“Apolíticos”, apadrinhados, “revoltados” e outras aberrações da nossa história política recente

“Numa reação aos aliados infiéis na votação da reforma trabalhista, articuladores políticos do governo dizem, reservadamente, que era preciso transmitir uma mensagem de endurecimento. Daí ter demitido indicados de deputados. No entanto, a intenção é tirar os cargos de alguns poucos parlamentares.

O governo não pode abrir mão de tentar convencer deputados reticentes. Não é prudente brigar com deputados que votaram contra a reforma trabalhista e que serão necessários na previdenciária, batalha ainda mais dura. Dado o recado, o governo mantém aberto o balcão para negociar cargos e emendas.       Do Blog do Kennedy Alencar

Meus comentários:

Temer mantém aberto o balcão de negócios que derrubou a presidente Dilma e o colocou em seu lugar. As exonerações de alguns ocupantes de cargos públicos que entraram para o serviço público  pela janela do golpe já foram publicadas no Diário Oficial da União. Outras virão. Mas, como informa Kennedy Alencar, Temer mantém aberto o balcão de negócios.

A indicação de apadrinhados políticos, antes chamada pela mídia golpista, pejorativamente, de “aparelhamento”, agora é aceita sem qualquer contestação. Agora, o toma lá dá cá é considerado ” legítimo exercício democrático da saudável negociação política”.

Como sabemos, as indicações políticas para cargos de confiança na administração pública federal é uma das porteiras por onde entra a corrupção. As emendas parlamentares são, em muitos casos, pagamento pelos políticos patrocinadores destas emendas em retorno aos grandes financiadores – por caixa um ou caixa dois – de suas campanhas eleitorais.

Procure pelos indignados, revoltados, libertários e pelos que lhe chamaram para ir para a rua em 2015 e início de 2016. Procure por aqueles que se intitulavam “apartidários” e você vai encontrá-los aboletados em cargos públicos e em mandatos políticos de partidos envolvidos na corrupção que juravam combater. Calam-se ou não saem da toca em claro sinal de apoio ao governo de Temer e seus ministros, multi-citados nas delações premiadas.

Muito, mas muito mais rápido do que parecia perderam suas bandeiras e discursos. Estão tão nus quanto o rei que eles entronizaram.

Triste país sempre abortado.

Mas, também, esperar o quê se eles eram “milhões de Cunha”? Que tenham se transformado em “milhões, envergonhados, de Temer” é consequência natural. Qual a surpresa?

Paulo Martins

Da escravidão à reforma trabalhista, por Pedro Paulo Zahluth Bastos

Da escravidão à reforma trabalhista

Publicado em Carta Capital

por Pedro Paulo Zahluth Bastos — publicado 27/04/2017 18h41, última modificação 27/04/2017 18h43
Como os traficantes e donos de escravos no século XIX, os deputados recorreram às virtudes do livre-mercado para desmontar a CLT

A reforma trabalhista que autoriza o vale-tudo nos contratos de trabalho foi aprovada na Câmara de Deputados com o recurso previsível a argumentos neoliberais. Vários deputados alegaram ser preciso reinstituir o livre-mercado nas relações trabalhistas, pois as leis existentes protegeriam em excesso o vendedor da jornada de trabalho e diminuiriam o incentivo aos compradores de mão-de-obra. No fim, o aumento da demanda favoreceria os trabalhadores: a reforma trabalhista seria para o próprio bem deles.

No louvor às virtudes do livre-mercado, este discurso é muito semelhante àquele dos traficantes e proprietários de escravos brasileiros no século XIX. Os primeiros reclamavam das pressões inglesas para fechar um mercado como outro qualquer: o do corpo negro. Os segundos exigiram até indenização do Império por intervir na esfera da livre propriedade privada em 1888, embora talvez soubessem que o tipo de greve geral da época, a fuga massiva de escravos, exigia a abolição para preservar a mão-de-obra no campo. Em 1887, o Clube Militar anunciara a recusa do Exército a caçar e capturar os escravos que fugiam em massa.

O equívoco do argumento liberal é que nunca existiu algo como o livre-mercado independentemente dos valores de cada civilização. Estes valores são duradouros, mas mudam em função do debate político. Em 1819, por exemplo, os liberais do parlamento inglês eram contrários à “intervenção artificial” que proibia o trabalho de crianças com menos de 9 anos de idade e limitava a “apenas” 12 horas a jornada dos que tivessem menos de 16. Hoje, nem no Brasil se defende algo parecido.

O próprio patriarca do liberalismo econômico, Adam Smith, escrevia em 1776 que os empresários combinavam rebaixar salários (manipulando o livre-mercado) e impor leis que proibiam greves e até a associação dos trabalhadores que reagissem ao conluio empresarial. O mercado de trabalho, portanto, nunca foi “livre”: sempre foi regulado pelo poder, por instituições e valores civilizatórios (ou bárbaros).

No Brasil, os senhores de escravos que pensaram a formação do mercado de trabalho moderno planejaram estimular a imigração de europeus depois que uma nova Lei de Terras impedisse que se transformassem em camponeses, ao exigir a compra das terras públicas e não apenas sua ocupação. Isto forçaria os imigrantes, sem terras, a se empregarem a baixíssimos salários, ao contrário dos Estados Unidos.

Em São Paulo, os fazendeiros organizaram um esquema de financiamento público da formação do mercado de trabalho, atraindo imigrantes com o pagamento da viagem transatlântica e do alojamento na Hospedaria dos Imigrantes. As condições de trabalho e de vida eram tão semelhantes à escravidão e tão distantes da civilização que a Itália proibiu em 1902 a emigração para o Brasil, o que a Espanha fez em 1910.

Na República Velha, as leis violentas contra greves e associações trabalhistas eram talvez mais duras do que no tempo de Adam Smith. As forças públicas estaduais eram especializadas em repressão social contra os trabalhadores que rompessem “unilateralmente” o contrato de trabalho. Foi diante da grande greve de 1917 que o governador de São Paulo, Washington Luís, disse que a “questão social é um caso de polícia”.

A questão social tornou-se um caso de política pública na década de 1930. Liderada por Getúlio Vargas, a nova elite política queria modernizar o País, o que significava superar aspectos de sua herança agrária, colonial e escravista em nome de um projeto de industrialização com ampliação de direitos trabalhistas.

Isto não resultava apenas de novos valores civilizatórios importados (como o positivismo, a doutrina social da Igreja católica, o socialismo e o fascismo), mas da urgência que a questão social assumiu no mundo depois da Revolução Russa e da Grande Depressão. Tratava-se de reprimir os comunistas com requintes de crueldade (caso de Olga Benário), mas evitar a radicalização geral oferecendo direitos trabalhistas modernos: jornada de oito horas e descanso semanal (1932); previdência (1933); férias (1934); salário mínimo (1940).

O empresariado pressionou Vargas contra os direitos, os fiscais e os juízes trabalhistas, continuando a pressionar depois de sua queda, até 1964. O golpe foi saudado pelo jornal O Estado de S. Paulo como o fim da Era Vargas, mas a Consolidação das Leis do Trabalho não morreu. Além da repressão a sindicatos e greves, os economistas da ditadura encontraram uma maneira mais “técnica” para rebaixar salários: uma fórmula de correção de salários que não os protegia da inflação, mesmo quando seu cálculo não era manipulado (como em 1973). Depois de cair 35% entre 1964 e 1967, o salário mínimo despencou mais de 40% entre 1979 e 1984.

A luta para civilizar as relações de trabalho no último país ocidental a abolir a escravidão parecia ter tido uma vitória definitiva com a Constituição de 1988. Mas seu sentido como “Constituição Cidadã” não é só reformado, é revertido em 2017, um século depois de que nossa “questão social” foi chamada de “caso de polícia”.

Em contexto de grande desemprego, a possiblidade de trocar o legislado pelo negociado em contratos “livres” se assemelha à liberdade da raposa no galinheiro. Não há espaço para discutir com detalhe a reforma trabalhista, mas o sentido da mesma é o de degradar o trabalhador à condição de um “insumo” barato, rebaixando os padrões de civilidade em nossa vida social.

Não é exagero afirmar que o requinte de crueldade da reforma trabalhista do governo Temer é o tratamento de grávidas e jovens mães: “Gestantes e quem está amamentando poderão trabalhar em ambientes insalubres se isso for autorizado por um atestado médico. No caso das grávidas, isso só não será possível se a insalubridade for de grau máximo”.

Surpreende que, com popularidade de 5%, Michel Temer se ache legitimado para tamanha transformação. Não surpreende que uma greve geral seja convocada para esta sexta-feira 28. Surpreenderá se não for tratada como um caso de polícia e se, depois dela, os congressistas passarem a dar ouvidos à opinião da população que, supostamente, representam. O conflito social quanto à natureza mais civilizada ou mais bárbara de nosso contrato social parece estar só no começo.

Blade Runner é hoje – Os replicantes estão chegando, por Ricardo Abramovay

Blade Runner é hoje – Os replicantes estão chegando

2 de abril de 2017
ilustríssima – Folha de São Paulo – 2/04/2017

A inteligência artificial desbancará a humana.
Bem-vindo ao mundo sombrio das máquinas mais inteligentes que nós.

RESUMO Os benefícios da inteligência artificial se fazem ver em várias áreas. O mesmo vale, contudo, para as ameaças sopradas pelo turbilhão tecnológico. Entre elas, segundo o autor, estão a autodeterminação das máquinas, o desemprego e o fim da privacidade. A falta de uma agência reguladora global acentua o temor.

“Por muito agarrados que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria diante da eternidade”, diz o personagem de José Saramago no início da “História do Cerco de Lisboa”. Mas a morte, como componente incontornável da vida, pode estar com os dias contados.

Ray Kurzweil, cientista da computação, inventor e futurologista, autor de best-sellers sobre inteligência artificial e saúde, prevê que a vida eterna vá se tornar tecnicamente possível a partir de 2029. Ou seja, em 12 anos.

O prognóstico poderia soar como desvario se Kurzweil não trabalhasse na área de inovação de um dos chefes de fila da pesquisa sobre inteligência artificial, o Google.

Além disso, ele está envolvido em façanhas como o reconhecimento ótico de caracteres e a transmissão direta da linguagem falada para impressoras.

Daí à eternidade não há muito mais que um passo –ao menos é nisso que acreditam os adeptos do transumanismo. O movimento tem se desenvolvido nos últimos 20 anos e procura melhorar o funcionamento do organismo humano por meio da engenharia genética, das tecnologias da informação, da nanotecnologia molecular e da inteligência artificial.

A humanidade, segundo os transumanistas, não é o ápice da evolução. A ciência e a tecnologia podem nos fazer pós-humanos, ampliando nossas capacidades muito além daquilo que um humano atual pode imaginar.

Transcendência ou morte. Eis o lema fundamental do transumanismo. De fato, nossa inteligência pode superar a maioria das atuais limitações biológicas. Nos próximos 20 anos, ciência e tecnologia provocarão em nós e em nossa organização social muito mais mudanças do que as registradas nos últimos 300 anos.

MÁQUINA INTELIGENTE

Na base de todas essas transformações está uma diferença crucial entre o progresso técnico contemporâneo e tudo que o precedeu.

Se a Revolução Industrial promoveu a substituição da força animal e, posteriormente, do próprio trabalho humano por máquinas, agora é nossa inteligência que vai sendo trocada por dispositivos eletrônicos cada vez mais potentes.

O poder computacional desses aparatos dobra, em média, a cada dois anos. Vejamos: o sequenciamento genético custava US$ 100 milhões em 2001 (R$ 240,7 milhões, em valores de junho daquele ano) e US$ 10 milhões em 2008 (R$ 16,3 milhões, idem). Hoje, essas informações podem ser obtidas por US$ 1.000 (R$ 3.100).

Os seis pequenos retângulos de silício que, em 1958, permitiram ao Vanguard I (o quarto satélite lançado ao espaço e o primeiro alimentado por energia solar) mandar informações à Terra custavam muitos milhares de dólares por watt. Na década de 1970, o preço tinha caído para US$ 100. Agora, a US$ 0,50, a energia solar já compete com o carvão. A Agência Internacional de Energia Renovável estima que ela baixe a US$ 0,05 ou 0,06 em oito anos.

Os dispositivos eletrônicos, além disso, não se confinam a um setor ou a uma dimensão da vida social; eles se combinam. Todos os objetos com que nos relacionamos se tornam meios de intensificar nossa conexão a redes cada vez mais amplas.

A natureza exponencial (dada pela velocidade do aumento da capacidade computacional) e combinatória das tecnologias atuais faz com que as mudanças sejam incontornáveis e irreversíveis.

Os ganhos reais e potenciais dizem respeito às mais diversas áreas, da geração de energia à produção de bens materiais, da agricultura de precisão aos automóveis autônomos, da prevenção de doenças à criação cultural, da organização urbana às finanças e à circulação de informação.

Ao mesmo tempo, porém, ampliam-se a apreensão e os alertas relativos aos riscos da evolução tecnológica, e eles partem de atores importantes. Alguns não hesitam em comparar esses riscos aos representados pelos artefatos nucleares e pelas mudanças climáticas.

A diferença é que a corrida nuclear e as mudanças climáticas estão enquadradas por algum tipo de acordo e de governança global, mesmo que o resultado dessas iniciativas seja contestável.

AMEAÇAS

Quanto ao avanço da inteligência artificial, não há nenhuma coordenação nem sequer para sinalizar as ameaças –dentre as quais destacam-se quatro. A primeira refere-se não tanto ao poder desse conjunto de tecnologias, mas, sobretudo, a sua autonomia.

Nick Bostrom, professor de filosofia em Oxford (Inglaterra) e um dos expoentes do transumanismo, publicou em 2014 o livro “Superintelligence. Paths, Dangers, Strategies” (Oxford University Press; superinteligência – caminhos, perigos e estratégias), que se tornou best-seller nos Estados Unidos. Na obra, afirma que a superinteligência “é, possivelmente, o mais importante e intimidador desafio que a humanidade jamais enfrentou”.

Bostrom compara nosso uso da inteligência artificial ao que faz uma criança brincando com uma bomba. O que está em jogo, de acordo com ele, muito mais que uma explosão, é nossa capacidade de manter a própria condição humana.

Essa preocupação já estava presente entre os pioneiros da inteligência artificial, nos anos 1950. Eles haviam percebido que as máquinas poderiam fazer muito mais do que simplesmente pensar numericamente. Eram (e, de fato, tornaram-se cada vez mais) capazes de deduzir e de inventar provas lógicas.

Atualmente, elas vão bem além. Podem aprender, e não só a partir daquilo que nós lhes ensinamos. Esse aprendizado também se baseia no rastreamento das informações que circulam nos meios digitais, uma imensidão de dados interpretada por meio de algoritmos cada vez mais complexos e opacos.

É por causa desse rastreamento que você, após escrever a um amigo dizendo que pretende ir a Santiago, passa a receber mensagens publicitárias sobre passagens de avião e hospedagem no Chile.

O avanço exponencial e combinatório do poder computacional difundido nos mais variados tipos de objeto não amplia só a magnitude das informações coletadas. Amplia também, e sobretudo, a capacidade dos algoritmos de analisar e interpretar esses dados.

Sua geladeira saberá que você está sem leite. Sua máquina de lavar dirá qual o momento de menor consumo de energia no sistema ao qual você está ligado. A temperatura dos ambientes poderá ser regulada em função da presença ou da ausência de pessoas em seu interior e à distância.

Já existem técnicas que permitem circunscrever a aplicação de fertilizantes e agrotóxicos a necessidades específicas de cada lote da unidade produtiva, por meio da interpretação de informações captadas por drones e decodificadas por poderosos algoritmos. Baterias de celulares serão recarregadas por sinais de rádio, via wi-fi.

INTERNET DA ENERGIA

Está emergindo uma internet da energia, que monitora o que os domicílios, as fábricas, os escritórios e as fazendas produzem a partir do Sol, dos ventos e da biomassa, distribuindo essa energia conforme as necessidades do conjunto dos usuários.

Quem produzir mais energia do que consome tem crédito; quem produzir menos paga. São as chamadas “redes inteligentes”, que compatibilizam noções que o século 20 sempre considerou antagônicas: descentralização e eficiência.

As virtudes da internet das coisas, o fato de que cada um dos bilhões de objetos de nosso cotidiano vai sendo dotado de um protocolo de internet que o identifica e faz dele uma fonte de informação, a cognificação generalizada do mundo material, isso também se estende às pessoas. É o que especialistas batizaram de computação afetiva.

A Apple, no início de 2016, comprou a Emotient, empresa líder em reconhecimento facial e que tem a ambição de detectar nossos estados emocionais. É a internet das emoções. Você está triste? O que posso fazer para que você melhore seu estado de ânimo?

Alguns dos estudiosos do tema sustentam que nós somos a última geração mais inteligente que as máquinas.

Essa espécie de triunfo da inteligência humana sobre ela mesma se apoia naquilo que o historiador Yuval Noah Harari, em seu recém-publicado “Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã” (Companhia das Letras), chama de o grande desacoplamento: “A inteligência está se desacoplando da consciência”.

Até há pouco, apenas seres conscientes “podiam realizar tarefas que exigissem alto grau de inteligência, como jogar xadrez, dirigir automóveis, diagnosticar doenças ou identificar terroristas”.

COGNIÇÃO SEM CORPO

Já temos, porém, e teremos cada vez mais, uma inteligência não apenas sem corpo como também desprovida de emoções e sentido social e, no entanto, capaz de realizar tarefas complexas com mais eficiência que os humanos.

Gerd Leonhard, empreendedor e pesquisador, vai além no livro “Technology vs. Humanity: The Coming Clash Between Man and Machine” (Fast Future; tecnologia x humanidade: o embate vindouro entre homem e máquina), publicado há alguns meses. Ele sustenta que a inteligência artificial representa uma dissociação entre nossa capacidade de interferir no mundo e as bases éticas dessa intervenção.

A maior ameaça ligada à inteligência artificial deriva do fato de que as máquinas conseguem mimetizar nossos padrões de comportamento ético, mas, por definição, não podem e jamais poderão se dotar de consciência ética. A tecnologia é um meio para atingir fins que só podem estar fora dela.

Se máquinas dotadas de inteligência artificial ampliam seu poder de gestão e de intervenção na sociedade e nos indivíduos, há o risco de que elas próprias definam as finalidades de suas ações.

Assim, nossa condição humana passaria a depender cada vez mais de dispositivos com aptidão para despertar em nós sentimentos que nos definem, como nossa felicidade, nosso sentido de pertencimento e até nossa libido.

Leonhard propõe uma espécie de agência para proteger os seres humanos, um Conselho Global de Ética Digital. Não se trata de esforço (vão) para deter a expansão das tecnologias digitais, mas sim para garantir que elas não comprometam aquilo que nos faz humanos.

Um exemplo? Nossa capacidade de desenvolver atividades úteis para os outros, de fortalecer nossa interação e, portanto, a própria coesão social. Em outras palavras, nosso trabalho.

DESEMPREGO

É justamente aí que entra a segunda grande ameaça representada pela inteligência artificial.

Os mercados de trabalho estão sofrendo mudanças que respondem, em grande parte, pela espantosa reconcentração da riqueza nos países desenvolvidos, em particular nos Estados Unidos.

Até pouco tempo atrás, considerava-se que apenas trabalhos rotineiros e de baixa qualificação seriam deslocados pelo avanço da computação. A inteligência artificial, porém, derrubou essa barreira protetora.

Num escritório de advocacia, por exemplo, as máquinas são muito mais eficientes na pesquisa de julgamentos passados e de artigos de lei que podem ajudar na argumentação de um caso específico. Na medicina, a mesma ideia se aplica à interpretação de chapas radiológicas. A preciosa sabedoria dos taxistas não chega aos pés do que um dispositivo inteligente é capaz de saber.

Claro que a revolução digital também cria empregos, sobretudo na interação entre homens e máquinas. Mas ela o faz em volume menor que a Revolução Industrial, que, há dois séculos, começou a substituir as ocupações agrícolas.

Não é que o trabalho vá subitamente desaparecer, como atesta a situação de quase pleno emprego nos Estados Unidos. O mercado de trabalho, contudo, vai consolidando um padrão polarizado. A minoria dos detentores de conhecimentos apropriados à era digital consegue ganhos de renda, enquanto a grande massa dos assalariados aproxima-se da pobreza e, sobretudo, da irrelevância.

A capacidade de aprendizagem das máquinas e a multiplicação dos robôs torna cada vez mais fácil substituir o trabalho humano.

Atualmente, já se pode robotizar quase inteiramente o trabalho nas cadeias de fast-food, com as vantagens de maior padronização do produto, melhor higiene e amortização do investimento em menos de dois anos.

Se alguém imagina que isso se limita aos países desenvolvidos, vale lembrar que a China já é o maior mercado consumidor de robôs do mundo –e vai se tornando também o principal produtor.

DESIGUALDADE

Carl Frey e Michael Osborne dirigem o Programa de Tecnologia e Emprego da prestigiosa Oxford Martin School, no Reino Unido. Seus trabalhos mostram que o ritmo dessas metamorfoses se acelera, que a lista de setores por elas atingidos se amplia e que, diferentemente das inovações típicas da era industrial, os benefícios das mudanças tecnológicas não são, nem de longe, amplamente distribuídos.

Levou 119 anos para que o fuso industrial, uma vez inventado, se tornasse padrão na tecelagem. A internet difundiu-se em menos de uma década, e os objetos conectados em rede, que já eram 13 bilhões em 2013, totalizarão nada menos que 500 bilhões em 2030.

As consequências sobre os empregos serão devastadoras, mostram Frey e Osborne. Estão em risco 47% dos postos de trabalho nos EUA, 57% na média dos países, desenvolvidos, da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), 69% na Índia, 77% na China e 85% na Etiópia. A destruição tende a ser maior onde a estrutura ocupacional é mais distante da economia do conhecimento.

Tais preocupações não se confinam ao universo dos que desconfiam da tecnologia. Elas são hoje expressas por alguns dos mais destacados protagonistas contemporâneos da cultura digital.

Em 2015, o físico Stephen Hawkin e os empresários Elon Musk (criador da Tesla e um dos mais reconhecidos inovadores do mundo) e Bill Gates publicaram documento com forte alerta sobre as ameaças trazidas pelo avanço da inteligência artificial. A principal delas está na perspectiva de drástica redução de postos de trabalho.

Em fevereiro deste ano, Gates sugeriu que os proprietários de robôs deveriam pagar um imposto que serviria ao treinamento e à reinserção dos trabalhadores deslocados pela inteligência artificial.

COMPARTILHAMENTO

A terceira grande ameaça representada pelo avanço da inteligência artificial refere-se à economia do compartilhamento.

Em 2010, Rachel Botsman e Roo Rogers publicaram um livro sobre a ascensão do consumo colaborativo. Contavam, encantados, a história dos jovens que tiveram a ideia de hospedar em casa pessoas que não encontravam lugar em hotéis durante um congresso de design, em San Francisco, em 2007.

A partir desse episódio, eles criaram um dispositivo digital que resultou no Airbnb. A novidade não era, claro, o colchão de ar e o “bed and breakfast” [cama e café da manhã], abreviados no nome daquela que se tornou a principal central de reservas de hospedagem no mundo atual.

O fascinante na iniciativa era a possibilidade, aberta pela conectividade generalizada, de que as pessoas colocassem à disposição umas das outras bens e serviços dos quais não necessitavam e que poderiam ser compartilhados.

Os resultados seriam a ampliação da renda de quem oferecia bens para compartilhamento, os preços mais baratos do que os cobrados pelos mercados convencionais e o potencial de economizar recursos materiais, com benefícios crescentes para o meio ambiente.

O segredo estava em conseguir que indivíduos que não se conheciam confiassem uns nos outros devido às referências digitalizadas. Daí o título do livro de Botsman e Rogers: “O que É Meu É Seu” (Bookman). Como a revolução digital permite a universalização da prática, o resultado seria o aumento generalizado da prosperidade.

A marca distintiva da economia moderna, a propriedade, seria então substituída pelo acesso. Por que possuir um carro se posso pegar carona? Por que comprar um jornal se as notícias estão disponíveis de forma aberta e gratuita na internet?

A era digital parecia prestes a realizar os mais nobres ideais de cooperação social e compartilhamento que os movimentos operários perseguem desde o século 19, sem o risco da centralização e da burocracia que marcaram o socialismo real.

O consultor e futurologista Jeremy Rifkin chega a prever “o eclipse do capitalismo” no livro “Sociedade com Custo Marginal Zero: A Internet das Coisas, os Bens Comuns Colaborativos e o Eclipse do Capitalismo” (M. Books).

Para Rifkin, o capitalismo será superado não por um tipo de tomada do Palácio de Inverno, ação pela qual os bolcheviques, em 1917, iniciaram a formação da União Soviética, mas pelo triunfo da cooperação social descentralizada, cujo caminho terá sido aberto pela economia digital.

Já Yochai Benkler publicou em 2011 o livro “The Penguin and the Leviathan”, com o subtítulo “How Cooperation Triumphs over Self-Interest” (Crown Business; o pinguim e o leviatã: como a cooperação supera o autointeresse).

A euforia emancipatória, contudo, teve vida curta. Em pouco tempo, aquilo que aparecia como expressão virtuosa de cooperação direta e descentralizada entre indivíduos autônomos revelou-se um dos mais importantes epicentros da acumulação financeira.

Pior: a ambição de compartilhamento na hospedagem acabou por contribuir para a degradação de cidades como Amsterdã, Barcelona, Berlim, Paris e Nova York.

CONCENTRAÇÃO

Em vez de dividirem com os outros os espaços não usados, proprietários venderam seus imóveis a companhias interessadas em explorar a locação. Os locais figuravam como bens pessoais, mas pertenciam a empresas.

Por causa disso, várias cidades adotaram legislações para impedir a desfiguração de suas áreas turísticas, como registra o norte-americano Tom Slee em “What’s Yours Is Mine: Against the Sharing Economy” (OR Books; o que é seu é meu: contra a economia do compartilhamento).

Não importa se alojamento, transporte, serviços de limpeza ou refeições rápidas; Slee mostra que a economia do compartilhamento converte-se sistematicamente em seu contrário. Ou seja, em lugar de distribuir oportunidades, ela vem dando lugar a uma concentração crescente de renda e de poder.

A quarta grande ameaça trazida pela inteligência artificial refere-se à privacidade. Michael Sandel, professor de filosofia política em Harvard, pergunta-se se não é perigoso estarmos nos aproximando de um cotidiano em que a vigilância –de governos, empresas de que compramos, companhias de seguro e empregadores– torna-se cada vez mais intrusiva.

ADEUS À PRIVACIDADE

As companhias de seguro já começam a propor a clientes que vistam dispositivos capazes de acompanhar sua vida cotidiana (exercícios físicos, consumo de álcool e tabaco, alimentação, sono). A partir dos dados coletados pela indumentária, os valores da apólice seriam elevados ou reduzidos. Segundo Sandel, a troca da privacidade pela conveniência levanta questões éticas que deveriam pautar as decisões de empresas e indivíduos. E se um empregador exigir que seu funcionário use o dispositivo?

Mas o pior é que estamos o tempo todo fornecendo o que há de mais precioso no mundo contemporâneo, ou seja, a informação, de forma gratuita e inteiramente involuntária. Em uma fala no TED (conferência sobre tecnologia, entretenimento e design), a jornalista especializada em tecnologia Marta Peirano mostra que, sem que saibamos, nossos celulares e todos os dispositivos conectados de que nos servimos estão produzindo informações processadas por algoritmos cada vez mais poderosos.

Essas informações não são só utilizadas por serviços de inteligência mas também por empresas que nos oferecem pontos por compras e que conhecem melhor nossos hábitos que nossos familiares. Diferentemente das empresas telefônicas, a maneira como esses dados são usados não é objeto de regulação estatal.

A privacidade, muito mais que um instrumento, é um valor. A ideia tão frequente de que o cidadão honesto nada tem a temer com a transmissão à rede dos dados de sua vida pessoal passa por cima

justamente de um dos mais importantes fundamentos éticos da vida contemporânea, que é o poder do indivíduo sobre sua vida pessoal.

Não foi à toa que, em fevereiro, a Alemanha proibiu a comercialização da boneca Cayla, que ouvia e dialogava com as crianças. Enquanto fazia isso, ela armazenava as informações do diálogo –e o fazia sem o conhecimento dos pais. A preocupação das autoridades alemãs não impediu que o produto continuasse à venda nos EUA.

DISCUSSÃO ÉTICA

Em suma, nunca foram tão poderosos os meios técnicos para melhorar a saúde humana, permitir que as pessoas levem adiante trabalhos interessantes, favorecer a cooperação social e ampliar a soberania dos indivíduos sobre suas vidas e suas decisões. Ao mesmo tempo, nunca foram tão avassaladoras as ameaças que emergem da concentração de riqueza e de poder ligada a esses meios técnicos.

É fundamental que se amplie a discussão pública (sobretudo a de natureza ética) sobre esses temas, pois é daí que virão políticas e iniciativas empresariais e cidadãs que poderão colocar a inteligência artificial a serviço do florescimento da espécie humana.

RICARDO ABRAMOVAY, 63, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, é autor de “Muito Além da Economia Verde” (Planeta Sustentável).

CAROLINA DAFFARA, 32, é infografista da Folha.

GABRIEL CABRAL, 28, editor-assistente de Imagem da Folha e fotógrafo.

THEA SEVERINO, 36, editora de Imagem da Folha

Os dias eram assim, sim, por Alex Solnik

Para os que eram jovens demais e, portanto, não podem lembrar, para os que eram alienados demais para lembrar e para os que, por conveniência ou conivência, preferem esquecer, compartilho texto de Alex Solnik.

Foto escolhida por mim.

Paulo Martins

Por Alex Solnik

“Os dias eram assim, sim

Às 6 da manhã do dia 4 de setembro de 1973 eu fui acordado pela minha mãe, que estava de penhoir (ainda existe penhoir?) para atender um senhor que estava na porta dizendo ser pai de um amigo meu.
Desci as escadas de pijama reforçado (fazia frio) e chinelos de palha japoneses.
Nunca tinha visto aquele sujeito antes. Uns 40 anos, cabelos grisalhos, um elegante cachecol. “Meu filho saiu ontem com você e ainda não voltou” disse ele.
Eu não estava entendendo muito bem, mas resolvi ajudar.
“Quer que eu saia ou o senhor prefere entrar”? perguntei.
“Prefiro que você saia”, disse ele.
Logo no primeiro passo que eu dei pra fora da porta fui surpreendido por dois homens que saltaram na minha frente, um deles empunhando uma metralhadora.
“É você mesmo, seu filho da puta” disse o outro, enquanto me aplicava um soco no estômago. Eu não ofereci resistência, é claro. Não gritei, não falei, não perguntei.
Dois deles invadiram a casa dos meus pais – eu ainda morava com eles, aos 24 anos – e um terceiro me conduziu para a viatura C-14 marrom sem placas estacionada na esquina.
Em alguns minutos, os que invadiram a casa embarcaram na viatura mostrando para mim três publicações que justificariam minha prisão: “Maravilhas do conto russo”, uma coletânea de autores clássicos do se. 19; um exemplar da Revista da Civilização Brasileira com a matéria de capa “A Igreja e o regime militar” e uma edição do jornal do DCE-USP, então proscrito.
Antes de partirmos – eu de pijama e chinelos – colocaram um capuz sem furos na minha cabeça e mandaram que eu deitasse no vão entre os bancos dianteiro e traseiro.
No trajeto, um deles pronunciou uma frase que não esqueço até hoje:
“Hitler não completou o serviço que começou com vocês”.
Passei o primeiro dia sentado num banco do que parecia ser um saguão, de pijama e encapuçado. De vez em quando, sem mais nem menos, dois caras sentavam ao meu lado e me aplicavam socos onde lhes aprouvesse, inclusive na minha cabeça, além de puxar os pelos do meu peito.
Esperavam que eu reagisse para então me infligir sofrimentos piores, mas eu não abria a boca para reclamar.
Depois me levaram para o primeiro interrogatório. Meu interrogador estava à paisana. Logo avisou que se eu mentisse ia me aplicar os primeiros choques, nos dedos.
Apanhou a agenda de telefones apreendida no meu quarto e passou a exigir que eu explicasse quem eram as pessoas por trás dos nomes.
À noite, o que parecia ser o chefe mandou acompanhá-lo. No caminho falei pela primeira vez:
“Vocês se enganaram comigo. Eu não sou de grupo nenhum, não tenho nada a ver com isso”.
“Tem, sim” reabteu ele, sem levantar o tom de voz. “Você é o Hippie da A.P.”.
Eu até poderia ser confundido com um hippie, usava cabelos até os ombros, vasta barba, mas nunca tive esse apelido nem nunca fui da A.P., Ação Popular.
Ele me acompanhou até a cela X-5. No meio do cômodo de 9 metros quadrados um homem dormia em cima do colchão de capim.
O homem que me trouxe o acordou:
“Conhece esse cara”? perguntou ao preso.
Este apenas sacudiu o rosto para os lados.
Dormi a primeira noite no mesmo colchão, meus pés na altura da cabeça do encarcerado.
O que eu vi nos dias seguintes foram cenas de filme de terror.
Meu companheiro de cela, que estava preso há sete dias e se recusava a sequer dialogar com os torturadores era torturado dia sim, dia não.
Ele voltava severamente machucado sempre que era conduzido ao segundo andar, de onde vinham gritos lancinantes.
Enquanto as vítimas gritavam de dor, o volume do rádio era aumentado até o limite.
As seis celas – três de um lado do pátio e três do outro – estavam lotadas. Uma delas era a cela das mulheres.
Certo dia, um dos torturadores desceu à carceragem num estado de excitação tal que parecia que um exu tinha baixado nele. Vestindo uma toga ele se perfilou diante da cela feminina e começou a berrar para uma das presas frases chulas tais como:
“É hoje que nós vamos fritar os ovos do teu marido! Quer assistir”?
Quando me mandaram para a cela X-3, que ficava em frente à minha eu pensei que iam dedetizar a X-5, alguma coisa assim. Só quando voltei, no dia seguinte, meu companheiro de cela me contou que me mudaram de cela para eu não testemunhar a sua possível morte.
Ele tinha sido colocado, naquele dia, na Cadeira do Dragão. Nu, molhado, amarrado ao objeto de metal enfrentou, nas nove horas seguintes sessões de socos, pontapés, cusparadas e choques elétricos nas partes mais sensíveis do corpo, como na ponta do pênis, no saco escrotal, nos mamilos.
Só não morreu porque, quando sentiu que estava a ponto de romper os laços com a vida resolveu dizer o seu nome, rompendo o silêncio.
Tal como os nazistas que tentam até hoje falsificar a história, negando o Holocausto, os bolsonaristas, a versão tupiniquim dos integralistas de Plinio Salgado, todos fascistas, no fundo, tentam debochar da minissérie da Globo que retrata a barbárie da ditadura militar chamada “Os dias eram assim”.
Sem nenhuma acusação, sem que ninguém me tivesse delatado, sem nenhum indício de que eu pertencesse a grupos de luta armada ou desarmada ou tivesse participado de alguma ação classificada como “subversiva”, fiquei preso durante 45 dias nas dependências do II Exército que é onde ficava o DOI-Codi, na Rua Tutóia.
Os dias eram assim, sim. “

O fim das ilusões conciliadoras, por Aldo Fornazieri

Publicado no Jornal GGN, em 26/04/2017

O fim das ilusões conciliadoras

por Aldo Fornazieri

Os três governos petistas – dois de Lula e o primeiro de Dilma – foram, sem dúvida. arranjos conciliadores em sentido amplo do termo. Abrigavam partidos que representavam interesses diversos, incluindo setores do capital nacional, internacional, do agronegócio etc. Foram governos de conciliação também no sentido ideológico ao abrigarem partidos conservadores como o PP, o PTB, o PRB, entre outros.

A partir do segundo mandato de Lula, o eixo principal das alianças teve na forte estrutura e capilaridade do PMDB uma nitidez centrista, secundado pelos partidos conservadores, hoje identificados no chamado centrão. A funcionalidade dessa aliança conciliadora teve no chamado jogo do ganha-ganha, bem analisado por André Singer, seu alicerce de sustentação. Sem entrar no mérito dos erros e dos acertos dos três governos, o fato é que sem o ganha-ganha, a conciliação se torna insustentável, como, de fato, se tornou, levando à derrubada do governo Dilma.

Os governos de conciliação petistas talvez tenham um paralelo, guardadas as diferenças históricas, no Gabinete de Conciliação do Marquês do Paraná, no Segundo Reinando, entre 1853 e 1856. Nos governos petistas, tal como naquele Gabinete, grupos que estavam alijados do poder passaram a integrar as estruturas governamentais. Sob o Gabinete de Paraná, houve um período de paz e de certa prosperidade, após uma série de dissídios liberais em várias províncias. Sob os governos petistas houve uma pacificação das lutas sindicais e sociais, depois de sua ascensão cuja trajetória havia se projetado nos processos de redemocratização, da Constituinte e das lutas trabalhistas, sindicais e sociais. As ações do governo, tanto em relação à política de recuperação do salário mínimo, quanto às diversas políticas sociais de combate à pobreza e a desigualdade, resultaram nessa relativa paz social. No caso do Gabinete de Paraná, Cristiano de Abreu, por exemplo, nota que a “conciliação implicava abrandamento das paixões, renúncia aos meios violentos, …”.

No Gabinete de Paraná e nos governos do PT, viabilizou-se um reformismo brando em face das estruturas rígidas e conservadoras do poder no Brasil. Como resultado, a Conciliação do Segundo Reinando fortaleceu a unidade das elites e a sua estabilidade. Mas com a morte de Paraná, ainda durante o governo, quem assumiu a chefia do Gabinete foi Caxias, o Duque de Ferro, que havia combatido quase todas as revoluções regenciais e liberais do período anterior. A instabilidade política retornou com todo ímpeto ao Segundo Reinado, provocando o seu fim em três décadas.

O resultado da conciliação petista traduziu-se numa instabilidade política generalizada, com o colapso do sistema político, e num catastrófico golpe que expurgou as esquerdas do poder, promove uma grave regressão nos direitos sociais e articula uma via conservadora para as eleições de 2018. Ou seja, as elites conservadoras triunfaram e agora procuram meios de estabilizar o poder com a aposta em uma estratégia de constituição de um longo ciclo de poder.

Em resumo: nem Paraná e nem Lula, nos seus devidos tempos e com suas específicas causas, conseguiram produzir reformas fortes que mudassem substantivamente o padrão conservador, anti-social e antipopular das estruturas de poder no Brasil. Como diria Raymundo Faoro, a conciliação é um método de operação das elites para permanecerem no poder, mantendo o statu quo, sob uma enganosa aparência de mudança. Como caminho de mudanças efetivas, a conciliação fracassou.

Os inimigos do povo

As conciliações enganam os sentidos políticos das partes mais fracas que as integram. Cria-se uma ilusão de amizade e de comunhão de propósitos. Perde-se de vista a lógica antagônica amigo-inimigo, tão bem ilustrada por Carl Schmitt, mas que já estava pressuposta em boa parte dos filósofos políticos anteriores. Na medida em que o conflito é inerente às sociedades humanas, ele jamais pode ser expurgado da atividade política. A relação amigo-inimigo sempre existirá enquanto os humanos forem dotados desta natureza. O que ocorre é que esta relação segue gradações diferentes, determinadas pelas circunstâncias e pelos interesses dos atores do jogo político.

A gradação mais branda da relação de inimizade implica em tratar o oponente como um adversário e a mais extrema, resulta na guerra. Se a guerra permite perceber com nitidez e pureza a relação, a conciliação dissolve a inimizade na normalidade política, trazendo desvantagens evidentes para os setores subalternos da sociedade que lutam por igualdade, direitos e justiça. Esses fins e bens legítimos do corpo político sempre têm inimigos e esses inimigos precisam ser tratados como inimigos. A política é, de fato, a continuidade da guerra por outros meios, como sentenciou Clausewitz. Mas a atividade política pode desaguar na guerra, sendo esta sempre uma possibilidade daquela.

Dissolver o antagonismo amigo-inimigo na política representa deixar um vazio estratégico e cavar o fosso da própria derrota. O problema da conciliação do PT é que os inimigos estavam dentro do governo. Mesmo que pudessem estar. pelas circunstâncias da singularidade da vitória eleitoral do PT, deveriam ter sido tratados ou vigiados como inimigos. O erro consistiu em tratá-los como amigos.

O PT, em estando no governo, viu apenas como inimigo o PSDB e seus grupos orbitais. Viu-os, recobrindo-os com uma capa ideológica, a capa do neoliberalismo, dissolvendo, em grande medida, o tipo de risco que eles representavam para os interesses reais das grandes massas do povo localizadas nas periferias. Criou-se um curto-circuito entre o discurso das esquerdas (e não só do PT) com os interesses das massas populares. Nos governos de conciliação, em grande medida, o espaço do inimigo fica vazio ou é preenchido por conteúdos que dissolvem o combate e a polarização.

Supor que nas democracias se dissolve o antagonismo amigo-inimigo representa um auto-engano. Se esse antagonismo implica gradações, então significa que, a depender das conjunturas e dos atores, se pode disputar ou fazer alianças com adversários e se pode rivalizar e combater inimigos sem que isto leve à violência e à guerra, pois as regras das disputas e dos combates estão constitucionalmente definidas.

Evidentemente, quando se fala de inimigo se está falando no sentido político do termo ou em um agregado humano definido por uma comunhão de vontades. Isto é: um movimento, um partido, um povo, um Estado. Na democracia, os indivíduos podem até ser amigos, mas no jogo político público, enquanto membros de partidos ou movimentos hostis, são inimigos.

É impossível dizer onde o PT chegaria se não tivesse optado pela conciliação. Mas é possível constar que a conciliação, como método e estratégia de mudança histórica, fracassou. Diante disso, os petistas podem e devem rever sua estratégia no processo de Congresso partidário. Se o caminho não é o da conciliação, a estratégia deve ser de longo prazo, de construção de um campo democrático, progressista e de esquerda, constituindo espaços de poder popular de baixo para cima.

Essa estratégia deve remeter-se a uma representação das massas populares, das pessoas que vivem nas periferias, das chamadas classes C, D e E, a partir de uma nova pedagogia política emancipadora, que saiba combinar participação horizontal com estruturas verticais. Será preciso propor um conjunto de reformas radicais, removedoras das condições de desigualdade e novas políticas públicas. Será preciso reinventar os métodos de governo, viciados pelo burocratismo e comodismo. Será preciso propor um novo federalismo, radicalmente descentralizador, que permita uma ação e um controle da sociedade organizada sobre o Estado.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política.

 

‘Aqui se Fabricam Pobres’: a previdência chilena como antimodelo

Um efeito colateral de ser o administrador solitário deste blog é a descrença nas informações veiculadas pela grande mídia e seus “jornalistas amestrados”.

Desde o início deste blog, em 04 de novembro de 2014, venho aprendendo a separar informação e opinião, manipulação e verdade, chute e conhecimento, torcida e fato.

Venho, dia-a-dia, aprendendo  ler nas entrelinhas, nas escolhas dos verbos e adjetivos e, com a experiência, já sei quem são os amigos que a grande mídia e seus “jornalistas amestrados” pretendem esconder e proteger e quem são os inimigos – os de sempre e os da vez – que eles pretendem detonar.

Se você me apresentar um fato político ou econômico e os atores envolvidos, eu posso quase adivinhar a linha geral dos comentários dos “jornalistas amestrados” de política, de economia e dos jornalistas “genéricos”, considerados pelos grandes barões da mídia como “paus para todas as obras”.

Esta semana ouvi um desses “jornalistas amestrados” informar que a reforma da previdência no Chile foi um sucesso e que nem Bachelet, presidente eleita pela oposição,  queria mexer em algo que estava dando tão certo.

Como acompanho – com uma certa distância, é verdade – os acontecimentos no Chile, onde estive em 2016, sei que se trata de um chute, ou manipulação, ou torcida ou mera opinião, muito comum em jornalistas nacionais que são muito bem pagos para fazerem isto mesmo: venderem um modo de pensar neoliberal, mesmo se sua opinião se choca frontalmente com a realidade.

O advogado chileno Carlos Rivadeneira Martínez escreveu um livro sobre o desastre da reforma da previdência no Chile, intitulado “Aqui se Fabricam Pobres”. No artigo a seguir, Joana Vasconcelos analisa alguns pontos abordados no livro. Trata-se de um contraponto ao que a grande mídia e os seus “jornalistas amestrados” repetem diariamente. Por favor, leia e tire as suas próprias conclusões.

Paulo Martins

 

‘Aqui se Fabricam Pobres’: a previdência chilena como antimodelo

Joana Salém Vasconcelos, de Santiago do Chile

Publicado em correiocidadania.com.br
18/04/2017
“Aqui se Fa­bricam Po­bres”: esse é o tí­tulo do livro do ad­vo­gado Carlos Ri­va­de­neira Mar­tínez, que acaba de ser lan­çado em San­tiago do Chile. Nele, o autor ana­lisa o fun­ci­o­na­mento e as con­sequên­cias so­ciais do sis­tema pre­vi­den­ciário chi­leno, criado pela di­ta­dura e vi­gente até hoje. Esse sis­tema tem sido re­jei­tado mas­si­va­mente em pro­testos da ci­da­dania chi­lena, que no ano pas­sado al­can­çaram a marca de 2 mi­lhões de pes­soas con­vo­cadas pelo mo­vi­mento No + AFP. As AFP (Ad­mi­nis­tra­doras de Fundos de Pen­sões) são em­presas pri­vadas que re­cebem 10% do sa­lário de todos os chi­lenos para ge­ren­ciar suas apo­sen­ta­do­rias no mer­cado fi­nan­ceiro.

Nos úl­timos tempos, bra­si­leiros e chi­lenos foram às ruas por mo­ti­va­ções pa­re­cidas: de­fender o di­reito a uma apo­sen­ta­doria pú­blica e digna para todos os ci­da­dãos. En­quanto os bra­si­leiros buscam barrar a Re­forma da Pre­vi­dência do go­verno Temer, os chi­lenos re­jeitam o sis­tema de apo­sen­ta­do­rias do seu país, que é to­tal­mente pri­vado.

Para Ri­va­de­neira, as AFP se con­ver­teram em “fá­bricas de po­bres”. Se­gundo uma pes­quisa da Fa­cul­dade de Ad­mi­nis­tração e Eco­nomia da Uni­ver­si­dade de San­tiago do Chile, 60% dos chi­lenos são fa­vo­rá­veis à subs­ti­tuição do atual sis­tema por uma pre­vi­dência pú­blica e so­li­dária, en­quanto 22% de­fendem a cri­ação de uma pre­vi­dência es­tatal com­ple­mentar e apenas 5% con­si­deram o atual sis­tema “apro­priado”.

Nesse ce­nário, tudo in­dica que bra­si­leiros e chi­lenos es­tejam vi­vendo dis­tintos mo­mentos da mesma luta. A coin­ci­dência for­ta­lece a tese de que o Brasil es­taria sendo sub­me­tido a um novo ciclo his­tó­rico da cha­mada “dou­trina do choque”. Tal como ana­li­sado por Naomi Klein, trata-se de uma es­pécie de blitz­krieg econô­mica, com pa­cotes de re­formas pró-mer­cado im­postos si­mul­ta­ne­a­mente e a uma ve­lo­ci­dade in­com­pa­tível com o sis­tema de­mo­crá­tico. Es­taria o go­verno bra­si­leiro ins­pi­rado pelo modus ope­randi econô­mico de Au­gusto Pi­no­chet? Nessas cir­cuns­tân­cias, o que nós, bra­si­leiros, po­demos aprender com o sis­tema pre­vi­den­ciário chi­leno?

Como fun­ciona a pre­vi­dência chi­lena?

O atual sis­tema de pen­sões chi­leno foi for­mu­lado em 1981 por José Piñera, mi­nistro do tra­balho de Pi­no­chet e irmão do ex-pre­si­dente Se­bas­tián Piñera. Junto com a Re­forma La­boral de 1979, foi o carro chefe da “dou­trina do choque” apli­cada ao país pelos Chi­cago Boys, no con­den­sado pe­ríodo de três anos. Desde então o sis­tema não so­freu mo­di­fi­ca­ções, apenas al­guns ajustes que não al­te­raram sua es­tru­tura ori­ginal. Em que con­siste o sis­tema das AFP?

Pri­mei­ra­mente, todos os chi­lenos são obri­gados a en­tregar 10% do seu sa­lário para uma em­presa pri­vada (AFP), além de arcar com uma taxa de ser­viço que varia em torno da média de 1,9%. No início, eram mais de 20 AFP, in­cluindo com­pa­nhias de ca­pital na­ci­onal e es­tran­geiro. Pas­sadas três dé­cadas de fa­lên­cias, fu­sões e aqui­si­ções, hoje restam so­mente seis: a Ha­bitat (com 27% do mer­cado); a Pro­vida (26%); a Cu­prum (20%); a Ca­pital (20%); a Plan­Vital (3,5%); e a Mo­delo (3,5%), se­gundo dados da Su­pe­rin­ten­dência de Pen­sões.

O di­nheiro que os chi­lenos en­tregam às AFP é au­to­ma­ti­ca­mente in­ves­tido no mer­cado de ca­pi­tais. Se­gundo a Su­pe­rin­ten­dência de Pen­sões, em agosto de 2016 o total de cli­entes das AFP chegou a 10.138.374 pes­soas, que devem optar entre cinco mo­da­li­dades de in­ves­ti­mento (A, B, C, D, E). As mo­da­li­dades im­plicam em di­fe­rentes riscos fi­nan­ceiros. Em ou­tras pa­la­vras, cada as­sa­la­riado chi­leno é obri­gado por lei a en­tregar seu di­nheiro para seis em­presas es­pe­cu­larem no mer­cado fi­nan­ceiro.

Foi dessa forma que o sis­tema pre­vi­den­ciário chi­leno deu origem a um ro­busto mer­cado de ca­pi­tais, antes ine­xis­tente no país. Mais que isso, es­tru­turou um ne­gócio se­guro e ba­rato ao em­pre­sa­riado das AFP, já que a in­jeção de di­nheiro novo é ga­ran­tida e a massa as­sa­la­riada do país foi amar­rada na base de sus­ten­tação do sis­tema.
Pre­vi­dência e mer­cado fi­nan­ceiro

E o que acon­tece quando os mer­cados geram ren­di­mentos ne­ga­tivos? Ali­cer­çados na ide­o­logia li­beral, se­gundo a qual cada cli­ente “es­co­lheu li­vre­mente” seu nível de risco, quem deve arcar com as con­sequên­cias dessa es­colha são os pró­prios apo­sen­tados. Ou seja, ren­di­mentos ne­ga­tivos sig­ni­ficam re­dução do valor das apo­sen­ta­do­rias. As AFP não se com­pro­metem com ne­nhum li­mite mí­nimo para o valor das pen­sões e, por­tanto, uma bolha es­pe­cu­la­tiva pode ar­ruinar a apo­sen­ta­doria de uma ge­ração in­teira de tra­ba­lha­dores.

Outra ca­rac­te­rís­tica im­por­tante é que, à di­fe­rença do Brasil, o em­pre­gador não con­tribui com a apo­sen­ta­doria do seu em­pre­gado. O aporte in­di­vi­dual de cada as­sa­la­riado será a única fonte para seu fu­turo, sub­me­tido a cál­culos tec­ni­ca­mente con­tro­lados pelas AFP. Isso porque a es­sência do sis­tema é in­di­vi­du­a­lista e re­pro­du­tora de de­si­gual­dades. A tra­je­tória in­di­vi­dual vai de­ter­minar o valor da pensão. Ou, como dizem os chi­lenos, “cada quien se rasca con sus uñas”.

No Brasil, ao con­trário, o INSS ainda se fun­da­menta em um “sis­tema so­li­dário”: além dos pa­trões também con­tri­buírem obri­ga­to­ri­a­mente, os as­sa­la­ri­ados do pre­sente fi­nan­ciam os atuais apo­sen­tados e serão sus­ten­tados pelos as­sa­la­ri­ados do fu­turo. Com a atual re­forma da pre­vi­dência, con­tudo, a apo­sen­ta­doria pú­blica bra­si­leira re­ce­berá um “choque” des­tru­tivo de di­men­sões ater­ra­doras. Não po­demos es­quecer que o sen­tido geral da pro­posta de Temer foi inau­gu­rado no pri­meiro go­verno Lula. Aliás, é sig­ni­fi­ca­tivo que a re­forma da pre­vi­dência de Lula tenha sido o pri­meiro pa­cote de le­al­dade en­tregue pelo PT aos mer­cados fi­nan­ceiros em 2003, o que mo­tivou a rup­tura dos par­la­men­tares fun­da­dores do PSOL.

A de­te­ri­o­ração con­tínua do INSS abrirá es­paço para que a pre­vi­dência pri­vada se for­ta­leça. Se até agora o PT con­tri­buiu para o dis­curso da “so­lução com­ple­mentar”, es­tamos ca­mi­nhando para a con­so­li­dação do dis­curso da pre­vi­dência pri­vada como “so­lução prin­cipal”, im­pul­si­o­nada pela ide­o­logia da “li­ber­dade de es­colha” dos in­di­ví­duos. A re­a­li­dade chi­lena, porém, é uma vi­trine dos re­sul­tados ne­fastos que esse mo­delo pode pro­duzir no Brasil.

Pre­vi­dência pri­vada e po­breza

Como alertou Ri­va­na­deira, “os ideó­logos do sis­tema não re­co­nhe­ceram a se­gu­ri­dade so­cial como fer­ra­menta dis­tri­bui­dora de renda, mas sim a trans­for­maram em um meio de in­jeção de re­cursos no mer­cado”. Não existem al­ter­na­tivas pú­blicas de apo­sen­ta­doria no Chile e tam­pouco um valor mí­nimo que as AFP devem ga­rantir para as pen­sões. O Es­tado atua como “va­riável de ajuste”, como diria o jargão ne­o­li­beral. Assim, pen­sões in­fe­ri­ores a 150 mil pesos (231 dó­lares) men­sais re­cebem do Es­tado um com­ple­mento de 80 mil (123 dó­lares). Con­si­de­rando o custo da cesta bá­sica no país, a 5ª mais cara da Amé­rica La­tina, nos en­con­tramos aqui com a fa­bri­cação da po­breza.

Entre os países da OCDE, o Chile é a nação com apo­sen­ta­do­rias mais baixas e com a maior de­si­gual­dade so­cial. Em 2015, ocupou a 14ª po­sição na lista de países mais de­si­guais do mundo. Se­gundo o Censo de 2011 (Casen), os 5% dos lares mais ricos do Chile ga­nham 260 vezes mais que os 5% mais po­bres. Ao mesmo tempo, o Chile fi­gura como a eco­nomia re­gi­onal que mais cresceu dos anos 1980 até hoje, de­mons­trando como os “ín­dices de cres­ci­mento” podem re­pre­sentar re­a­li­dades in­de­se­já­veis.

O sis­tema pre­vi­den­ciário chi­leno é cen­tral para ex­plicar esses dados. No ano pas­sado, a média na­ci­onal do valor das pen­sões foi de apenas 207.409 pesos (319 dó­lares) ao mês. Além disso, se­gundo a Fun­dação Sol, atu­al­mente me­tade dos tra­ba­lha­dores chi­lenos ganha sa­lá­rios de 251 mil pesos (386 dó­lares) ao mês. Em 2013, o con­se­lheiro do Banco Cen­tral re­co­nheceu que em média, quase 60% dos chi­lenos vão se apo­sentar no fu­turo com pen­sões de 150 mil pesos. O que sig­ni­fica que todos os apo­sen­tados que pu­derem, na­tu­ral­mente, se­guirão tra­ba­lhando.

A si­tu­ação é agra­vada por uma le­gis­lação la­boral que en­fra­quece a ne­go­ci­ação sa­la­rial co­le­tiva e na qual o di­reito de greve não é efe­tivo, uma vez que as de­mis­sões são certas. No Chile, se­gundo a Fun­dação Sol, a cada 10 novos em­pregos, 7 são “ex­ternos”, ou seja, ter­cei­ri­zados e tem­po­rá­rios. Além disso, quase 700 mil su­bem­pre­gados tem uma renda média de 86 mil pesos men­sais, o que de­bi­lita com­ple­ta­mente as ca­pa­ci­dades desse setor al­cançar uma apo­sen­ta­doria digna.

No outro lado, os lu­cros das AFP são ani­ma­dores para os seus donos, al­can­çando quase 900 mi­lhões de dó­lares em 2015. Por isso, no ano pas­sado, o mo­vi­mento No+AFP de­nun­ciou que en­quanto o lucro das em­presas cresceu 9,6% entre 2015 e 2016, a ren­ta­bi­li­dade média das pen­sões foi de apenas 3,34%. Ou seja, a ideia de as­so­ciar o cres­ci­mento das AFP com bem estar de seus afi­li­ados não passa de um mito.

A reforma trabalhista abrirá um rombo bilionário na previdência social

Por Adalberto Moreira Cardoso

As reformas em curso, para as quais os golpistas tomaram de assalto o poder, são fruto de mentes toscas.

A base da arrecadação previdenciária é o assalariamento formal (as empresas também contribuem sobre o lucro, mas essa contribuição é menor). Nada menos do que 80% dos contribuintes para a previdência eram trabalhadores com carteira (incluindo domésticos) e servidores públicos, segundo dados da PNAD 2014. Mas a reforma trabalhista visa justamente “desformalizar” o emprego assalariado hoje existente, golpe justificado em nome da criação de empregos e aumento da renda do trabalhador. Obra de mentes toscas.

  1. Em 2016 o governo golpista transformou em “parceiros” os trabalhadores em salões de beleza e seus empregadores. Agora todo trabalhador precisa abrir uma MEI ou outro tipo de microempresa e firmar contrato de parceria com os salões. Antes disso eles pagavam 8% de INSS sobre o salário, e o patrão 12%. Para um salário de R$1.000, a previdência recebia R$200,00. Como MEI o trabalhador agora empresário recolhe menos de R$60 para a previdência, e fica inadimplente assim que o patrão resolva romper o contrato de “parceria”. O patrão, por seu lado, agora parceiro, não recolhe um tostão. Obra de mentes toscas.
  2. Um trabalhador hoje com contrato por tempo indeterminado será substituído por um terceirizado. Só não fará isso quem for burro ou não souber fazer contas, coisa que não se deve esperar de empresários racionais. Só não serão substituídos os trabalhadores considerados essenciais à existência do negócio (é crescente a impressão de que a terceirização de determinados segmentos da produção ou dos serviços gera problemas sérios de governança, e há processos de “desterceirização” em algumas grandes empresas). De todo modo, comércio e serviços, os maiores empregadores do país, vão trocar a maioria de seus estáveis por terceirizados. Isso é líquido e certo, porque é da racionalidade empresarial cortar custos.

O tosco deputado que relata a reforma trabalhista diz que introduziu salvaguardas ao trabalhador: ele não pode ser demitido e recontratado como terceirizado pela mesma empresa num prazo de 18 meses… Má fé do deputado. Ou será que ele pensa que o empresário está com aquele trabalhador porque só existe ele no mercado com a qualificação para a função? O empresário vai demitir o estável e contratar outro de igual ou melhor qualificação, intermediado por uma empresa terceirizada.

Para quem não sabe como funciona: uma grande empresa, quando contrata serviços de uma terceirizada, faz uma licitação, e vence quem cobrar menos, mantendo os padrões de qualidade exigidos pela contratante. Se a terceirizada não tem outra coisa a oferecer que a mão de obra, “menor preço” quer dizer menor salário para os trabalhadores por ela intermediados. Uma empresa vai trocar trabalhador estável por terceirizado para reduzir custos, isto é, gastar menos com o fator trabalho. Ora, a contribuição previdenciária é descontada dos salários como uma porcentagem do valor pago. Se o empregador pagava R$2000 ao seu trabalhador estável, e a terceirizada que vencer a licitação o substituir por um trabalhador que passará a receber R$1.000, a previdência perde 50% de arrecadação daquele posto de trabalho.

Além disso, as empresas de intermediação de mão de obra estão entre as grandes caloteiras da previdência e demais direitos do trabalhador. E o projeto de terceirização eximiu de responsabilidade a contratante, em caso de inadimplência da terceirizada: o trabalhador deve antes reclamar seus direitos na justiça contra esta última e só depois, esgotados os recursos judiciais, acionar a contratante. Isso pode levar 10 anos…

  1. Contratos por hora substituirão contratos por mês em milhares de empresas de serviços e comércio, cujas atividades sejam “intermitentes”. Em lugar de ao menos um salário mínimo ou piso salarial, o trabalhador vai receber pelas horas trabalhadas. A reforma abole o salário mínimo e a contribuição previdenciária que ele permite, reduzindo-a a uma proporção de horas trabalhadas.

Obra de mentes toscas. A reforma trabalhista está abrindo um rombo bilionário nos cofres da previdência, mas até agora ninguém tocou no assunto.

Intervenção no IPEA e o silêncio cúmplice da mídia lobista

Na campanha presidencial de 2014 a “grande imprensa”, coerente, lobista dos interesses da plutocracia, criou um bafafá sobre uma suposta interferência do presidente do IPEA em referência à publicação de um trabalho de um Técnico de Pesquisa da casa às vésperas da eleição.

Como servidor público do IPEA testemunhei que, ainda no primeiro semestre de 2014, o presidente do IPEA, servidor de carreira, em seu discurso de posse deixou claro quais seriam os critérios para publicação de trabalhos e quais os cuidados que a legislação em vigor impunham ao IPEA observar para não configurar intromissão indevida no processo eleitoral. As regras estavam claras e óbvias e, assim, não foram contestadas na ocasião.

Com o acirramento do processo eleitoral, no entanto, os ânimos se exaltaram e observamos a participação, direta e indireta, de Técnicos servidores do Instituto no processo eleitoral. Em alguns casos clara e abertamente e, em outros, de forma escamoteada. Tive a oportunidade de escrever sobre isso em artigo neste blog tal a dimensão que o caso assumiu na grande mídia lobista.

O governo dos denunciados na Lava-Jato, liderados por Temer, nomeou para o IPEA um presidente sem as qualificações necessárias para o cargo, com a nítida intenção de direcionar as pesquisas do Instituto e impedir a publicação de trabalhos com conteúdo contrário aos interesses do “governo”. O novo presidente do IPEA foi escolhido a dedo. Um profissional qualificado, com uma carreira técnica e acadêmica notável, não aceitaria fazer este tipo de trabalho.

A grande imprensa lobista, antes tão preocupada com a liberdade de pesquisa no IPEA, parou de se preocupar com o assunto. Leia, abaixo, a nota da Associação de Funcionários do IPEA e entenda o que está ocorrendo no Instituto sob a presidência do amigo do Temer.

Paulo Martins

“Boa tarde prezado associado,

A Associação de Funcionários do Ipea (Afipea/Afipea-Sindical) sempre se pautou pela defesa da pluralidade, contra qualquer tipo de controle da produção e dos resultados de pesquisa por critérios políticos alheios à garantia da consistência metodológica e da qualidade da informação gerada. Precisamente por essa razão, entendemos que a produção editorial do Ipea não pode ser utilizada para elogiar ou desqualificar qualquer ator ou movimento político e social. Assim, a Afipea/Afipea-Sindical vêm a público manifestar-se contra o uso político do Instituto, seja ele executado por qualquer de seus servidores, inclusive os dirigentes.
Dessa forma, a Afipea considera inadequada a publicação eletrônica pelo Ipea, ocorrida na última semana, do livro Agricultura e Indústria no Brasil: Inovação e Competitividade, autoria de José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho (Ipea) e Albert Fishlow (Columbia University), por conter imagens e comentários (páginas 148 e 149) que servem unicamente para expressar opiniões político-partidárias. A publicação teve ampla repercussão, sendo objeto de comentários pejorativos para a imagem institucional.
Quando duas notas técnicas, publicadas em setembro de 2016, apontaram os problemas de financiamento impostos às políticas de saúde e assistência social em decorrência do “Teto de Gastos” (que na época tramitava na Câmara dos Deputados como PEC 241), o Presidente do Ipea divulgou comunicado à imprensa negando que estas refletissem a posição do Instituto, apontando equivocadamente a existência de erros metodológicos e contrapondo-se ao resultado do rigoroso processo de debate e validação técnica aos quais esses trabalhos haviam sido submetidos.
Já no que se refere ao livro ora publicado, chama a atenção que a Presidência e a diretoria colegiada do Ipea adotem posição radicalmente diferente, diante do fato de que as imagens citadas e seus respectivos comentários não apresentam fundamento técnico, desqualificando a produção consolidada do próprio Instituto em diferentes temas. É possível enxergar nessas atitudes contrastantes uma tentativa de “filtrar” a produção do Ipea com base em critérios políticos.
Ressaltamos que tal direcionamento é contrário à proposta de uma instituição voltada a proporcionar, ao governo federal, ao conjunto dos poderes públicos e à sociedade, informação e debate qualificados, contribuindo assim para a deliberação e gestão democráticas. O respeito a todas as posições políticas, a autonomia em relação à orientação política do governo, assim como o compromisso com o exame amplo e sem preconceitos de soluções alternativas para os problemas vocalizados pelo governo e pela sociedade brasileira são condições necessárias para que desempenhemos nossa missão.
Vale ressaltar que o Ipea publica anualmente mais de 250 títulos, totalizando mais de 27 mil páginas de livros, revistas, boletins, notas técnicas, relatórios e textos para discussão, em sua imensa maioria com afirmações e conclusões baseadas em dados e análises robustas.
Repudiamos, agora e sempre, práticas que visam submeter a capacidade técnica e de comunicação do Ipea a preferências de ordem político-partidária, sejam elas quais forem.

Conselho Deliberativo e Diretoria Executiva”

Da série: Se arrependimento matasse … (# 1)

Temer diz que país precisa de alguém que tenha capacidade de “reunificar a todos” na crise

Visivelmente nervoso, balançando o corpo para frente e para trás enquanto discursava a jornalistas, Temer fez um apelo público …

Isto ocorreu em 05/08/2015, conforme publicado na folha/uol, mas se encaixa como uma luva na situação política de hoje. Teve uma visão do futuro, nosso ilustre usurpador. Nunca pensei que um dia eu iria concordar com alguma coisa dita por este tradicional político “limpinho e cheiroso” que se aboletou no Palácio do Planalto.

Foto: Folha/Uol

 

Nas entranhas do poder: Diálogos (#1)

Michel Temer: Meu querido Maquiavel, você observou que o                                         índice de aprovação do ilustre presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, teve um aumento estupendo em poucos dias?

Maquiavel: Sim, claro. Ele jogou mísseis e bombas de alto poder de destruição em alvos inimigos.

Michel Temer: E por que eu continuo tão impopular se desde o início do meu governo estou seguindo a mesma estratégia?

Maquiavel: Porque um governante sábio não joga bombas em seu próprio povo, caro Temer.

 

 

O MITO NEOLIBERAL, por Ulysses Ferraz

Compartilho texto de Ulysses Ferraz

O MITO NEOLIBERAL
Terceirização aprovada. Sancionada. Luz, câmera, ação. Homens engravatados apresentam argumentos irrefutáveis. Mulheres eficientes e poderosas apontam justificativas graves. Sisudas. Relações de causa e efeito. Gráficos. Tabelas. Estatísticas. Correlações. Regressões. Engenheiros, matemáticos, físicos e até economistas. Muitos jornalistas. Todos produtores do mito mais poderoso de nosso tempo. Gente séria que se leva a sério todos os dias do ano. Seriedade vinte e quatro horas por dia. Sete dias da semana. O show não pode parar. Como escreveu Roland Barthes: “a função principal do mito é transformar o que é contingente em natural”. Os rituais garantem sua existência. Quanto mais obscura a linguagem, mais confiável. Afinal, costuma-se respeitar aquilo que se desconhece. Os especialistas sabem o que fazem. E o que dizem. Como não se deixar seduzir? Uma narrativa tranquila e poderosa, que defende eficiência, responsabilidade e ganhos justos aos mais adaptados para lidar com os desafios do único mundo possível: livre, competitivo, globalizado e desregulamentado. Tudo deve parecer natural. Descontaminado da política. Desideologizado. Confiável. Técnico. Uma análise científica de uma força da natureza chamada economia de mercado. E assim caminha o inexorável mito neoliberal.

Como sair da crise e retomar o desenvolvimento? Por Pedro Paulo Zahluth Bastos

Publicado em Carta Maior
Como sair da crise e retomar o desenvolvimento?
05/04/2017 14:51 – Copyleft

O princípio básico é que se deve financiar o desenvolvimento com progressividade tributária, como, por exemplo, cobrando imposto sobre lucros e dividendos
Pedro Paulo Zahluth Bastos*
Roberto Brilhante / Carta Maior

Confira abaixo a palestra completa do professor Pedro Paulo Zahluth Bastos:
Como costuma ocorrer em momentos de crise econômica e defensiva política, políticos, intelectuais e economistas à esquerda do centro veem encurtado seu horizonte de preocupação para o curto prazo da administração da crise. A maior vitória ideológica da direita, nestas circunstâncias, é usar a crise exatamente para moldar os termos do debate público e limitar o debate estratégico às opções que lhe agradam. Ou seja, olhar à esquerda e enxergar um campo bem domesticado e incapaz de pensar grande.

Exemplo disso é o fato de que a insistência, até o esgotamento, da aposta na retomada da credibilidade junto aos mercados, com Joaquim Levy, já havia restringido tanto o governo Dilma Rousseff a ponto de impedir que saísse dos termos da agenda nacional definidos pelo neoliberalismo.

Em meio a uma crise que exigia a forte retomada contracíclica do investimento público, a vacilação e a aceitação do diagnóstico de que o gasto público era, em geral, um problema, não deixava ao governo e, em particular, a Nelson Barbosa senão a “alternativa” de propor mais do mesmo que já propunha desde 2014, isto é, mais limitação do gasto público e mais corte de direitos sociais, inclusive à previdência social. Não surpreende que a oposição usasse o discurso da austeridade como pretexto absurdo de um impeachment ilegítimo, pois a ausência de uma narrativa oficial alternativa era evidente a qualquer um que não estivesse imerso nos jogos de poder de curto prazo em Brasília.

O resultado é que a preocupação excessiva com o ajuste fiscal – que só é possível com a retomada do crescimento, e não o contrário – aprofundou a recessão, o próprio desajuste fiscal e a legitimação pública de uma agenda estratégica regressiva, marcada pelo aprofundamento da desigualdade social e o corte de direitos.

Já está na hora de voltar a pensar grande, igual ao tamanho da desigualdade social e dos desafios ao desenvolvimento brasileiro.

Ajuste fiscal permanente: o feitiço contra o feiticeiro

Para isto, ajuda que o feitiço já se volta contra o feiticeiro. A estratégia política dos golpistas era paralisar o legado institucional e programático construído a partir da Constituição de 1988 e retomado no governo Lula, torcendo para que o povo o esquecesse até 2018 à medida que a economia se recuperasse depois do impeachment.

A “fada da confiança”, contudo, não fez milagres e a economia até acelerou sua contração nos dois trimestres depois do impeachment. Isto aumentou a nostalgia da população perante o legado do lulismo. Como este legado envolvia direitos sociais materializados no gasto público, como o Minha Casa, Minha Vida (MCMV) e o Bolsa-Família (BF), sua própria paralisia deliberada tem boa responsabilidade pelo aprofundamento da recessão. Logo, sua retomada é o caminho óbvio para a recuperação, com benefícios econômicos e políticos rápidos.

Por outro lado, ter usado a rigidez da meta fiscal anual como pretexto do impeachment e ter anunciado seu cumprimento rígido como condição da credibilidade deixa o governo Temer, agora, preso a seu feitiço. A emenda constitucional do Teto do Gasto só vai ter efeitos em 2018, pois a rápida desinflação em 2017 ainda permite, em tese, o aumento do gasto público real em relação a 2016. No entanto, o baixo desempenho da arrecadação tributária já exige contingenciamento bimestral do orçamento público como o anunciado no final de março: 42,1 bilhões em cortes, além da reversão das desonerações da folha de pagamento salarial que foi vetada ao governo Dilma. Mantida a meta de déficit de 2017 (R$ 139 bilhões), o contingenciamento anunciado já determina uma queda do gasto público real em 2017, como se a emenda do teto já valesse.
Até o final do ano, não se pode descartar novos contingenciamentos, propostas de elevação de alíquotas de impostos e a suprema humilhação: praticar pedaladas ou propor um aumento da meta de déficit para além dos R$ 139 bilhões inscritos em lei. Ao mesmo tempo em que isto pode constranger a recuperação da economia, desmoraliza os austeros e força da entrada do óbvio para dentro do debate econômico.

O que é óbvio é que uma recuperação firme passa inevitavelmente por liberar o déficit público por um tempo. O gasto público não pode cair acompanhando a arrecadação tributária, pois sua contração determina queda das receitas privadas e até mesmo a falência de empresas privadas. Daí a arrecadação tributária cai por causa da queda do gasto privado, e só o déficit público pode interromper o círculo vicioso.

Se a economia se recuperar lentamente a despeito de novos contingenciamentos em 2017, a emenda do teto do gasto público pode jogá-la de novo para baixo em 2018. A recuperação, portanto, exige reverter a emenda constitucional do teto do gasto e criar um novo regime fiscal que desamarre o investimento público e iniciativas anticíclicas, quando necessárias. Isso é condição indispensável para a retomada do desenvolvimento e sua sustentação no tempo.

Em uma economia com volume enorme de recursos ociosos, as taxas de juros reais podem cair sem risco para a inflação, barateando o financiamento da dívida pública. Como se sabe, são os juros da dívida, e não os resultados primários, que determinam a aceleração do endividamento recente. A queda dos juros também abre espaço para uma desvalorização cambial gradual, necessária para conferir competitividade para alguns ramos industriais. A armadilha dos juros altos e do câmbio baixo não foi desarmada desde 1992, mas é essencial que seja para sustentar um novo ciclo de desenvolvimento com redistribuição de renda.

Renegociação e alongamento de dívidas

Como as empresas estão endividadas e com capacidade ociosa, a recuperação não vai partir do investimento privado e da expansão do crédito. Logo, mecanismos de crédito precisam basicamente renegociar e alongar o pagamento das dívidas. Um pool de bancos públicos deve ser mobilizado e atrair bancos privados para avaliar e alongar dívidas conjuntamente (tecnicamente, fazer empréstimos sindicalizados).

A renegociação das dívidas, sobretudo de empreiteiras e construtoras, é de alta prioridade, porque sua falência implicará em novas quebras de fornecedores menores, aumento do desemprego e desnacionalização. Isso passa por acelerar acordos de leniência e reverter o caráter anti-nacional da Lava-Jato.

Como as famílias também estão endividadas, a ação conjunta dos bancos públicos também é necessária para reduzir juros e facilitar renegociação de dívidas de consumidores. Além disso, é fundamental alongar a vigência do seguro-desemprego, desde junho de 2015 limitado a quatro ou cinco parcelas na primeira solicitação; mais quatro na segunda e mais três na terceira. O desemprego de longo prazo, porém, já se instalou no país, e não podemos produzir mendigos ou algo pior por falta de opção.

Enfim, a renegociação da dívida com estados e municípios é fundamental. É preciso garantir gastos correntes e conclusão de obras paralisadas, barrando a imposição da emenda constitucional do teto de gastos federais e sua imposição nos contratos com estados.

A retomada do legado paralisado

Como a maturação de novos projetos (e bandeiras) de longo prazo é lenta (por motivos de engenharia técnica, financeira e ambiental), eles podem ser planejados enquanto são reativados vários programas desativados com Temer, sobretudo oito:

1.Política de encomendas públicas com conteúdo tecnológico local, inclusive na Petrobrás;

2.Retomada de obras de grande impacto (transposição do São Francisco com projetos de irrigação, conclusão das ferrovias) e em grandes cidades (principalmente mobilidade urbana);

3.Minha Casa, Minha Visa, vinculado com urbanização de favelas, ocupações e loteamentos ilegais, e programa de substituição energética;

4.Apoio federal à atenção primária de saúde, UBSs, Farmácia-popular e Mais-médicos;

5.Expansão de Institutos Federais de Ensino e do Pronatec, depois campus universitários;

6.Elevação de salário mínimo;

7.Ampliação do Bolsa-Família e da linha de pobreza, inclusive com 13º salário;

8.Fortalecimento da agricultura familiar, com apoio à reforma agrária e formação de cooperativas.

O princípio central é reverter a marginalização social e, ao universalizar infraestrutura e serviços públicos, canalizar o crescimento do mercado interno para indução e diversificação de investimentos privados. Que novos projetos e bandeiras, no mesmo sentido, podem ser planejados?

1.O programa Saneamento para Todos deve ser transformado em prioridade nacional, eventualmente convertido no programa Água para Todos para marcar a prioridade e articulá-lo ao reaproveitamento;

2.Emprego Para Todos (e seguro-desemprego para todos que precisem);

3.Banda Larga para Todos: universalizar o acesso à internet e democratizar a produção de conteúdo;

4.Luz do Sol Para Todos: universalizar Placas Solares e Usinas Eólicas, começando com programa-piloto no Semiárido, depois em hospitais, escolas e universidades; a seguir estendendo para favelas e loteamentos ilegais, substituindo “gatos”, de modo que ninguém perca, todos ganhem.

Como financiar?

O princípio básico é que não é preciso cortar direitos para financiar o investimento público. A rejeição das reformas golpistas (Previdência, Trabalhista, Teto do Gasto) deve ser feita lembrando o tamanho da sonegação anual (R$ 500 bilhões), dívida ativa da União (R$ 1,8 trilhão), dívida ativa de cobrança imediata (R$ 260 bilhões) e dívida com a Previdência Social (R$ 426 bilhões). No entanto, fazer cumprir a lei tributária também exige cumprir a lei do teto do salário do funcionalismo público, objeto de várias distorções que o corrompem.

Além de um força-tarefa para combate à sonegação e cobrança da dívida ativa, há três Iniciativas tributárias e financeiras emergenciais que podem ser propostas:

1.CPMF de início com alíquota de 0,01% ou, se houver resistência, no limite até 0,001% (para atacar a sonegação: quem dirá não?);

2.Acelerar liberação do FGTS para obras em saneamento, e reforçá-las com bancos públicos e, se quiserem, privados, iniciando o Água Para Todos;

3.Usar parte das reservas cambiais para constituição de um Fundo Social de Desenvolvimento, e outra parte como garantia para empréstimos de longo prazo junto ao Banco dos Brics, estimulando a concorrência do BID e do Banco Mundial.

O princípio básico é que se deve financiar o desenvolvimento com progressividade tributária. Conforme delineado no documento Austeridade e Retrocesso, cabe iniciar com a cobrança imediata (no ano seguinte à aprovação legal) do imposto sobre lucros e dividendos distribuídos das empresas para as pessoas físicas e, dois anos depois, fim da dedução de juros sobre capital próprio.

É possível trocar o aumento da progressividade de impostos diretos (imposto de renda, herança, rural, fortunas) e eliminação de isenções regressivas (contribuições sociais; saúde; subsídios empresariais) por aumento da faixa de isenção do IR e unificação/redução de alíquota de impostos em cascata.

Além disso, é possível recorrer à cooperação internacional. Por exemplo, por que não propor um fundo ambiental internacional para apoiar o Luz do Sol Para Todos (Sunshine for All), com programas-pilotos para placas solares e usinas eólicas no Semiárido do Brasil e na África? No Brasil, o objetivo inicial seria apoiar a irrigação e a agricultura familiar no Semiárido, reduzir a Conta de Desenvolvimento Energético e a conta de luz de repartições públicas, além de estimular um novo ramo de atividade verde e tecnologicamente avançado.

Estas são algumas ideias que precisamos aprofundar para retomar a esperança no futuro e assegurar o desenvolvimento de um Brasil para todos. Assim como devemos pensar grande nas finalidades, a ação também deve priorizar a Grande Política, inspirando grandes massas. Não adianta se autolimitar, evitando políticas que desagradem parcelas ideologizadas e radicais da classe média e do empresariado; parte delas só será ganha politicamente com a retomada do crescimento, uma boa parte nem com isso. A busca da unanimidade paralisa. Lutemos por um Brasil para todos, mas de baixo para cima.

O Retorno da Austeridade Fiscal Expansionista, por Nelson Barbosa

O Retorno da Austeridade Fiscal Expansionista, por Nelson Barbosa
TER, 04/04/2017 – 10:14
ATUALIZADO EM 04/04/2017 – 11:23

O Retorno da Austeridade Fiscal Expansionista

por Nelson Barbosa

Publicado em jornalggn.com.br
O governo federal constatou que faltam R$ 58,2 bilhões para cumprir a meta fiscal desse ano. Diante desse problema, a equipe econômica anunciou medidas para elevar as receitas em R$ 16,1 bilhões e reduzir as despesas em R$ 42,1 bilhões. O aumento de receita se concentra nos ganhos esperados com renovações de concessões de energia elétrica (R$ 10,1 bilhões), complementado por um aumento de impostos (R$ 6 bilhões). A redução de despesa se distribui em corte de emendas parlamentares (R$ 10,9 bilhões), redução de investimentos (R$ 10,5 bilhões) e diminuição de custeio (20,7 bilhões).

O corte de despesas anunciado pelo governo é especialmente preocupante, pois isso adiará a estabilização do nível de atividade e do emprego. Reduzir a despesa em R$ 42 bilhões significa diminuir a diretamente a demanda da economia em 0,6% do PIB projetado para 2017 (R$ 6.705 bilhões). Como a projeção oficial de crescimento econômico é de apenas 0,5% para esse ano, os impactos diretos e indiretos do corte de despesa colocam em risco a recuperação da economia.

O governo armou uma armadilha para si mesmo ao fixar uma meta de resultado primário irrealista para 2017. Esse erro é especialmente grave após o ocorrido em 2016, quando ficou claro que era melhor trabalhar com metas fiscais realistas mesmo que isso significasse ter um déficit primário elevado no curto prazo. Por que houve um erro tão grosseiro após tudo que aconteceu no Brasil nos últimos anos? A resposta está no retorno da “austeridade fiscal expansionista” como política de governo.

Segundo os defensores da estratégia do governo, um corte de despesas tende a elevar o nível de atividade econômica devido ao aumento da confiança do setor privado e à redução da taxa real de juro induzidos por tal medida. Como qualquer proposição empírica, essa hipótese pode ou não ser confirmada pelos dados. A evidência existente indica que na maioria dos casos estudados a contração fiscal reduziu o nível de atividade e emprego no curto prazo. Mais especificamente, dos 107 casos analisados na literatura sobre o tema, houve contração fiscal e expansão do PIB em apenas 27 ocasiões (Islam e Chowdury 2012). Nesses 24% de casos de sucesso, a contração fiscal foi geralmente acompanhada de fatores externos, como desvalorização cambial e aumento de exportações, que mais do que compensaram a redução do gasto público. Nos 76% de casos restantes a contração fiscal foi … contracionista!

No caso específico do Brasil, nossa história recente indica que ajustes fiscais são acompanhados de desaceleração do PIB no curto prazo, como ocorreu em 1998, 2003 e 2011. No episódio mais recente, em 2015, o governo começou o ano com um corte substancial de gastos públicos para reequilibrar seu orçamento e promover o crescimento econômico (MF 2015). Naquela época o Ministério da Fazenda chegou a citar a hipótese da austeridade fiscal expansionista como base para as suas ações – o “Plano 1 2 3” do Ministro Joaquim Levy – mas na prática as coisas evoluíram de modo bem diferente do esperado.

A combinação de corte de gastos federais com realinhamento abrupto dos preços administrados, contração do crédito, paralisação no setor de óleo e gás e deterioração do ambiente político acabou gerando uma grande contração do PIB no primeiro semestre de 2015. Diante desse resultado, o governo revisou sua estratégia ainda em meados de 2015, propondo um maior gradualismo fiscal no curto prazo e reformas estruturais de longo prazo.[1]

A mudança de estratégia da “austeridade fiscal expansionista” para a “flexibilização fiscal reformista” foi completada no início de 2016, quando o governo Dilma Rousseff propôs uma grande redução de sua meta fiscal – com geração temporária de déficits primários por alguns anos – acompanhada de reformas estruturais que possibilitassem maior controle sobre o gasto público no médio prazo, e flexibilidade fiscal para lidar com recessões no curto prazo (MF 2016).[2] Apesar da retórica oposicionista, a estratégia de flexibilização fiscal reformista foi inicialmente mantida e ampliada após o golpe parlamentar de 2016, com aumento significativo do déficit primário previsto para aquele ano.[3]

Do ponto de vista econômico, a partir do início de 2016, a política fiscal brasileira parecia ter finalmente superado a hipótese da austeridade fiscal expansionista em prol de uma postura anticíclica para estabilizar o nível de renda e emprego. Infelizmente essa mudança não sobreviveu um ano após o golpe parlamentar do ano passado. Já em julho de 2016, a nova equipe econômica optou por anunciar a volta da austeridade fiscal expansionista, estabelecendo uma meta irrealista de resultado primário para 2017, com base na expectativa de que a economia se recuperaria rapidamente após o afastamento da Presidente Dilma Rousseff.

A realidade contrariou as expectativas do governo e de vários analistas de mercado. A queda do PIB, que havia desacelerado a partir da flexibilização fiscal iniciada no segundo semestre de 2015, voltou a acelerar após o golpe parlamentar de 2016. Esse aprofundamento da recessão gerou uma revisão das projeções de crescimento e de arrecadação para 2017, obrigando o governo a fazer, agora, um corte excessivo de despesas, em cima de um orçamento já apertado, em uma economia que ainda não saiu da recessão.

A marcha da insensatez fiscal deve parar. A população brasileira não deve ser crucificada em uma “cruz de metas fiscais” irrealistas para salvar o discurso equivocado da equipe econômica.[4] A contração fiscal proposta pelo governo será contracionista no Brasil. O corte excessivo de gastos públicos gerará interrupção de investimentos importantes e paralisação da máquina pública. Tudo isso em um momento no qual a taxa de desemprego continua elevada e o nível de atividade econômica ainda não deu sinais claros de recuperação.

A melhor alternativa para o Brasil seria continuar com uma política anticíclica, deixando que o resultado primário absorvesse flutuações da receita no curto prazo enquanto o crescimento econômico não se recuperar de modo sustentável, como ocorreu em 2016. Em outras palavras, a regra fiscal mais adequada para o Brasil é controlar o gasto no curto prazo para obter um resultado fiscal equilibrado no médio prazo – em um período de quatro anos – como acontece nas principais economias do mundo (Budina et al 2012).

O ajuste do resultado primário deve ser distribuído no tempo para evitar que a política fiscal seja uma fonte de instabilidade macroeconômica. Em períodos de redução do nível de atividade, o resultado primário deve absorver a maior parte da queda de receita para evitar cortes excessivo de despesa que empurrem a economia ainda mais para baixo. Por analogia, em períodos de expansão da atividade, o resultado primário deve absorver a maior parte do aumento de receita para evitar uma expansão de despesa que empurre a economia ainda mais para cima.

Em um estudo recente, economistas do FMI indicaram que metas de gasto são superiores a metas de resultado para estabilizar a economia e as finanças públicas (Cordes et al 2015). O Brasil deveria ter migrado para metas de gasto ao invés de metas de resultado já em 2016. Essa era a direção da proposta que o governo Dilma Rousseff enviou ao Congresso Nacional no início do ano passado. Tal proposta também previa um regime especial de contingenciamento, para lidar com períodos de baixo crescimento como o atual, mas essa ideia também foi abandonada após o golpe parlamentar de 2016. Agora temos as consequências: o retorno a uma estratégia de ajuste fiscal drástico e imediato, que já se demonstrou equivocada no passado, e que adiará mais uma vez a recuperação da renda e do emprego.

Teoricamente, o recente equívoco fiscal da equipe econômica poderia ser corrigido pela própria equipe econômica, visto que ele é uma armadilha auto imposta pelas autoridades. Na prática as coisas são diferentes, pois a retórica do golpe de 2016 e a dificuldade dos economistas do governo em reconhecer um erro claro acabará levando o Brasil a mais uma rodada de austericídio fiscal para preservar o discurso da equipe econômica. Assim, na provável ausência de ações por parte do governo, resta ao Congresso Nacional evitar que o Brasil adote novamente uma política fiscal excessivamente restritiva em um contexto de alta taxa de desemprego e crescimento econômico próximo de zero.

Referências:

Blyth, M. (2013). Austerity: The History of a Dangerous Idea, New York: Oxford University Press.

Budina, N., Kinda. T. Schaeschter, A. e Weber, A. (2012) “Fiscal Rules at a Glance: Details from a New Dataset”, IMF Working Paper 12/273, disponível em: https://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/2012/wp12273.pdf.

Cordes, T., Kinda, T, Muthoora, P. e Weber, A. (1025), “Expenditure Rules: Effective Tools for Sound Fiscal Policy?”, IMF working paper 15/29, disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2016/12/31/Expenditure-Rules-Effective-Tools-for-Sound-Fiscal-Policy-42706.

Iyanatul Islam and Anis Chowdhury (2012) “Revisiting the evidence on expansionary fiscal austerity: Alesina’s hour?”, Vox Policy Portal, disponível em: http://voxeu.org/debates/commentaries/revisiting-evidence-expansionary-fiscal-austerity-alesina-s-hou.

Ministério da Fazenda (2015), “Reequilíbrio Fiscal e Retomada da Economia”, Nota Técnica do Ministério da Fazenda, disponível em: http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/notas-tecnicas/2015/reequilibrio-fiscal-e-retomada-da-economia-1.

Ministério da Fazenda (2016), “Pronunciamento do Ministro da Fazenda na Reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social”, Discurso Transcrito, disponível em: http://www.fazenda.gov.br/noticias/2016/janeiro/integra-do-discurso-cdes.

Nelson Barbosa – Professor Titular da Escola de Economia de São Paulo, FGV, e Professor Visitante do Departamento de Economia da UnB. Foi Ministro da Fazenda e Ministro do Planejamento durante o Governo Dilma Rousseff. E-mail: nelson.barbosa@fgv.br.

[1] Em julho de 2015, o governo propôs uma redução da meta fiscal para aquele ano, mas que só foi aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro do mesmo ano. Em setembro de 2015, o governo reinstalou o Fórum da Previdência para elaborar uma proposta de reforma a ser encaminhada ao Congresso Nacional, mas que acabou não prosperando devido à deterioração do ambiente político e a resistências dentro do próprio governo.

[2] As medidas de reforma fiscal foram enviadas ao Congresso Nacional em março do mesmo ano.

[3] Em maio de 2016, apenas uma semana após o golpe parlamentar, o governo anunciou uma meta de déficit primário de R$ 170 bilhões, o que por sua vez era claramente um déficit excessivo para acomodar a flexibilização da política fiscal. O déficit efetivo foi de R$ 156 bilhões em 2016.

[4] Parafraseando Wiliam Jennings Bryan, que na convenção do Partido Democrata de 1896, defendeu uma flexibilização monetária argumentando que a população dos EUA não deveria ser crucificada em uma “cruz de ouro”, uma vez que o padrão ouro vigente na época provocava crises recorrentes de liquidez nos EUA.

SENSO INCOMUM: Moro dá às palavras o sentido que quer! O Direito através do espelho!, por Lenio Luiz Streck

SENSO INCOMUM
Moro dá às palavras o sentido que quer! O Direito através do espelho!

30 de março de 2017, 8h00
Por Lenio Luiz Streck

Eu tinha uma coluna pronta. Todavia, quando li a matéria a seguir, resolvi fazer outra. Deu-me muito trabalho. Semana cheia. Terça publiquei o artigo Foro Privilegiado: “Supremo em Números” (FGV) não é Números Supremos. Quem não leu ainda, faça-o já (favor acessar a página do  autor).

Sigo. Não bastassem tantas polêmicas o envolvendo, — como a recente ilegal e arbitrária condução coercitiva e a violação do sigilo da profissão do blogueiro Eduardo Guimarães — Sergio Moro não pode ficar 24 horas sem os holofotes. Falem mal, mas falem. Agora ele mesmo está deixando de cumprir algo que assinou. Incrível. E o que assusta é o modo como ele decide e o silêncio eloquente dos democratas. Poucos reclamam.

O que quero falar e denunciar é a ilegalidade flagrante da possibilidade do uso da imagem do ex-presidente Lula no filme sobre a Policia Federal (que por certo, dará o Oscar para Pindorama — já imagino a Glória Pires comentando o filme sem tê-lo visto). Já denunciei aqui que os atores do filme “oscarizando” fizeram um tour pelas celas, porque queriam ver os “dentes dos presos”.

Lembremos que no despacho em que autorizou a condução coercitiva de Lula, Moro afirmou que “NÃO deve ser utilizada algema e NÃO deve, em hipótese alguma, ser filmado ou, tanto quanto possível, permitida a filmagem do deslocamento do ex-presidente para a colheita do depoimento”. Atenção: os dois “NÃOS” maiúsculos são da ordem original de Moro.

Pronto: não deve ser filmado em hipótese alguma. Não deve ser permitida, tanto quanto possível a filmagem (por terceiros e pela própria Polícia Federal) do seu deslocamento. O que se entende disso? Que qualquer filmagem do ex-presidente sendo conduzido estava proibida. Qualquer filmagem. E a filmagem de seu deslocamento (foi de carro até o aeroporto) também não devia ser permitida. Portanto, qualquer filmagem é ilegal. Írrita. Nenhuma. Ou seja; se em hipótese alguma deveria haver filmagem, mesmo que alguma fosse feita, por óbvio não poderia ser utilizada pela Polícia Federal. E nem cedida a qualquer diretor de filmes. Simples assim.

Pois bem. Diante de revelações feitas para diferentes veículos de comunicação, nas quais atores do já famoso filme e até mesmo o diretor afirmam — sem nenhum segredo — que tiveram acesso aos vídeos gravados pela Polícia Federal, a defesa de Lula apresentou nova petição no dia 27 de março de 2017. Os advogados de Lula juntam entrevista do produtor do filme, Tomislav Blazic, na qual afirma ao jornal Folha de S.Paulo que havia feito “acordo sem precedentes” com a Polícia Federal. Vejam: “acordo sem precedentes”. Sem querer, acertou: não há precedentes de tamanha bizarrice.

O que mais precisa demonstrar? O filme pronto e o estrago feito? Na Idade Média era permitida a tortura por ordem judicial. Mas o réu podia interpor recurso para a instância superior. Com um detalhe: não tinha efeito suspensivo. Bingo. Algo como o que está ocorrendo com os estragos feitos por determinadas decisões judiciais pindoramenses. Feito o estrago, depois vem ou um pedido de desculpas ou uma “explicação” tipo “dou-me conta de que, de fato, blogs podem ser equiparados a jornais”. Mas aí Inês já é morta.

A primeira petição dos advogados foi respondida com uma sutil ironia pelo juiz Sergio Moro, que afirmou que não podia impor censura a veículos de comunicação ou mesmo à produção de algum filme. Bingo de novo. Genial. Ele proíbe a filmagem e depois, uma vez usada à socapa e à sorrelfa essa filmagem, lava as mãos, posando de liberal porque não pode impor censura. Desta vez o Brasil ganha ou o Oscar com a película ou o Nobel pela decisão “anticensura”.

A parte melhor da decisão de Moro é quando afirma que a petição dos advogados de Lula se baseava apenas em reportagem jornalística, não sendo apresentada qualquer gravação durante a condução coercitiva. Para Moro, se qualquer veículo de comunicação ou produção do filme tivesse tido acesso às imagens, provavelmente estas já teriam sido disponibilizadas.

“Provavelmente” é bom, não? Mas o Direito lida com “provavelmente”? E se tivessem sido disponibilizadas as gravações? Isso resolveria o quê? Por óbvio que o tal filme não pode utilizar as imagens de Lula sendo conduzido coercitivamente. Mesmo que Moro não tivesse dito que NÃO (e disse), ainda assim não poderiam usar.

Há de ter um Tribunal neste país que barre esse tipo de autoritarismo e ilegalidade. O filme está quase pronto. Se for lançado e isso não tiver sido resolvido, estaremos em face do “fator tortura do medievo”: uma vez torturado, adianta ganhar o recurso se o ferro quente já lanhou o lombo do vivente?

Será que ainda há juízes em Berlim? Porto-me, aqui, como o Moleiro de Sans Souci (ver vídeo Direito & Literatura (https://youtu.be/UaqSCsYh07o);  não é longo; podem olhar). O Imperador Frederico pode tudo ou pensa que pode tudo. Mas, como disse o pobre Moleiro, não tiro o meu moinho daqui nem a pau, Juvenal (essa parte do “nem a pau Juvenal” parece que não consta na frase original do Moleiro — não sou cineasta, mas faço minha licença poética). O Moleiro tinha certeza que, mesmo contra o poder despótico do Imperador da Prússia, haveria de ter um juiz que lhe daria razão. Bingo para o moleiro. Esse moleiro deveria vir ministrar aulas nas faculdades de Direito de Pindorama.

Enfim, a literatura sempre corre à frente do Direito. Por exemplo, as decisões de Moro parecem a manifestação do personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, de Lewis Caroll. Ali ele, o personagem Humpty Dumpty, dá às palavras o sentido que quer. Para quem não leu: discutindo sobre o papel do “desaniversário”, Humpty Dumpty diz para Alice que é melhor que haja 364 dias destinados ao recebimento de presentes — que são os desaniversários — e somente um de aniversário. É a glória para você, aduz Humpty, pois poderá receber, em vez de um, 364 presentes. Ela responde: mas isso não pode ser assim. E Humpty Dumpty complementa: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Como consta no livro, é o fim “demolidor” de uma discussão.

Por isso, feliz desaniversário, Dr. Sergio Moro. Afinal, mesmo que hoje não seja o seu aniversário (que, como sabemos — e é também o meu caso — só ocorre uma vez por ano), podemos comemorá-lo em qualquer dia dos outros 364. Afinal, as palavras valem o que queremos que elas valham, certo?

Mundo, mundo, vasto mundo; se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima… mas não seria uma solução, dizia Carlos Drummond de Andrade. Nem vou falar do juiz Azdak, do livro O Círculo de Giz Caucasiano, também adaptável à situação. Mas o texto ficaria longo e nestes tempos de pós-verdades, isso afasta o leitor, que gosta mesmo é de drops. De todo modo, para quem quiser, eis o vídeo do programa Direito & Literatura (https://youtu.be/UaqSCsYh07o).
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: http://www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 30 de março de 2017, 8h00

Manifesto por um projeto de Nação

Compartilho este importante manifesto. Leia a íntegra:

Paulo Martins

Manifesto por um projeto de Nação
Maria Carolina Trevisan 31/03/2017 17:25
Tags: Bresser-Pereira, democracia, direitos, Impeachment, pacto

Representantes da sociedade civil, de entidades sindicais, universidades e empresas, com diferentes visões políticas, produziram um manifesto em defesa da democracia. O documento expõe 10 pontos necessários para superar a crise diante do “grave momento” da história do Brasil. O grupo denuncia que há uma “imposição de um programa de ruptura do pacto social brasileiro” implementado por um “governo transitório”, ao qual lhe falta “norte, tempo e popularidade”.

Entre as necessidades propostas estão: assegurar que as eleições de 2018 ocorram, sem qualquer mudança no regime político; implementar políticas de reindustrialização do Brasil; parar o retrocesso nos direitos sociais e trabalhistas, mudando a base da política econômica, até agora alinhada ao mercado financeiro rentista; reverter o cenário de juros exorbitantes, câmbio apreciado e o desmonte da Petrobrás e do BNDES, ambos indutores do desenvolvimento; reposicionar a taxa de câmbio de modo que possa contribuir para gerar empregos; garantir a aposentadoria para todos os trabalhadores brasileiros; manter juros e taxa de cambio em patamares que produzam competitividade; reverter o rebaixamento do investimento público; resguardar o papel dos bancos públicos no que diz respeito a investimentos e geração de empregos;

“Está claro o propósito da atual política econômica, de estabelecer para o Brasil nas próximas décadas o rumo da subserviência ao estrangeiro, da exclusão social, do desprezo à cidadania e à democracia, em contraposição ao Brasil que almejamos, democrático, soberano, economicamente desenvolvido e socialmente inclusivo.”

Leia a íntegra a seguir:

A urgência de um novo projeto de nação:

Por um país democrático, soberano, economicamente desenvolvido e socialmente inclusivo

Reunidos na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, nós, cidadãos das mais diversas visões políticas, representantes de instituições da sociedade civil e de entidades sindicais e empresariais, unificados pela preocupação comum em relação aos destinos do país em momento tão grave de sua história, externamos nossos pontos de vista sobre alguns dos temas mais urgentes da atual conjuntura.

Desde abril último, presenciamos a imposição de um programa de ruptura do pacto social brasileiro, estabelecido pela Constituição de 1988. Por mais que tentem aprová-lo a toque de caixa no Congresso Nacional, salta aos olhos que tal programa não fez parte de qualquer candidatura vitoriosa nas eleições de 2014: nem para o Poder Executivo, nem para o Poder Legislativo. Sendo um governo transitório, falta-lhe, pois, norte, tempo e popularidade para implementar as mudanças de fato exigidas pelo país.

1 – Impõe-se defender a democracia e, sobretudo, as eleições de 2018, para impedir quaisquer formas de perseguição política, cerceamento da liberdade de opinião. Afirmamos, também, ser inaceitável qualquer mudança no regime político e no sistema de governo, que não passe pelo crivo das urnas.

2 – A empresa nacional, a reindustrialização do Brasil e o investimento em ciência e tecnologia devem ser defendidos por qualquer governo comprometido com o desenvolvimento nacional.

3 – A política econômica vigente, de interesse exclusivo do mercado financeiro rentista, nacional e internacional, é responsável pela escalada do desemprego. Leva angústia e desespero a milhões de pessoas, e coloca em risco a estabilidade social. Neste quadro, é insensato propor reformas que têm como objetivo suprimir direitos sociais e trabalhistas conquistados há décadas. Elas não reformam a casa dos brasileiros. Derrubam seus alicerces.

4 – Juros exorbitantes, câmbio apreciado, fragilização deliberada da Petrobrás, justamente quando a companhia descobriu a maior reserva de petróleo do planeta dos últimos 30 anos, abandono da política de conteúdo local que possibilitou a industrialização acelerada do país a partir dos anos 50 do século passado, desconstrução do BNDES, essencial como indutor do desenvolvimento, tudo isso configura um cenário que, se não for revertido, nos remeterá ao passado​.

5 – A terceirização, se irrestrita e ilimitada, poderá representar a eliminação de direitos trabalhistas para a parcela mais vulnerável da população brasileira e o rebaixamento dos padrões de civilização e justiça do nosso pacto social.

6 – ​As mudanças na previdência não podem inviabilizar a aposentadoria de parte substancial da população brasileira e destruir a solidariedade entre gerações, classes sociais e regiões do país.

7 – ​Ao invés de encarecer o crédito público direcionado para o investimento, excedendo em muito os padrões internacionais que asseguram a integração global competitiva, é preciso trazer a taxa de juros básica para patamares minimamente compatíveis com a média internacional e com a rentabilidade da atividade produtiva e de projetos de infraestrutura, sem o que será difícil e caro evitar a valorização cambial do Real.

8 – Sem taxa de câmbio competitiva, nossa desindustrialização será aprofundada. O real sobrevalorizado inviabiliza investimentos nacionais de longo-prazo e intensifica a transferência de empregos para o exterior.

9 – ​O rebaixamento do investimento público deve ser revertido. As exigências de conteúdo tecnológico local e nacional, em função de seu potencial indutor do investimento privado local, devem ser mantidas.

10 – ​Os bancos públicos têm um papel importante no financiamento do investimento privado e na geração de empregos, papel esse que não pode ser prejudicado pela eliminação ou grande encarecimento de suas fontes de recursos, aumentando juros e inviabilizando inversões de maiores risco, prazo e conteúdo tecnológico.

Está claro o propósito da atual política econômica, de estabelecer para o Brasil nas próximas décadas o rumo da subserviência ao estrangeiro, da exclusão social, do desprezo à cidadania e à democracia, em contraposição ao Brasil que almejamos, democrático, soberano, economicamente desenvolvido e socialmente inclusivo.

Nossa democracia não pode ser atropelada por um processo demasiadamente atabalhoado de mudanças nos estatutos legais que regulam nosso pacto social, retirando direitos fundamentais. A pressa é inimiga da legitimidade porque visa bloquear o debate público e, particularmente, tolher a participação dos maiores afetados por essas reformas.

​Vivemos um momento delicadíssimo. Nosso país, uma das 10 maiores economias do mundo, não pode se apequenar. Urge resistir ao desmonte em curso, do Estado, da economia e da política. É este o nosso compromisso.

São Paulo, 22 de março de 2017

Aldo Fornazieri (Cientista Político, FESPSP).

Angelo Del Vecchio (Sociólogo).

Antonio Correa de Lacerda (Economista, PUC-SP)

Artur Araujo (Consultor da Federação Nacional dos Engenheiros).

Cesar Prata (Vice-Presidente da ABIMAQ).

Clemente Ganz Lucio (Diretor Técnico do DIEESE).

Clovis Francisco Nascimento Filho (Senge-RJ, Fisenge).

Ennio Candoti (Físico, ex-presidente da SBPC e atual Diretor do Museu da Amazônia).

Franklin Martins (Jornalista, ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social).

Gastão Wagner de Souza Campos (Medicina, Unicamp, presidente da Abrasco).

Gilberto Bercovici (Direito, USP).

Guilherme Estrella (Geólogo, ex-Diretor da Petrobrás).

Hélio Campos Mello (Jornalista, Revista Brasileiros).

João Antonio Moraes (Federação Única dos Petroleiros-FUP).

João Guilherme Vargas Netto (Consultor Sindical).

Ladislau Dowbor (Economista, PUC-SP).

Lais da Costa Manso (Socióloga)

Luiz Carlos Bresser-Pereira (Ex-Ministro da Fazenda, FGV).

Manuel Domingos Neto (Universidade Federal Ceará).

Márcio Pochmann (Economista, UNICAMP).

Mario Scheffer (FMUSP e Vice-Presidente da ABRASCO).

Murilo Celso de Campos Pinheiro (Presidente do Seesp e do FNE).

Olimpio Alves dos Santos (Senge-RJ e Fisenge).

Otavio Velho (Antropólogo, UFRJ).

Pedro Celestino Pereira (Presidente do Clube de Engenharia-RJ).

Pedro Paulo Zahluth Bastos (Economista, UNICAMP).

Roberto Amaral (ex-Ministro da Ciência e Tecnologia).

Rodrigo de Morais (Sindicato dos Metalúrgicos de SP).

Samuel Pinheiro Guimarães (Diplomata, Ex-Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos).

Saturnino Braga (Presidente do Centro Internacional Celso Furtado).

Ubiratan de Paula Santos (Médico e Conselheiro da FESPSP).

William Nozaki (Cientista Político, Coordenador da Cátedra Celso Furtado – FESPSP).

Link curto: http://brasileiros.com.br/wmDK4
Tags: Bresser-Pereira, democracia, direitos, Impeachment, pacto
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