O incrível “exército” do capitão Brancaleone

Segundo muitos historiadores, o Século XIV foi marcado, na Europa, pelo trinômio peste, guerra e fome, indicando o começo da decadência do feudalismo.

O incrível exército de Brancaleone, filme de Mário Monicelli, de 1966, discute, de forma satírica, essa decadência das relações sociais dentro do feudalismo. Trata-se de um exército pequeno e esfarrapado, comandado por um capitão ingênuo e lunático. O capitão Brancaleone reivindica para si uma alegada herança a um feudo. Para isso, Brancaleone recorre ao apoio de um pequeno grupo de soldados mal preparados, a quem o capitão chama, sério, de “meu exército”.

A falta de coragem de Brancaleone e seu “temido exército” causam situações humorísticas, enquanto o grupo de aventureiros mal preparados busca realizar seus objetivos: combater a peste negra, a fome, os sarracenos, os bizantinos e os bárbaros.

Embora eu não veja nenhuma graça na situação político-institucional do Brasil sob o comando do capitão lunático, enxergo semelhanças entre as situações. Ora, tem algo mais ridículo, em pleno Século XXI, que um grupo de uniformizados em trajes militares que sai desfilando no asfalto com veículos blindados e tanques para entregar um convite ao tal capitão?

Talvez o tal capitão esteja tentando amedrontar seus inimigos quando, ele mesmo, está morrendo de medo sobre o que o futuro lhe reserva. Isto não deixa de ser hilário, digno de Brancaleone e seus assustados soldados.

Bom, as semelhanças se encerram no ridículo de cada uma das situações, pois enquanto o ingênuo e idealista capitão Brancaleone e seu exército do Século XIV buscavam lutar contra a peste, a fome e a barbárie, o lunático capitão e “seu exército” lutam, em pleno Século XXI, ao lado desses mesmos inimigos.

Um olho de vidro na guerra

Um olho de vidro na guerra

Por Abrao Slavutzky|29/05/21|Artigo, Crônica

Entre os livros sobre a Segunda Guerra Mundial, há os que narram histórias incríveis ocorridas na retaguarda, como o Kaputt. Livro escrito pelo jornalista italiano Curzio Malaparte, que esteve presente na invasão alemã da Europa Oriental. Numa obra com mais de 400 páginas, repleta de acontecimentos dramáticos, a mais famosa do livro, ocupa quatro páginas. É uma história sobre um oficial nazista que tinha um olho de vidro, que comandava um pelotão em 1941 na Ucrânia. Transcorreu durante a ofensiva alemã que deu início à derrocada do poderoso Terceiro Reich.

Havia bandos de guerrilheiros nos bosques e nos brejos ao longo do rio Dniepre e se escutavam tiros e, às vezes, rajadas de metralhadoras. Uma coluna de artilharia alemã percorria uma aldeia silenciosa, com cavalos mortos, alguns amarrados num clima sinistro. Um oficial cavalgava à frente de seu grupo num entardecer cinzento, quando se escutaram tiros de fuzis. Os tiros dos guerrilheiros desencadearam reação imediata do oficial, cuja ordem foi de pôr fogo em toda a aldeia.

As casas de madeira começaram a queimar e logo tudo foi dominado pelo fogo, os tiros foram diminuindo de intensidade. Havia muitos mortos estendidos no chão, alguns alemães tombaram, e de repente, no meio da fumaça, aparece alguém correndo com as mãos para cima. Logo o guerrilheiro é agarrado e percebem que é um menino, de não mais de dez anos, magro, sujo, com a roupa esfarrapada e o rosto preto de fumaça. O oficial olha o menino e lembra que em Berlim tem um filho com uma idade parecida, e chama um intérprete que fala russo e pergunta:

– Por que atiraste contra os meus soldados?

O menino fica quieto e a pergunta é repetida algumas vezes até que ele responde com calma, sem medo, com certa indiferença, em posição de sentido.

– Já o sabes, por que me perguntas?

– Sabes quem são os alemães? – pergunta o oficial.

– Acaso tu também não és alemão? – replica o preso.

O oficial, irritado com as respostas, decide matar o menino, mas de repente muda de ideia e, incomodado, diz ao prisioneiro:

– Eu não quero fazer-te mal, és uma criança, eu não faço guerra às crianças, mesmo que tenhas atirado contra os meus soldados. Escuta, eu tenho um olho de vidro. Se souberes dizer, sem ficar pensando, qual dos dois olhos é o de vidro, ponho-te em liberdade.

– O olho esquerdo.

– Como conseguiste percebê-lo?

– Porque, dos dois, é o único que tem qualquer coisa de humano.

Essa história revela a coragem e a sagacidade de um menino de dez anos que vale a pena conhecer. E a humanidade do oficial, que deu uma chance para o jovem guerrilheiro viver, portanto, há militares capazes de humanismo. Malaparte conclui assim o capítulo: – Todos os alemães têm um olho de vidro.

O Brasil está sendo atacado tanto pela pandemia como pelo governo mais olho de vidro da sua história. O passado elitista do país retornou com uma frieza mortífera assustadora. Um povo abatido começa expressar seu desejo humanista, em busca de justiça, numa sociedade em que a liberdade e a segurança nacional sejam para todos. A história do menino corajoso em plena guerra, me fez lembrar que há vida no meio das dores e mortes. É preciso despertar da letargia, lentamente nos levantaremos para não sucumbir à mediocridade. A construção de uma vida poética passa das decepções à imaginação de novos horizontes.


Publicado originalmente no facebook do autor.

Por

Abrao Slavutzky

Psicanalista, autor de vários livros, entre eles: “Psicanálise e cultura”, “Para início de conversa”, com Cyro Martins, “Quem pensas tu que eu sou”, “Humor é coisa séria”, entre outros.

Publicado em terapiapolitica.com.br