, são massas inteiras. Podemos dizer que, atualmente o Brasil anda bem descompensado emocionalmente. É urgente recuperar a “razoabilidade” antes que a cena evolua para o pior. Mas teremos força para isso?

Delírio não é apenas uma categoria psiquiátrica, antes é uma categoria filosófica e política. Um termo que, nesse momento, pode nos ajudar a desenvolver uma consciência acerca do que se passa conosco como sociedade.

O delírio generalizado parece ter se acentuado desde o Golpe de 2016, quando algumas pessoas que se expressam publicamente começaram a dar sinais de terem “enlouquecido”. Devemos sempre tomar o cuidado de não usar o termo loucura de maneira preconceituosa.

Eu mesma disse na época do Golpe, quando algumas pessoas, sobretudo mulheres envolvidas no Golpe começaram a ser tratadas como loucas, que não devíamos alegar loucura da parte de quem se expressava a partir de preconceitos ou de tracos fascistas. Comentei isso a propósito do fato de o signo “mulher” ter sido historicamente associado ao signo “loucura” no contexto dos discursos misóginos. De fato, ser homem ou mulher, assim sem mais, não tem nada a ver com loucura. E é preciso, no entanto, lembrar de algo bastante óbvio: o gênero de uma pessoa também não interfere no fato de que alguém se torne fascista, racista ou machista.

Tudo isso para dizer que, infelizmente, evoluímos como coletivo para um lugar cada vez mais perturbador e o cenário hoje nos permite usar o termo loucura no sentido de busca por uma reflexão capaz de perceber a força da irracionalidade nesse momento.

Portanto, não devemos confundir as coisas, mas é um fato que o termo loucura pode ser adequado para falar desse momento no qual os traços de fascistização se intensificam tanto nas instituições quanto na microfísica do cotidiano e na forma de pensar, falar e agir de muita gente.

Loucura é, nesse caso, um termo válido se nos lembrarmos seu nexo com o delírio. Loucura implica um conceito amplo, usado desde há milênios para designar siderações de todo tipo. Nessa definição a loucura é caracterizada pelo estar-fora-de-si. Esse “estar-fora-de- si” nem sempre caracteriza uma doença mental e nem sempre implica sofrimento. A loucura de nossa época está em que estamos tomados por todo tipo de delírio e sobretudo pelo paranoico.

O sujeito paranoico – aquele que poderia ter se tornado um filósofo, mas não conseguiu – em geral não sofre. Ele sente raiva e ódio. Não a raiva e o ódio que qualquer pessoa pode sentir de vez em quando, mas um ódio que é estrutural e fundante da sua personalidade. Um ódio que está na base profunda da sua vida subjetiva. Um ódio de extermínio, um ódio de aniquilação. Um ódio inquestionável. Um ódio ao qual a pessoa está de tal modo acostumada à paranoia que não é capaz de reconhecê-lo ou, caso o reconheça, não é capaz de viver sem ele. Um ódio que impede a entrada do “outro” em sua vida, seja esse outro uma pessoa, uma cultura, um conteúdo, a natureza, ou até mesmo o amor que, como energia contrária, poderia ajudar a amenizar o ódio. A diversidade que prefigura esse outro qualquer é insuportável e inacessível ao paranoico e, no delírio, ele constata que o mundo lhe pertence. Nele, as pessoas e realidades não passam de um objeto seu, de uma coisa com a qual ele faz o que quiser.

Somos levados à loucura pelo fascismo em potencial que convida a todos hoje para o jogral do discurso de ódio nas redes sociais. Seu objetivo é cancelar a reflexão, interromper o direito básico das pessoas ao pensamento lúcido que faria a “espécie” sobreviver. Se o governo opera nesse momento retirando as disciplinas de filosofia e sociologia do currículo básico, sendo que outras disciplinas já tinham sido retiradas, é porque, no fundo opera na orquestração da destruição generalizada. Para usar termos freudianos conhecidos, a destruição é a lógica quando a sociedade estregue à “thanatos”, o princípio de morte. Quando essa sociedade abomina eros, o princípio da vida.

O projeto fascista combina com o neoliberalismo como projeto de destruição da sociedade baseada no princípio de morte. Destrói-se a democracia, o estado democrático de direito e a Constituição, o Estado de Bem Estar Social com o qual se sonhava um dia. Destrói-se inclusive o capitalismo produtivista para dar lugar ao capitalismo puramente financeiro, o chamado “rentismo”.

Engana-se quem acredita que a economia vai tomar o lugar da política em nome de um mundo melhor. Esse é o núcleo da teoria do que muitos vem chamando de “pobre de direita”, um termo que resume a contradição sadomasoquista por meio da qual a vítima ama seu algoz.

Já não é a economia que suplanta a política, mas a destruição da economia e da política ao mesmo tempo. O objetivo do projeto de acumulação desembestada do capital, haverá um único cidadão, o avarento usurário, dono de tudo, sozinho, satisfeito em seu delírio paranoico.

Esse projeto se inicia pela matança por meio da fome, pelo descaso e pelo assassinato dos muito pobres e dos pobres, e dos cidadãos historicamente condenados à pobreza e marcados como “negros” pelo capitalismo. Mas na sequência, esse projeto de destruição atinge todas as classes e todas as peles no devir negro do mundo ao qual se referiu Achille Mbembe.

Sobreviverão os que conseguirem acumular capital. Mas quanto? E até quando? E por quanto tempo se não há nenhum projeto econômico e político que seja capaz de frear o avanço da desigualdade?

O delírio generalizado é o delírio de grandeza fundado pelo capitalismo, e leva a todos os que querem ser mais do que são a se engajarem nele. Todos os que tem delírio de grandeza nesse momento se sentem melhores do que os outros e se desresponsabilizam quanto ao rumo ao qual estamos nos conduzindo coletivamente, o da catástrofe social. Tomar consciência desse estado de coisas é o primeiro passo para traçar um projeto humano mais prudente que nos afaste do delírio e da loucura na qual sideramos em conjunto.”

LUTA DIÁRIA: UMA APRENDIZAGEM, por Ulysses Ferraz

LUTA DIÁRIA: UMA APRENDIZAGEM

Por Ulysses Ferraz

O golpe nunca esteve tão evidente. Não há mais conspirações subterrâneas. Nada sobrou a ser desvelado. Não há mais o que revelar. Está tudo aí. Pisado e repisado. Todos sabemos. O mundo inteiro sabe. Mas no Brasil de hoje ocorre um fenômeno curioso. Os fatos perderam valor. O que vale não são os fatos, mas o poder dos grupos que detêm o poder de fato. E o que surte efeito advém não dos fatos, mas das narrativas dos poderosos da vez. E de seus capatazes intelectuais. O óbvio se torna obscuro. No Brasil de hoje, um golpe de Estado é defendido como algo legal. Constitucional. Moral. Ético. É qualquer coisa que os golpistas engravatados afirmarem que é. Ainda que sem nenhuma argumentação razoável. Simples assim.

Diante de tamanho obscurantismo dotado de poder, nada mais resta a debater no campo da esfera pública. Nem a desvelar. Ou esclarecer. O golpe está nu. A verdade que todos sabemos não tem valor objetivo nenhum. Não serve para nada exceto para angustiar. Entristecer. Amargurar. Revoltar. Tornou-se inútil analisar os fatos. Argumentar. Raciocinar. Criticar. Ficamos reduzidos a exercícios escolásticos inócuos. Passamos o tempo a decifrar obviedades. Exercitamos a lógica em vão. Quando a hipocrisia se transforma em valor social dominante, a cegueira e o auto-engano coletivo se convertem em modo de vida. O ceticismo cínico corrói nossos ossos. Seca nossos cérebros. Endurece nossos corações. Esgota nossas forças.

Tudo o que sobra é o dever de lutar para honrar as conquistas democráticas consolidadas com o sacrifício de tantas gerações. É o mínimo que se pode fazer. E se a razão nada mais vale em um Estado já dominado pela exceção, o que resta é a fé. Fé na ação. Na luta. E com as forças que restam, lutar pelo que restou do Brasil. Mesmo sem saber como lutar. Nem exatamente o que fazer. E sem esperar resultados imediatos. Essa longa luta terá que ser na base da tentativa e erro. Um aprendizado diário de se aprender a lutar. Uma luta que só se aprende lutando..

Hoje Lisboa está cheia de cravos …

Publicado em Carta Maior

25/04/2018

Hoje Lisboa está cheia de cravos. Na Avenida desfilarão milhares de pessoas a celebrar um nome e uma condição de vida: Liberdade. Eu irei com o meu neto e sei que me vou emocionar por ir com ele. Hoje é 25 de abril, Dia da Liberdade. Dessa liberdade que o povo português reconquistou faz hoje precisamente 44 anos.

Foi “o dia inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio / e livres habitámos a substância do tempo”, escreveu a poeta Sophia de Mello Breyner. “Foi bonita a festa, pá”, cantou o Chico. Festa sim, porque Portugal ferveu de empenhamentos transformadores e de imaginações de futuro. Foi a mobilização dos trabalhadores, dos moradores de bairros pobres, das mulheres, dos intelectuais progressistas, foi a ocupação do espaço público pela denúncia dos mecanismos mais fundos do autoritarismo, da exploração e das discriminações, foi tudo isso que moldou a ambição da democracia portuguesa. O meu neto, nos seus seis anos e meio, não sabe disso. Talvez hoje, quando desfilarmos na Avenida da Liberdade, cada um com o seu cravo vermelho, eu lhe conte a história do meu avô que a ditadura de Salazar condenou ao degredo e à pobreza. Talvez ele perceba que a nossa festa de hoje teve vidas sofridas que a fizeram muito antes de ela acontecer. E que o que festejamos e o que reclamamos na festa de hoje é o fruto de um caminho em que fizemos escolhas entre caminhos divergentes.

Nestes 44 anos que Portugal leva de democracia, houve sempre uma tensão essencial entre um bloco social e político favorável a uma democracia que, para ser política, tem que ser social e económica também, e um bloco que sempre se bateu pela paragem da democracia às portas da economia e das relações sociais. O que vamos hoje celebrar aqui em Lisboa são, portanto, 44 anos da luta social, política e ideológica entre estes dois blocos. Essa luta mudou Portugal em muitos aspetos e foi incapaz de operar mudanças substanciais em vários outros. Como você sabe, o melhor que Portugal herdou dessa tensão, dessa disputa, foi não só o reconhecimento jurídico – o reconhecimento na pratica social é outra coisa… – de um elenco amplo de direitos civis e políticos, mas também de serviços públicos essenciais como o Serviço Nacional de Saúde (equivalente ao vosso SUS) e a escola pública. É por serem dois pilares cruciais de uma democracia avançada que o Serviço Nacional de Saúde e a escola pública têm sido alvo prioritário de ataque pelas forças conservadoras e pelos apetites liberais.

Vamos celebrar o 25 de abril quando em Portugal há uma solução governativa que abriu esperanças de mudança a muita gente, depois dos anos de chumbo das políticas de austeridade impostas pela Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional e que o Governo das direitas levou até patamares brutais. O Governo do Partido Socialista – representante da tradição social-democrata em Portugal – não existiria sem o apoio parlamentar dos partidos de esquerda (o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda). Não é uma coligação nem uma aliança, é uma prática de “cooperação tensa” entre as três forças. Ela parou o crescimento da agressão ao trabalho, parou as privatizações, começou a recuperar rendimentos para os mais pobres. Com este caminho foi a democracia nascida em abril de 74 que foi em alguma medida resgatada contra os que a fizeram regredir, inspirados pelos ideólogos da teologia do mercado e por uma elite financeira marcada por sucessivos escândalos de gestão ruinosa e de corrupção.

Mas a pressão dessa elite e desses ideólogos não desapareceu, obviamente. E a ortodoxia do défice zero da União Europeia é um aliado na sua luta contra o investimento em serviços públicos e em democracia económica e social. Por isso, a festa de hoje em Lisboa vai ser também um grito contra a cedência a quem quer que a democracia em Portugal seja pequena. E nesse grito gritaremos também pelo Brasil. Não será apenas um grito contra o fascismo que se insinua mas por uma democracia liberta da amarra do compromisso perverso com a elite financeira.
* José Manuel Pureza é Licenciado em Direito e doutorado em Sociologia, é professor universitário de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais

 

PROPRIETÁRIOS DA MÍDIA/Quem controla a notícia no Brasil? Por Olívia Bandeira e André Pasti

PROPRIETÁRIOS DA MÍDIA
Quem controla a notícia no Brasil?

ESPECIAL – PROPRIETÁRIOS DA MÍDIA | BRASIL
por Olivia Bandeira e André Pasti
Abril 16, 2018
Le Monde Diplomatique – Brasil

diplomatiqu.org.br

Negócios desenvolvidos pelos principais grupos de mídia brasileiros revelam potenciais interesses por trás das agendas dos meios. A pesquisa Monitoramento da Propriedade da Mídia no Brasil, publicada pelo Intervozes e pela Repórteres Sem Fronteiras, expõe que muitos dos veículos de maior audiência no país são também parte de grupos econômicos. Confira segundo artigo da série sobre os proprietários da mídia no Brasil

Os veículos de grande circulação costumam declarar em suas linhas editorais que buscam informar de modo isento, apartidário e plural. Alguns de seus manuais ainda advogam a necessidade de independência dos interesses de grupos econômicos e políticos e de separação entre conteúdo jornalístico e publicitário, notícia e opinião. No entanto, como apurou a pesquisa Monitoramento da Propriedade da Mídia no Brasil (Media Ownership Monitor – MOM),1 publicada pelo Intervozes e pela Repórteres Sem Fronteiras, muitos veículos de maior audiência no país são também parte de grupos econômicos – além de políticos e religiosos – que possuem interesses específicos.

O objetivo do MOM-Brasil é deixar visível quem controla a mídia brasileira. O projeto mapeou os cinquenta veículos ou redes de comunicação de maior audiência no país em quatro segmentos: mídia impressa, on-line, TV e rádio. Esses cinquenta veículos pertencem a 26 grupos de comunicação, e metade deles está sob o controle de apenas cinco grupos: Globo, Bandeirantes, Record, Folha e o grupo de escala regional RBS. Tal quadro indica uma alta concentração das maiores audiências nas mãos de poucos proprietários. Além disso, os 26 grupos pesquisados possuem negócios em mais de um tipo de mídia, o que configura a propriedade cruzada dos meios de comunicação, uma das formas mais graves de controle monopólico do setor.

A pesquisa revela, porém, um quadro menos conhecido: 21 dos 26 grupos ou seus principais acionistas possuem atividades em outros setores econômicos, como educacional, financeiro, imobiliário, agropecuário, energético, de transportes, infraestrutura e saúde. Somam-se a esses os interesses dos grupos de mídia de escalas regional e local que, por meio do sistema de afiliadas, permitem que as grandes redes de TV e de rádio cheguem a todo o território nacional e que os grandes portais de internet atraiam audiência pela produção de conteúdo local.

A cidade como negócio: mídia e mercado imobiliário

Vimos nos últimos meses os novos capítulos da disputa entre o empresário da mídia Silvio Santos e o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa. O conflito é motivado por um grande investimento imobiliário que Silvio, dono da rede de televisão SBT, da incorporadora Sisan e de negócios financeiros, quer realizar no terreno vizinho ao Teatro Oficina, localizado no bairro do Bixiga, em São Paulo. O Oficina, tombado em 1981 pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo), foi planejado pela arquiteta Lina Bo Bardi para que tivesse uma integração com a paisagem do entorno. Silvio quer que o Condephaat limite o tombamento ao prédio e permita a construção de três torres no terreno ao lado. Zé Celso quer que o governo do estado, dono do teatro, transforme a área em um espaço público de uso cultural.2

Essa disputa é símbolo de modos distintos de ver as cidades: seus terrenos devem estar disponíveis a interesses privados, dando ênfase a seu valor de troca, ou o planejamento urbano deve levar em consideração o valor de uso, como sonhava Henri Lefebvre?3 O caso é também exemplar, de um lado, do investimento de grupos de mídia e seus acionistas em especulação imobiliária, e, de outro, de sua atuação no setor de construção.

No primeiro caso, chama atenção o Grupo Objetivo, um dos maiores conglomerados de educação privada no país, dono da rede MIX FM de rádio, a sexta rede nacional na preferência dos ouvintes.4 Seu fundador e presidente, João Carlos Di Genio, foi apontado como o maior proprietário de imóveis de São Paulo,5 e suas empresas imobiliárias, segundo dados obtidos na Receita Federal e nas Juntas Comerciais, têm capital de quase R$ 1 bilhão. Di Genio não está sozinho. Outros proprietários de mídia que investem sua fortuna em imóveis são os irmãos José Roberto, Roberto Irineu e João Roberto Marinho, do Grupo Globo; membros da família Saad, do Grupo Bandeirantes; e Aloysio de Andrade Faria, do Grupo Financeiro Alfa, da Rede Transamérica de rádio e da Rede Transamérica de hotéis.

No segundo caso, além dos já citados exemplos do Grupo Silvio Santos e do Grupo Alfa, há também grupos de mídia regionais ligados aos grandes veículos de comunicação por meio do sistema de afiliadas. Na pesquisa, destacaram-se dois grupos, ambos do Espírito Santo, que possuem empreendimentos imobiliários e shopping centers: o Sá Cavalcante, dono da TV Capixaba (Band ES) e da BandNews FM ES, e o Buaiz, que possui afiliadas da Jovem Pan, Jovem Pan News e RecordTV.

O embate entre diferentes interesses na definição do planejamento urbano e da legislação envolve também as Igrejas. O exemplo de maior escala é o da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), dona da rede de rádios Aleluia, nona rede nacional na preferência dos ouvintes, e ligada também ao Grupo Record. Dois dos “megatemplos” da Iurd tiveram sua construção envolta em polêmica em relação ao uso do espaço urbano: a Catedral da Fé, construída em um terreno de 72 mil m² no bairro de Del Castilho, no Rio de Janeiro,6 e o Templo de Salomão, no Brás, em São Paulo, em um terreno de 100 mil m².7

“O agro é pop” entre os donos da mídia

As relações entre os grandes grupos de mídia brasileiros e o agronegócio são antigas, como conta a história do Grupo Folha.8 Essa ligação pode ser observada hoje em outros grupos, como Globo, Objetivo, RBS, Bandeirantes e Conglomerado Alfa.

Os membros da família Marinho são donos de diversas fazendas e empresas de produção agrícola, algo que ajuda a compreender as motivações dos bilionários donos do Grupo Globo quando sua rede de TV lança a campanha “Agro é Pop, Agro é Tech, Agro é Tudo” – informes publicitários que buscam criar uma imagem positiva do agronegócio.9 Deve-se considerar também que, historicamente, assim como outros grupos de mídia, veículos do grupo produziram uma cobertura que criminalizava os movimentos de luta pela reforma agrária.10 Outros empresários do agronegócio foram identificados na pesquisa, como João Carlos Di Genio (Grupo Mix de Comunicação/Grupo Objetivo), os donos da TV Vitoriosa (SBT Uberlândia, MG) e da TV Goiânia (Band Goiânia, GO) e o Conglomerado Alfa, dono, entre outras, da Agropalma.

Relações com o agronegócio podem ser observadas ainda na produção de conteúdo das mídias. A família Saad, do Grupo Bandeirantes, também proprietária de terras, algumas delas desapropriadas para a reforma agrária, possui o canal de TV a cabo Terraviva e, na Band News, o Jornal Terraviva. Além disso, diversos portais de notícias têm cadernos especiais para o setor, como o G1 (Globo.com), o Correio do Povo (Grupo Record) e o Grupo Estado.

Interesses e negócios no mercado financeiro

A agenda econômica dos meios de comunicação também corresponde a uma forte presença dos grupos no mercado financeiro: entre os grupos de mídia analisados na pesquisa, nove têm negócios no setor. O maior deles é o já citado Conglomerado Alfa, formado pelo Banco Alfa, Banco Alfa de Investimento, Alfa Financeiro, Alfa Leasing, Alfa Corretora, Alfa Seguradora e Alfa Previdência. Além dele, outros grupos atuam no mercado de previdência privada, como o RBS, afiliado da Globo no Rio Grande do Sul, e a Igreja Adventista do Sétimo Dia, proprietária da rede de rádios Novo Tempo.

Já a família proprietária do Grupo Record tem 49% do Banco Renner. O Grupo Silvio Santos é dono do Baú da Felicidade Crediário e da Liderança Capitalização (a “Tele Sena”), ambos impulsionados por sua rede de TV, o SBT. No mercado de soluções financeiras, destaca-se o Grupo Folha, detentor da empresa de pagamento on-line PagSeguro, e os sócios da RedeTV!, donos da Débito Fácil Serviços.

Um dos vínculos mais explícitos com o mercado financeiro é do portal de direita O Antagonista, uma sociedade entre os ex-jornalistas da revista Veja Diogo Mainardi e Mário Sabino e a Empiricus Research, empresa especializada na venda de informações sobre o mercado financeiro por meio de newsletters. A Empiricus, por sua vez, é uma sociedade da empresa norte-americana The Agora com três brasileiros.

Educação e saúde: serviços públicos nas mãos de agentes privados

A desqualificação dos serviços públicos e a defesa da gestão privada em áreas de competência do Estado são pautas constantes das empresas de mídia analisadas. Não surpreende, então, que o MOM-Brasil tenha identificado a existência de vínculos entre os grupos de comunicação e as empresas que atuam em educação e também em saúde, como a Igreja Adventista do Sétimo Dia, os grupos Folha e Globo, além de grupos regionais afiliados.

Em educação, é importante ressaltar não apenas a relação de propriedade, mas o papel dos grupos privados na disseminação de consensos sobre os rumos das políticas educacionais no Brasil que tiveram grande impacto na recente reforma do ensino médio e na proposta da Base Nacional Comum Curricular, como mostram as pesquisas em desenvolvimento pelo Observatório do Ensino Médio, da Unicamp.

Os grandes grupos de comunicação fazem parte desse processo há bastante tempo.11 O Grupo Abril, que publica a Veja, revista semanal de maior tiragem no Brasil,12 foi pioneiro nessa área ao desenvolver materiais didáticos do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) durante a ditadura militar. Nos anos 1990, fundou a Abril Educação, um dos maiores grupos de educação privada do Brasil.13 Por meio da Fundação Victor Civita, lançou revistas como Nova Escola e Gestão Escolar,14 que desempenham papel ativo na elaboração de diretrizes educacionais. Outra atuação pioneira é a da Fundação Roberto Marinho (Grupo Globo), que, desde sua criação, em 1977, desenvolve o Telecurso, voltado para a aceleração da aprendizagem (supletivo) nos ensinos fundamental e médio e na educação de jovens e adultos (EJA).

Na área de educação básica e universitária, o maior destaque é o já citado Grupo Objetivo, formado por escolas, cursos pré-vestibulares, universidades (Unip – Universidade Paulista) e editoras de produção de material didático. Yugo Okida, sócio do grupo, vice-reitor de pós-graduação e pesquisa da Unip, é ainda membro da Câmara de Ensino Superior do Conselho Nacional de Educação. O órgão do Ministério da Educação tem como uma de suas funções dar permissão para funcionamento de cursos superiores, emitir parecer sobre os processos de avaliação da educação superior e elaborar propostas de legislação para o setor.

Na área de educação a distância, o Grupo Folha é proprietário da UOL edtech, formado por seis empresas: Cresça Brasil, Portal Educação, Ciatech, Concurso Virtual, Casa do Concurseiro e EA Certificações. Entre seus serviços estão cursos on-line profissionalizantes, de idiomas e de concursos, cursos livres e pós-graduação a distância, além da produção de tecnologias educativas.

Se as relações entre mídia e educação são antigas, as relações com a saúde são mais recentes e igualmente preocupantes, uma vez que também nesse setor o Brasil passa por um processo de crescente participação de organizações sociais (OSs) na gestão dos recursos públicos. Nessa área, a Igreja Adventista possui clínicas, SPAs e o Hospital Adventista, com unidades em Belém, Manaus, São Paulo, Campo Grande e Rio de Janeiro, além do Plano de Saúde Proasa. O Grupo Hapvida, sistema de saúde privado que conta com uma administradora de planos de saúde, hospitais e laboratórios, é dono também do Sistema Opinião de Comunicação, com emissoras afiliadas às redes SBT e Bandeirantes. Podemos citar ainda o Grupo NC, que possui afiliada da Globo em Santa Catarina e é parceiro do Grupo RBS; no ramo farmacêutico, o grupo é dono das empresas EMS, Brace Farma, Legrand, Germed Pharma e Novamed, entre outras.

Perguntas essenciais

Conhecendo melhor os interesses empresariais da mídia brasileira, é fundamental questionar: qual é a participação dos grupos com negócios imobiliários na produção do atual modelo de urbanização corporativa15 e mercantilização do espaço urbano? Que informações são dadas sobre a reforma agrária, o uso de agrotóxicos e a agricultura familiar, já que foram identificados tantos vínculos com o agronegócio? Que soluções para a educação pública são apresentadas nas pautas de veículos com investimentos na educação privada? Que política econômica os grupos com negócios no mercado financeiro defendem?

Ainda que o MOM-Brasil não tenha analisado o conteúdo veiculado pelos principais meios, a sistematização de dados de propriedade em um banco de dados aberto e acessível (em quemcontrolaamidia.org.br) abre possibilidades de investigações necessárias para compreender os entraves criados pelos grandes grupos de mídia ao debate público e plural de temas fundamentais para o país.

*Olívia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia e integrante do Intervozes; e André Pasti é mestre em Geografia, professor do Cotuca/Unicamp, integrante do Conselho Diretor do Intervozes e coordenador da pesquisa MOM-Brasil. Artigo publicado originalmente na edição de janeiro de 2018 do Le Monde Diplomatique Brasil.

1 Monitoramento da Propriedade da Mídia – Brasil. Disponível em: <http://quemcontrolaamidia.org.br&gt;.

2 “Teatro Oficina e Grupo Silvio Santos, uma briga que dura há décadas”, Jornal da USP, 28 nov. 21017.

3 Henri Lefebvre, O direito à cidade, Centauro, São Paulo, 2008 [1968].

4 SECOM/Presidência da República, Pesquisa Brasileira de Mídia 2016. Disponível em: <http://pesquisademidia.gov.br&gt;.

5 “Dono de universidade é o maior dono de imóveis em SP”, Exame, 14 ago. 2016.

6 Edlaine de Campos Gomes, A era das catedrais: a autenticidade em exibição, Garamond, Rio de Janeiro, 2011.

7 “Inauguração de templo da Igreja Universal reuniu petistas e tucanos”, Folha de S.Paulo, 31 jul. 2014.

8 MOM Brasil, 2017. Perfil Grupo Folha. Disponível em: <https://goo.gl/ai2mXX&gt;.

9 Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares, Fiocruz, 22 fev. 17. Disponível em: <https://goo.gl/VuzfUJ&gt;.

10 Kleber Santos de Mendonça, Ruínas discursivas: a ocupação midiática sem-terra como máquina de guerra nômade, tese (doutorado em Comunicação Social), UFF, Niterói, 2007.

11 Jane Santos da Silva, Relações de força e a política educacional no Brasil: a caixa de Pandora brasileira, Gramma, Rio de Janeiro, 2016.

12 IVC – Instituto Verificador de Comunicação, 2016.

13 A Abril Educação foi vendida, em 2014, para a Tarpon Investimentos e o Governo de Cingapura e se tornou Somos Educação.

14 As revistas pertencem hoje à Fundação Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, dono do conglomerado de cervejas InBev e um dos fundadores do portal IG.

15 Milton Santos, A urbanização brasileira, Edusp, São Paulo, 2008.

Especial Monitoramento da Propriedade da Mídia no Brasil

1 Investigando os donos da mídia no Brasil pós-golpe

2 Mídia e interesses empresariais: quem controla a notícia no Brasil?

3 Igrejas cristãs no topo da audiência

4 Mídia, religião e política: igrejas cristãs intensificam presença na esfera pública

5 Afiliações políticas na mídia brasileira (abril)

6 Mídia antipetista: quem controla O Antagonista? (maio)

7 A expressão regional do monopólio midiático (junho)

8 Monopólios da mídia: o que mudou e o que não mudou com a internet? (julho)

9 Antigo, permissivo e ineficaz: o marco regulatório das comunicações no Brasil (agosto)

Imagem: Selecionada por mim. Não consta da matéria original do diplomatique.org.br.

Via Fernando Almeida

O ABC DO NEOLIBERALISMO, por Ulysses Ferraz

Compartilho mais um excelente texto de Ulysses Ferraz. Didático. Como disse um amigo do  Ulysses: “Já devo ter lido esse texto dez vezes; fica cada vez melhor”. Eu também.  Já devo ter compartilhado uma versão anterior deste texto mais de uma vez. Ulysses parece não se cansar de esclarecer, de denunciar. Eu também não. Leia. Releia. Leia novamente.

Eu já mencionei em alguns dos meus posts que o Século XX, do neoliberalismo e das guerras, teima em não acabar. Mas, pior que não acabar, é que os donos do mundo escolheram o joio do Século XX como matéria prima para preparar o “pão que o diabo amassou” que nos está sendo servido neste primeiro quarto do Século XXI.

O lucro é o sangue que alimenta o capitalismo e nutre sua versão mais perversa, o neoliberalismo.

Na paz, o capitalismo selvagem não gera lucro suficiente para alimentar todas as ganâncias. Precisam colonizar. Precisam das guerras, híbridas ou simples, de bombardeios e assassinatos indiscriminados. Precisam alimentar o voraz complexo industrial-militar. Bloqueios financeiros e guerras alfandegárias quando o inimigo tem bomba atômica e capacidade bélica. Bombardeios convencionais indiscriminados quando o inimigo é fraco.

Viva Trump, May e Macron, empregados dos proprietários das máquinas de fazer dinheiro, generais de chumbo do capitalismo de guerra.

A China finge fechar os seus olhos. E lucra ….

-“Paulo, você misturou tudo”.

_”Junte os pontos, companheiro”.

Paulo Martins

O ABC DO NEOLIBERALISMO, por Ulysses Ferraz

Neoliberalismo é quando os ricos transferem livremente suas riquezas para onde se pagam menos impostos, aplicam seus recursos onde os juros são mais elevados e deslocam seus empreendimentos para onde haja o mínimo de direitos trabalhistas e sociais. E vivem em qualquer lugar do mundo que assim o desejarem, cercados de muros, bens luxuosos e aparatos de segurança privada. São os habitantes das muralhas maravilhosas.

Enquanto isso, o resto da população trabalha para subsistir, sobreviver e consumir as sobras do mundo afluente. Endividam-se para ter o mínimo de conforto material e vivem onde é possível viver, cercados de insegurança pública. Quando pacíficos, os excluídos são abandonados. Quando violentos, são encarcerados. Um Estado mínimo garantido por presídios de segurança máxima. Austeridades sociais em meio a prodigalidades armamentistas.

Os neoliberais e seus aliados conspiram incansavelmente pelo desmantelamento das redes de proteção social, amparados por suas tropas de elite espalhadas pelas casas legislativas. Suas indústrias bélicas são amplamente representadas em seus interesses nos parlamentos e legalmente blindadas pelos poderes judiciários. Os bancos de investimentos são suas fortalezas mais sólidas. Jamais se acanham em se utilizar largamente das instituições democráticas em benefício próprio.

E para disseminar suas ideologias, os poderosos do capital e seus representantes corporativos cercam-se de acadêmicos vencedores do prêmio Nobel, de políticos pretensamente defensores da social-democracia e de porta-vozes midiáticos dos principais meios de comunicação. Mediante o mágico efeito da dominação simbólica, o neoliberalismo faz com que dominantes e dominados lutem por um mesmo ideal. É a globalização da ideologia. Uma distopia real. Aqui e agora. Essa é a verdadeira “revolução” do final século XX, cujos efeitos ainda reverberam incólumes em pleno século XXI.

O homem que não gostava de gatos, por Fernando Horta

Por Fernando Horta
“O homem que não gostava de gatos
Benito Amilcare Andrea Mussolini não gostava de gatos. Leonino, nascido na região entre Florença e Milão, mantinha-se sem cabelos em sem barba através de um intrincado processo que envolvia barbeiros escolhidos aleatoriamente, em diferentes momentos para garantir-lhe a segurança. Em 1903, ainda com cabelos e barbas, foi preso na Suíça por incitar uma greve de pedreiros e foi deportado para a Itália onde, até 1912, participou do Partido Fascista Italiano.
Nenhuma das informações acima é importante para a definição do que é o fascismo, contudo, parece que no Brasil de hoje uma parte das pessoas (acadêmicos inclusos) parece afirmar que enquanto um italiano careca de uniforme não começar a discursar aos berros, nós não temos fascismo no Brasil. É um argumento muito semelhante àqueles que dizem que por Mussolini ter feito parte do Partido Socialista Italiano ele era “de esquerda”. Ambas as explicações são baseadas num profundo desconhecimento do que foi o fascismo na Europa. A negação do termo ao Brasil, no entanto, obedece a dois objetivos: (1) desmobilizar a crítica e (2) afirmar que está tudo normal no país, e algumas pessoas na esquerda estão “alucinadas”.
Não gosto do rótulo de alucinado. No Brasil não está tudo normal, e penso que é preciso aprofundar a crítica, neste momento.
Existem várias explicações para o fascismo. O próprio fascismo se declarava uma filosofia libertadora, que pretendia combater a corrupção e unir o “povo” por um país “vitorioso”. Apesar de algumas diferenças, a onda fascista atingiu toda a Europa, incluindo a Inglaterra. Onde ela não obteve força para tomar o poder, mantinha-se como importante partido político e força social. Sempre ligada aos grupos sociais que detinham o poder das armas. Na Itália, por exemplo, a polícia da época (os Carabinieri) era participante ou simpatizante do fascismo desde o seu início. Existem inúmeros relatos e documentos mostrando que estas forças não se mobilizavam para conter ou fazer recuar os fascistas e, na maioria das vezes, os protegiam e permitiam que agredissem outros manifestantes. Esta característica não se resume à Itália, mas está presente em todo o lugar afetado pelo fascismo. Na famosa Batalha de Cable Street (1936), em Londres, é possível ver em fotos e filmagens a polícia protegendo os fascistas e agredindo a população.
A História fala em um “sistema sócio-político” dependente do capitalismo de cunho nacionalista que imperou no período entre-guerras na Europa, estendendo-se ao restante do mundo (especialmente América do Norte e do Sul). A Ciência Política fala em um sistema autocrático, de cunho ditatorial com supremacia do executivo sobre os outros poderes. Existem definições sobre a estética do fascismo, sobre o tipo de filosofia produzida e defendida pelo fascismo, arquitetura e até estudos sobre a influência fascista (e nazista) no desenvolvimento do cinema e da propaganda. A atriz e diretora de cinema Leni Riefensthal, por exemplo, é conhecida pela criação de toda uma estética visual ao exercício do poder de Hitler.
Em “Mil Platôs”, Delleuze e Guattari argumentam pela existência dos “micro-fascismos”. Mostram como, a partir de uma ideia “liberal”, ocorre a degeneração ao fascismo através de micro-violências e rupturas culturais mínimas, quase todas nas micro-esferas de poder individual ou burocrático, que vão se acumulando dentro do tecido social até a formação do sentido de diferença social do fascismo que invariavelmente acaba sendo usado como espaço de atração para o pertencimento do cidadão comum ao movimento. Estas ideias deram origem a uma série de estudos psicológicos (muitos deles baseados nas ideias de Hannah Arendt) que argumentam pela existência de padrões de comportamento que estariam associados a estas micro-rupturas. O narcisismo, o individualismo, um forte sentimento de inadequação social, a não aceitação do outro e do diferente, baixa-auto estima, e etc. Seja como for, a leitura combinada de “A condição humana” e “As origens do Totalitarismo”, ambos de Arendt, oferecem um campo bastante fértil para pensarmos em como a “essência humana” se transmuta em ações políticas através do corpo ou das narrativas, sendo veículo de ideias pessoais que passam a se reconhecer no tecido social, potencializando seus efeitos.
A literatura da década de 50 e 60 sobre o tema, enfatizava a relação entre o indivíduo e os grupos com o argumento de fundo de que uma vez que o indivíduo era engolido pelo grupo – como nos processos nazista e comunista – as degenerações se davam como decorrência social. Assim, argumentava-se que o único caminho para uma sociedade “saudável” era a preponderância do indivíduo e atacava-se toda e qualquer organização coletiva. O centro desta argumentação servia muito bem aos interesses norte-americanos da época, que buscavam igualar nazismo e comunismo e desacreditar sindicatos, associações de classe ou outras formas coletivas de organização dentro dos EUA.
Desde a década de 50 a psicologia vinha fazendo uma série de experimentos para mostrar que o indivíduo não era a catedral santificada das virtudes. Na década de 50, Solomon Asch mostrava que os sentidos e opiniões pessoais eram totalmente influenciados pelas percepções de grupo e que os indivíduos se sentiam amparados e defendidos quando imersos numa “conformidade”. Em 1961, Milgram realizava seu famoso e controvertido estudo sobre obedecer e violentar. Milgram mostrou que indivíduos normais, aparentemente justos e não cruéis eram capazes de infligir dor em outros seres humanos se assim fossem ordenados. Na década de 70 estes estudos foram colocados em teorias maiores como parte do esforço de pesquisa realizado pelos EUA para manter o país livre de “ideologias coletivas”. No fim, descobriu-se que há uma imensa tendência na população para o sadismo e para a violência.
As pesquisas nos EUA afirmavam que a sociedade americana não estava livre de ser tomada por ondas ideológicas como o fascismo. Em realidade, os estudos sugeriam que para conter estes micro-comportamentos violentos era necessário investimento massivo em educação e distribuição de riqueza. O homem, por mais respeitador da lei que fosse, se confrontado com situações de necessidade usava como recurso a violência. Fosse ela física e direta, simbólica ou psicológica.
Hoje o estado da teoria sobre explicação do fascismo é bem avançado. O fascismo se baseia em quatro características sociais: (1) negação da política como forma de resolução dos conflitos humanos; (2) negação da diferença como comportamento socialmente válido; (3) afirmação de um comportamento moral único caracterizado não apenas como desejável, mas obrigatório e (4) não aceitação da figura humana como detentora de direitos naturais. Com estas características rapidamente decorrem as três condições históricas para o surgimento do fascismo: (1) preponderância da ideia de Estado sobre qualquer outra coisa (Salus patriae, suprema lex); (2) corporativismo e uso da violência contra opositores políticos (com especial negação da luta de classes) e (3) ênfase na noção de escassez e de luta por recursos materiais para promover a cisão social.
Como um diagnóstico de uma doença, em que um ou outro sintoma sozinho não qualifica um mal específico, na percepção do fascismo vários dos pontos apontados acima podem ser vistos como características ocasionais (ou mesmo perenes) de algumas sociedades ou grupos. Não se pode tomar a noção exagerada de escassez e de luta por recursos como já caracterizando o fascismo. Assim como a utilização de violência para com opositores políticos, tomada de forma separada, pode ser encontrada em todo período histórico em todas as sociedades.
O problema do Brasil é quando você ouve de deputados no impeachment de 2016 que “in dubio pro societat”, numa clara alusão à ideia do Estado sobre qualquer coisa, em seguida ouve nas manifestações que “os comunistas são vagabundos que querem continuar mamando nas tetas do Estado”. Percebe o aumento absurdo da violência contra homossexuais, negros, mulheres e ativistas de toda a sorte, registra senadores defendendo que se bata de relho em manifestantes, policiais jogando spray de pimenta no rosto da população e dizendo “faço porque eu quero”. Retira de falas de ministros da suprema corte que existe o “uso abusivo das liberdades e do habeas corpus”, e de desembargadores que “se alguém está sendo processado é porque alguma coisa fez”. Médicos falando em “romper a veia para que o capeta abrace ela” e pilotos de aeronave dizendo “abre a janela e joga este lixo daí”. Fica ainda mais claro quando se vê delegados de polícia criando histórias mirabolantes para prender seus desafetos, membros do ministério público falando mais em fé e bíblia do que em lei, e generais exaltando uma pátria de símbolos amorfos (e sem nenhum povo) para pregar a violência.
O fascismo está no Brasil. E de uma forma assustadoramente rápida. Os estamentos que deveriam lhe servir de oposição sucumbiram. Juízes moralistas, punitivistas que falam em “bandidolatria” já estão no espectro do fascismo. Liberais que deixam de defender as liberdades e direitos humanos são fascistas. Políticos que defendem a violência, constrangimento ou mesmo aniquilação dos opositores são fascistas. Manifestantes que exigem “protestos sem partidos” são apenas protofascistas. Nossas instituições ruíram por dentro com uma facilidade impressionante, mas não sem explicação. Os historiadores sempre afirmaram que o fascismo era filho do período entre-guerras. Os psicólogos e sociólogos apenas confirmaram.
O fascismo é filho da ignorância e do medo. No Brasil, o medo de que em uma sociedade igualitária falte “dinheiro” para todos é usado até nas propagandas oficiais de Temer. A noção do “Brasil quebrado financeiramente” é exatamente para induzir o desespero e a luta pelos recursos. Tudo isto com o neo-moralismo evangélico e o apelo evidente ao nosso passado escravocrata. Bertold Brecht afirmava que não há nada mais parecido com um fascista do que um capitalista assustado. A classe média brasileira nunca foi conhecida por seu quilate cultural, nunca foi saudada por sua rigidez legal, nem nunca foi exaltada por seu apreço e defesa pelas liberdades individuais. Delleuze e Guattari afirmavam que um certo tipo de liberalismo difuso convivia muito bem com o autoritarismo fascista.
Como se vê, não é necessário um italiano careca e de uniforme para termos fascismo. A classe média brasileira sempre esteve ali no limiar e nunca teve qualquer apreço pela democracia. Precisou apenas um sentimento de medo da igualdade social, incitado pela mídia e pelos países interessados em manter a América Latina subserviente, para que nossa classe média abraçasse seu destino. Como disse Chico Buarque:
“Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal,
Vai tornar-se um imenso Portugal!”
Mas enquanto Portugal luta vigorosamente contra a austeridade, nós viramos um Salazarismo tupiniquim nos trópicos.”

Via João Lopes

Um dos maiores constitucionalistas do país, José Afonso da Silva, emite parecer contra prisão em segunda instância

Publicado em justificando.com.br

Segunda-feira, 2 de Abril de 2018
Referência no STF, José Afonso da Silva emite parecer contra prisão em segunda instância

Às vésperas do julgamento do Habeas Corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula contra a relativização da presunção de inocência, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal em 2016, foi juntada à ação o parecer do notório constitucionalista, Professor Livre-Docente de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, José Afonso da Silva.

Autor de diversas obras sobre o tema, o professor condenou a decisão da corte sobre o tema. No documento, ele afirma que o Supremo deveria ter a grandeza de rever seu posicionamento, criticado no parecer por diversas frentes – veja as respostas aos quesitos no final.

O nonagenário autor, uma das maiores referências na área, iniciou dizendo que se parecer era por compromisso com a defesa da Constituição, uma vez que afirma não ser eleitor nem do ex-presidente, que ingressou com a ação, como do Partido dos Trabalhadores: “Não é usual abrir-se questão de ordem pessoal em pareceres que o parecerista oferece a seus consulentes. Neste caso, contudo, isso se me impõe para afastar do âmbito deste parecer qualquer conotação política. Não sou eleitor do consulente [Lula] nem de seu partido. O consulente aqui é, por assim dizer, um instrumento pelo qual exerço um dever impostergável, qual seja: a defesa da Constituição em face de um julgado de guardião”.

Dentre suas críticas, Silva rechaçou os argumentos levantados pelos ministros em comparar com outros sistemas jurídicos diferentes do aplicado no país.

“Quero afirmar aqui, peremptoriamente, que não é razoável, nem justo, argumentar desse modo, trazendo à colação direito estrangeiro tão diferente do nosso. Não se comparam direitos ou instituições jurídicas diferentes, porque, “seja na micro ou na macrocomparação, a escolha do objeto a comparar há de fundamentar-se em critérios racionais, pois envolve a ideia da comparabilidade… [que é] um pressuposto básico da comparação jurídico constitucional, porque sem ela não tem cabimento. Não se comparam objetos incomparáveis”.

O constitucionalista criticou com veemência o argumento dos ministros no sentido de apontar o sistema recursal como entrave e usar tal argumentação para relativizar um princípio constitucional:

Lamentavelmente nenhum dos Ministros que votaram contra a inteireza do princípio da presunção de inocência apresentou qualquer sugestão no sentido de modificar o sistema de recursos e no sentido de buscar meios de acelerar os julgamentos criminais, muitas vezes deixando os réus mofando nas enxovias. Sem providenciar meios de sanar o mal pela raiz, quer fazê-lo pela rama, tolhendo direitos fundamentais.

Nem uma palavra sobre a necessidade de uma profunda reforma do judiciário, que favoreça a celeridade processual, como, por exemplo, uma possível criação de um Superior Tribunal Administrativo, para decidir, em definitivo, como poder judiciário não como contencioso administrativo, as causas administrativas de interesse do Poder Público, ainda que admitido recurso extraordinário em função do controle de constitucionalidade. Uma reforma que descentralize a justiça estadual, justiça de mérito, criando Tribunal de Apelação ou que nome tenha, nas regiões administrativas dos Estados, enquanto os Tribunais de Justiças ficariam como tribunal de coordenação e harmonização, etc. Não o faz porque isso significaria reduzir poderes de certos órgãos judicial, inclusive do STF.

Para o professor, ainda é tempo da corte rever seu posicionamento. “A grandeza de um Tribunal não se perde quando, no cumprimento de sua missão constitucional, presta a sua jurisdição sem temor e sem concessão e não se sente apequenado pelo fato de rever sua posição em favor dos direitos fundamentais, a favor de quem quer que seja que lhe bata às portas. Um Tribunal só se diminui e perde credibilidade quando decide contra ela, qualquer que seja a motivação”, afirmou.

“Julgar contra a Constituição é um ônus que sempre há de pesar muito na consciência dos julgadores, mormente se forem integrantes de uma Corte Constitucional, por isso mesmo são sempre propensos a corrigir rumos”, afirmou José Afonso da Silva.

Ao final do documento, o professor sintetiza seu pensamento nas respostas aos quesitos perguntados pela defesa de Lula. Leia na íntegra:

Qual a extensão da garantia da presunção de inocência, contida no artigo 5º, LVII da Constituição?

José Afonso da Silva: O princípio ou garantia da presunção de inocência tem a extensão que lhe deu o inc. LVII do art. 5º da Constituição Federal, qual seja, até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A execução da pena antes disso viola gravemente a Constituição num dos elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito, que é um direito individual fundamental.

“O momento no qual uma decisão torna-se imodificável é o do trânsito em julgado, que se opera quando o conteúdo daquilo que foi decidido fica ao abrigo de qualquer impugnação através de recurso, daí a sua consequente imutabilidade. Dá-se aí a preclusão máxima com a coisa julgada, antes da qual, por força do princípio da presunção de inocência, não se pode executar a pena nem definitiva nem provisoriamente, sob pena de infringência à Constituição.

A tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 126.292/SP, qual seja “[A] Execução Provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio consitucional da presunção de inocência”, é compatível com o artigo 5º da Constituição?

Silva: Não. Indubitavelmente, não é compatível com o inc. LVII do art. 5º da Constituição a tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no HC 126. 292 de que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência”. É incompreensível como o grande Tribunal, que a Constituição erigiu em guardião da Constituição, dando-lhe a feição de uma Corte Constitucional, pôde emitir uma tal decisão em franco confronto com aquele dispositivo constitucional.

O Tribunal Regional da 4ª Região determinou, nos autos da Apelação Criminal (…) que o início do cumprimento da pena imposta a Lula deverá ocorrer imediatamente após o esgotamento da jurisdição daquela corte, e não a partir do trânsito em julgado do processo-crime. Esta determinação é compatível com o artigo 5º, LVII, da Constituição Federal?

Silva: Não. Não é compatível com o art. 5º, LVII da Constituição a determinação do Tribunal Regional da 4ª Região de se dar início o cumprimento da pena imposta a Lula imediatamente após o esgotamento da jurisdição daquela Corte, e não a partir do trânsito em julgado do processo-crime. O Tribunal cometeu grave inconstitucionaldede com essa determinação.

A ordem de execução provisória da pena de Lula, tendo sido decretada de ofício, limitando-se a mencionar entendimentos sumulares e precedentes do Supremo Tribunal Federal, e sendo a mesma, ante os elementos concretos da causa, desnecessária, é compatível com o artigo 5º, LVII da Constituição Federal?

Silva: Não. A ordem de execução provisória da pena imposta a Lula, decretada de ofício, limitando-se a mencionar entendimentos sumulares e precedentes do STF, e sendo a mesma, ante os elementos concretos da causa desnecessária, não é compatível com o art. 5º, LVII, da Constituição.

O sistema de processo penal brasileiro, de acordo com a Constituição, se rege pelo princípio acusatório, no qual se exige que o juiz não pode agir de ofício, nem iudez sine auctor. E a execução é reconhecidamente um processo administrativo autônomo, por isso só pode ser iniciado quando devidamente provocado.

O contexto fático apresentado no Habeas Corpus n. 152.752/PR – revelando iminente possibilidade de execução da pena de Lula antes do trânsito em julgado de sua condenação criminal – constitui hipótese de flagrante constrangimento ilegal apta a afastar a incidência da Súmula 691/STF?

Silva: Sim, sem dúvida. O contexto fático apresentado no HC 152.752 – revelando iminente possibilidade de execução da pena de Lula antes do trânsito em julgado de sua condenação criminal – constitui-se em hipótese de flagrante constrangimento ilegal apta a afastar a incidência da Súmula 691/STF.

Toda decisão ilegal ou inconstitucional de juiz ou Tribunal constitui constrangimento apto ao cabimento de um habeas corpus, para evitar a consumação da ação ilegal e constrangedora.

Leia o parecer na íntegra no site da justificando.cartacapital.com.br