Neoliberalismo e pandemia

Texto do professor André Coelho

O Covid-19 não é fabricado, mas a pandemia resulta, em parte, de escolhas humanas. Sem os cortes, no mundo em geral e no Brasil em particular, de investimento na saúde pública, na pesquisa científica pública e nas redes de previdência, seguridade, alimentação e assistência, teríamos mais leitos, mais respiradores, mais medicamentos, mais profissionais de saúde, mais aparatos de proteção, pesquisas mais avançadas de vacinas e remédios, uma população com imunidade mais forte e uma banda mais larga de isolamento e quarentena, com menos trabalhadores precarizados tendo que arriscar-se à doença e à morte para sustentar sua miséria e desproteção.

Sem a precarização do trabalho, o enfraquecimento dos sindicatos, a privatização do cuidado, a financeirização da sobrevivência e esvaziamento da lógica pública de cooperação e solidariedade, teríamos evitado muitas das mortes que já ocorreram e poderíamos evitar muitas mais das que ainda se seguirão.

A crise política é, sim, inegavelmente, uma componente central da crise sanitária. Mas a crise política não se resume à crueldade e à incompetência de quem está no poder agora (embora isso, claro, conte bastante).

Ela é a crise de um modelo social e de uma forma de vida com nome bem explícito: Neoliberalismo.

Desligar-se do fascista da vez para agarrar-se ao próximo neoliberal é só trocar o rosto e o sotaque do ceifador de vidas, sem salvar nenhuma dessas vidas. É ajustar a skin com que se prefere que avance o genocídio.

É preciso trocar não só a pessoa, mas o modelo. É preciso imaginar e desejar outra forma de vida em conjunto e mobilizar-se para realizá-la. Construir sobre a verdade desnudada de nossa interdependência a política que nos liberte de nossa solidão melancólica e nos cure da desigualdade perversa. Sonhar alto para nos recuperarmos de a quão baixo fomos lançados. Redescobrir a força da união que transforma.

É só nesse lugar, frágil e belo, do último fontanário de nossa humanidade, que se encontram a tragédia e a esperança.

O Massacre de Manguinhos

Autor: Herman Lent

Reeditada em versão ampliada e disponível em versão digital, a obra O Massacre de Manguinhos faz parte da Coleção Memória Viva, projeto desenvolvido pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict) da Fiocruz.

A nova edição foi lançada em maio de 2019, como parte das comemorações de 119 anos da Fiocruz. Com prefácio de Nísia Trindade Lima, O Massacre de Manguinhos é o primeiro título da coleção, que busca tornar acessíveis ao público obras de forte relevância acadêmica que estavam esgotadas.

O projeto de reedição do livro é uma parceria entre Editora Fiocruz, Icict/Fiocruz, Casa de Oswaldo Cruz (COC) e Instituto Oswaldo Cruz (IOC). A nova versão não é comercializada e está em acesso aberto no Repositório Institucional da Fiocruz, o Arca.

Sobre a obra original
Exatos seis anos após o golpe militar de 1964, 10 cientistas do então Instituto Oswaldo Cruz (IOC) – nome da Fiocruz na época – foram sumariamente cassados e tiveram seus direitos políticos suspensos, sendo impedidos de trabalhar no IOC e em outras instituições federais. O fato marcou o episódio que ficaria conhecido como Massacre de Manguinhos. Um dos cientistas cassados, Herman Lent registrou o episódio em um livro, publicado em 1978 pela Avenir Editora, com capa criada por Oscar Niemeyer.

Esgotada durante anos, a obra era uma referência para os estudos sobre o impacto da ditadura militar nas atividades científicas realizadas no Brasil. Nela, Lent abordava inquéritos, indagações, punições, restrições e pressões aos quais os cientistas foram submetidos, além de suas mobilizações e atos de resistência, insistindo na criação de um ministério exclusivo para a Ciência.

Não comercializado | 116 páginas

Acesse o livro no Arca: http://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/33216

2ª edição: 2019 (1ª edição: 1978 | Avenir Editora Limitada)
ISBN: 978-85-7541-628-0

Fiocruz, seu destino histórico e a cloroquina, entrevista com Nísia Trindade


Chico Alves
Colunista do UOL
21/04/2020 04h00
Nascida em meio à luta contra epidemias como febre amarela, peste bubônica e varíola, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) completa 120 anos em maio, novamente na linha de frente para superação de um enorme desafio sanitário. A instituição foi designada pela Organização Mundial de Saúde como referência na América do Sul no combate à pandemia do coronavírus.

“Estamos cumprindo nosso destino histórico”, diz a doutora em Sociologia Nísia Trindade, presidente da Fiocruz.

As dificuldades para encontrar tratamentos, vacinas e estratégias contra a doença são conhecidas, mas um obstáculo surpreendente ao trabalho dos pesquisadores foi registrado na semana passada. Em meio a estudos sobre a eficácia do uso da cloroquina para o tratamento da covid-19, cientistas da fundação, em Manaus, e de outras instituições foram ameaçados nas redes sociais e fora delas, ao decidirem interromper os testes da substância em pacientes graves, por conta dos riscos.

“Não é um ataque à Fiocruz ou ao grupo de pesquisadores específico, mas uma ameaça ao trabalho científico”, define Nísia.

Nessa entrevista, a presidente da Fiocruz fala que ainda não há respostas imediatas para a pandemia em termos de medicamentos, e por isso o afastamento social continua sendo a estratégia mais indicada. Nísia comenta ainda o aumento da produção de testes para diagnóstico da doença, que chegará a 11 milhões de unidades, e a busca de formas seguras para sair do isolamento quando chegar a hora.
“Não se poderá sair da situação que temos preconizado hoje do isolamento para atividades com aglomeração. Isso terá que ser progressivo”, adianta.


UOL – Recentemente, cientistas que pesquisam a eficácia da cloroquina foram ameaçados nas redes sócias e fora delas. Ao que a sra. atribui esses ataques?

Nísia Trindade – Vejo como um ataque não só aos pesquisadores, mas um ataque a toda a ciência. Não por acaso, além do conselho da Fiocruz, também a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Sociedade de Medicina Tropical, a Academia Nacional de Medicina e várias instituições científicas se posicionaram todas em favor do respeito à pesquisa científica, à preservação do trabalho dos pesquisadores.

Não se trata de ser a favor ou contra um medicamento. Isso não teria o menor sentido. Toda a orientação da ciência, a nível internacional, é para que as pesquisas com relação a tratamentos possíveis sejam feitas a partir de medicamentos já conhecidos. Então, eu vejo esse ataque não como uma ameaça à Fiocruz ou ao grupo de pesquisadores específico.

Todo esse trabalho passa por comitês de ética, comitês de segurança de cada pesquisa que envolve o estudo clínico, que envolve vidas, que envolve pacientes, todos esses trâmites estão sendo seguidos e nós estamos acompanhando. Foi dessa maneira que o nosso conselho se posicionou.

Houve uma resposta das autoridades? Já foram identificados autores das ameaças?

Tivemos contato com uma comissão externa do Congresso que está acompanhando o coronavírus e entrou em contato comigo, como presidente da Fiocruz. Passei todas as informações e temos feito isso em relação a todas as instâncias. Essa pesquisa, inclusive, tinha sido acompanhada pela diretoria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. Sempre temos esse cuidado, que é como procedemos com as nossas pesquisas.

Enquanto temos esses ataques vindo de um pequeno grupo aqui no Brasil, a OMS reconhece a Fiocruz como instituição de referência para o combate ao coronavírus na América Latina. O que isso representa?

Isso representa um reconhecimento muito importante, especificamente ao nosso Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo, vinculado ao Instituto Oswaldo Cruz, que é um de nossos institutos mais tradicionais na pesquisa biomédica. Também um laboratório do México foi reconhecido. Isso significa que o laboratório, além da análise de amostras do material coletado para identificação do vírus é uma referência não só para o Brasil agora, mas para toda a América Latina, no sentido de definir os melhores protocolos, a formação das equipes. É um componente de pesquisa que ajuda todo o acompanhamento da pandemia, que vai ser muito importante para o pós-pandemia também. Esse laboratório contribui para todo um conjunto de medidas que envolve o material onde se identifica o vírus.

Uma das frentes da Fiocruz é a produção de testes. Quanto se conseguiu aumentar na produção desse item?

Essa produção tem implicado um esforço imenso da nossa instituição, fruto de muito trabalho em ciência e tecnologia. A Fiocruz tem um laboratório de produção de vacinas, de biofármacos e também desses testes, que é a Biomanguinhos. Associado a esse esforço, também o Instituto de Brasileiro de Biologia Molecular do Paraná. Nesses institutos nós conseguimos otimizar a produção desses testes e nós vamos chegar agora, a partir de maio, à produção de 2 milhões de unidades por mês. Totalizando até o final de agosto, 11 milhões de testes acumulados.

Com isso, acho que daremos uma contribuição muito importante para esse processo de testagem. Produzimos o teste molecular, ou seja, o que tem eficácia comprovada e uma acuidade para identificar as infecções já desde o início de seus sintomas. Isso é um grande avanço.

Junto com isso, pretendemos também contribuir através do Ministério da Saúde para pensar as melhores estratégias para todo o sistema de vigilância, para os laboratórios dos estados, de maneira que não haja exames na fila, como se diz. Temos também trabalhado muito com os conselhos de secretários estaduais de saúde, com os laboratórios centrais nos estados.

É essa rede que forma a grande vigilância n Brasil e a pandemia coloca um desafio maior porque não bastam as ações regulares. É de fato um esforço imenso, temos que ser mais rápidos que o vírus. É um desafio e tanto.

Quais as pesquisas prioritárias sobre covid-19 em desenvolvimento na Fiocruz?

Nós temos realizado um conjunto de estudos que vão desde pesquisas ligadas ao vírus, respostas imunológicas, passando também por modelagem epidemiológica, modelagem matemática para entendermos como o vírus poderá vir a se comportar no Brasil, estudos de cenários.

Eu diria que todos os conhecimentos precisam se reunir nesse momento: a imunologia, a virologia, a epidemiologia e a saúde pública, porque essa pandemia, com sua velocidade de transmissão, coloca em xeque os sistemas de saúde de todo mundo. Nesse momento nós estamos lançando um edital de pesquisa, dentro do nosso programa Inova Fiocruz, que se volta para responder perguntas que não foram respondidas e são fundamentais sobre a doença, o comportamento do vírus e também o comportamento do sistema de saúde.
Ao mesmo tempo também temos produtos imediatos: intensificação de estudos clínicos, novos protocolos de tratamento, uma série de ações importantes para que possamos contribuir como instituição de ciência nessa pandemia.

Nas testagens dos possíveis remédios que já existem, houve algum resultado animador?

Não. Resultado, infelizmente ainda não temos. Além do estudo que você fez referência, sobre a cloroquina, em Manaus, nós participamos de um grande estudo clínico, o estudo Solidariedade, coordenado pela OMS, que vai avaliar a possibilidade terapêutica da cloroquina, da hidroxicloroquina, de alguns antivirais. A Fiocruz é a coordenadora desse estudo no Brasil e envolve 18 hospitais em 12 estados.

É um esforço muito intenso, uma rede de estudo clínico. Não há respostas imediatas, infelizmente. Nós gostaríamos de já dizer à população: esse medicamento é o melhor ou essa vacina é a melhor. Por ora, as medidas são de prevenção não-farmacológicas: o isolamento, a distância social, os cuidados de higiene. Que não são simples, sabemos, mas são as medidas recomendadas pela comunidade internacional.

E quanto a vacinas? Empresas americanas informam que no início do ano que vem podem chegar a algum resultado. E por aqui, como andam as pesquisas?

Nós temos feito discussões e aberto possibilidades de trabalho conjunto com laboratórios de todo mundo também, tanto do setor público quanto do setor privado. Sempre com uma preocupação muito grande, já que nossa instituição é signatária de uma rede de pesquisas que tem como objetivo o acesso. Não adianta produzir uma vacina ou chegarmos a um novo medicamento sem que haja garantia de acesso principalmente nos países em desenvolvimento ou de baixa e média renda da América Latina e da África.

Vacinas baratas a que todos tenham acesso, que chegue à sociedade, esse é um ponto muito importante. Um segundo ponto é que nós temos uma tradição de transferências tecnológicas a vacina de febre amarela, que hoje nós somos o principal responsável por essa produção no mundo. Isso é fruto de uma transferência tecnológica da Fundação Rockfeller para a Biomanguinhos. A

A pandemia mostra a importância do país ter uma autonomia na produção de vacinas, de insumos e mesmo de equipamentos, já que estamos vendo essa carência em todo mundo, essa concentração em um único país. Tudo isso faz com que a Fiocruz seja uma instituição que poderá dar respostas para o futuro. Para isso, temos um importante projeto que é o complexo biotecnológico, em Santa Cruz, aumentando a nossa capacidade de vacinas.

Nós temos a resposta imediata à pandemia, mas temos que pensar nos passos seguintes. Para a epidemia da covid-19 e também para outras doenças com que o mundo infelizmente passará a conviver.

Depois do coronavírus outras viroses semelhantes vão surgir?

Isso é algo que já vem acontecendo no mundo. Esperamos que não com essa violência, no sentido da velocidade de transmissão e dos casos graves com complicações que levam tantas pessoas ao mesmo tempo para as unidades de tratamento intensivo. Mas temos que nos proteger.

Além disso, até termos a imunidade, a vacina será necessária e o acompanhamento epidemiológico dessa pandemia. Ou seja, a pandemia não termina no curto prazo. Temos que pensar que até termos uma vacina estaremos expostos a ciclos de doenças, coisas que não sabemos, Também não quero fazer aqui nenhuma previsão. São coisas que estão sendo estudadas e caberá à pesquisa científica nas diferentes áreas nos apontar esses cenários.

Nos últimos dias se registrou um aumento de circulação de pessoas nas ruas de várias cidades do país. O que fazer para aumentar a adesão ao isolamento social?

Em primeiro lugar, não é fácil lidar com essa situação, que é nova. Pela primeira vez eu vivo um momento como esse, assim como grande parte da população. Uma experiência semelhante em nosso país em termos de quarentena, mas em momento muito diferente na história, só ocorreu com a gripe espanhola, que teve mortalidade intensa e foi um gravíssimo problema logo após à Primeira Guerra. Acho que há uma dificuldade desse entendimento.

Mas creio que com toda essa dificuldade, boa parte da população está entendendo a gravidade e é propensa ao isolamento sanitário. O que precisamos são de medidas que não só reforcem a comunicação, mas que tornem viável esse isolamento em alguns grupos vulneráveis que têm mais dificuldades. Os trabalhadores informais têm muita dificuldade. Para isso, teríamos que ter reforço das medidas de proteção social.

Temos agora a destinação de R$ 600 para permitir aos trabalhadores que fiquem em casa, mas creio que precisemos de mais medidas em relação a pequenas e médias empresas para dar esse suporte. Além disso, muitos grupos vulneráveis vivem em localidades de altíssima densidade demográfica, com altíssima aglomeração. As próprias casas muitas vezes com sete pessoas no mesmo cômodo. São questões de um país marcado por profunda desigualdade social.

Ao chegar ao país, o vírus tem essa realidade no seu processo de expansão. É diferente se olharmos para a Europa e mesmo diferente de outras realidades na Ásia, onde a pandemia teve seu início. É um país continental, com grande diversidade regional, com grande desigualdade social. Tudo isso se reflete. Temos que trabalhar medidas específicas. Na Fiocruz nós construímos um fórum conjunto com os comunicadores populares, para dessa forma termos realmente mensagens que cheguem às pessoas. Há uma grande rede de solidariedade em relação a essas populações vulneráveis e locais de mais baixa renda e muita aglomeração, como favelas e periferias.

Temos pensar junto com essas populações e suas lideranças as melhores medidas. É preciso que as pessoas tenham meios para fazer esse isolamento. Creio que essa é uma das tarefas mais urgentes.

Já se sabe qual a forma mais segura de flexibilizar o isolamento social?

Não, isso ainda está em discussão. Eu mesmo participo do fórum de líderes globais de saúde da OMS, onde esse debate está se realizando nesse momento. O que está muito claro é que essa saída será gradual, vai ser muito importante o controle dos casos, o controle também da oferta de leitos, para que se possa encaminhar os pacientes graves.

Mas não é o bastante ter os leitos disponíveis. É muito importante o controle através de testes, através de uma visão de como a doença vai se disseminando. Ou seja, é uma fase de muita cautela e da qual não se poderá sair do isolamento para o retorno pleno a atividades com aglomeração. Isso terá que ser progressivo. Isso é muito claro em todas as orientações dos estudos, até porque nós teremos pessoas ainda sujeitas a infecção e podemos ter novos ciclos da doença o que seria bastante perigoso. Teremos sair com muita cautela e com base em evidências científicas, articuladas ao reforço do sistema de saúde. Será um trabalho que exigirá muita coordenação. Tenho certeza que a comunidade científica fará um grande esforço para que seja bem-sucedida a saída dessas medidas atuais.

Aos que virão depois de nós, por Bertolt Brecht

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranqüilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nada do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?
Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.
Bertolt Brecht

Os Ombros Suportam o Mundo, Carlos Drummond de Andrade

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

“Eu não sou coveiro”

O presidente Bolsonaro, ao ser questinado por um repórter sobre o número de mortes pelo vírus Corona19 no Brasil, respondeu que não sabia, pois, segundo ele, “não sou coveiro”. No caso, tenho que dar razão ao presidente: de acordo com a divisão do trabalho, um dos pilares do capitalismo, quem é o culpado pelas mortes não cava as sepulturas, e vice-versa. Em tempos de normalidade, claro.

O presidente declarou também, no mesmo dia, que não entendia o medo das pessoas se infectarem com o vírus, pois “70% das pessoas vão pegar o vírus, a verdade é essa”.

Segundo dados do Ministério da Saúde referentes ao dia 20.04.20, o Brasil registrou 40.581 casos de infecção pelo vírus Corona, com 2.575 vítimas fatais. Isto representa uma taxa de mortalidade de 6,34%, menor que a média global de 6,86% e maior do que a dos Estados Unidos, cuja média chegou a 5,38%.

Estimando-se a população atual do Brasil em 212 milhões de habitantes, o número de infectados de acordo com a afirmativa presidente Bolsonaro chegará a 148,4 milhões de infectados.

Ora, eu que não creio, rezo para que este absurdo não se realize.

O presidente declarou também que “vai morrer gente, claro. Isso aí faz parte”. Usando-se uma regra de três simples e a premissa do presidente da República, teríamos 9,4 milhões de mortos.

Não dá para extrapolar esses números, é óbvio. À medida que o número de mortos explode, a tendência é a taxa de mortalidade cair drasticamente (pelo menos assim dita a lógica), pois crianças e jovens têm uma propensão muito baixa de virem a óbito.

Situação caótica nos hospitais nas zonas rurais dos EUA

Mesmo que a taxa de mortalidade média caísse para 0,7 % o número de mortos seria catastrófico: em torno de um milhão de vidas.

Ao usar o argumento de que “quase todo mundo vai se contaminar, não tem jeito e, portanto, as pessoas não podem ter medo, têm que voltar a trabalhar”. o presidente Bolsonaro demonstrou descaso com os familiares das pessoas que poderão vir a falecer. E com as próprias pessoas que estarão arriscando as suas vidas.

Mais do mesmo. Nada novo. Novo só o evidente estado de desespero do cidadão despreparado que 28% dos cidadãos do Brasil escolheram para conduzir a arca de Noé.

Paulo Martins

20.04.2020

Aniversário, Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Aniversário

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

[473]

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!…

15/10/1929

PROGNÓSTICO É RUIM E VAI PIORAR, DIZ JOSÉ LUÍS FIORI

PROGNÓSTICO É RUIM E VAI PIORAR, DIZ FIORI
DESTAQUE10 DE ABRIL DE 2020POR ELEONORA DE LUCENA E RODOLFO LUCENA
Share on Facebook Tweet on Twitter
“Nosso prognóstico político e econômico para o Brasil é muito ruim, e a situação deverá ficar ainda pior quando começarem a surgir os primeiros focos de rebeldia social inorgânica, movidos pela fome e pela miséria, que crescerão de forma geométrica no ano de 2020”. O alerta é do sociólogo e cientista político José Luís Fiori em entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe a leitura da entrevista no vídeo acima e inscreva-se no TUTAMÉIA TV). Professor de economia política da UFRJ, ele analisa aqui mudanças geopolíticas decorrentes da pandemia e afirma:

“Hoje, muitos falam de um mundo novo que poderia nascer dessa experiência traumática e até apostam em mudanças humanitárias do capitalismo. Mas não vejo a menor possibilidade de que isto aconteça. O próprio avanço da epidemia já está provocando uma guerra sem quartel entre as nações pelos equipamentos médicos. Essa guerra deverá seguir e até aumentar depois da epidemia, junto com os ressentimentos que ficarão dessa megaexperiência de egoísmo coletivo explicito”.

Para Fiori, “essa pandemia não produzirá nenhuma grande inflexão geopolítica dentro do sistema mundial. O que ela fará é acelerar a velocidade das transformações que já estavam em curso e que seguirão se aprofundando. Essa nova peste está apenas desvelando o que já existia, mas que ainda estava encoberto pelo que talvez se pudesse chamar de último véu de hipocrisia do que muitos analistas chamam de “ordem liberal”, ou de “hegemonia americana” do século 20”.

Autor, entre outros, de “O Poder Global” (Boitempo, 2007), ele afirma: “O mais provável é que essa epidemia aumente a desigualdade e a polarização do mundo, que já vinham crescendo de forma acelerada desde a crise financeira de 2008”.

Ao TUTAMÉIA, o sociólogo e cientista político traça tendências da geopolítica global e regional e declara: “A disputa dos EUA com a China e a Rússia já colocou a luta pelo controle da Amazônia Sul-Americana dentro do mapa geopolítico e econômico da competição entre as grandes potências econômicas e militares do sistema mundial. Esse parece ser um processo irreversível”.

A seguir a íntegra da entrevista, feita por e-mail.

TUTAMÉIA — QUAL O TAMANHO E QUAIS OS ASPECTOS PRINCIPAIS DA CRISE QUE ESTAMOS VIVENDO NO MUNDO? JÁ É POSSÍVEL PREVER ALGUMA COISA DO FUTURO? FAZ SENTIDO COMPARÁ-LA COM A CRISE ECONÔMICA DE 1929? ESSA CRISE TEM ALGUMA COMPARAÇÃO POSSÍVEL?

JOSÉ LUÍS FIORI — Por enquanto, a crise que estamos vivendo tem duas grandes causas ou dimensões fundamentais. Uma é biológica ou epidemiológica, que é a pandemia do novo coranavírus, que já atingiu mais de 190 países e mais um milhão de pessoas ao redor do mundo. A outra é econômica ou energética, associada à guerra de preços e à queda do preço do barril petróleo, que caiu de US$ 70 para US$ 23 o barril em apenas uma semana, provocando um terremoto financeiro em todo mundo. É a maior crise da indústria do petróleo dos últimos cem anos, mas ela acabou se confundindo com a pandemia, que se transformou no fator determinante da queda da produção e da demanda do óleo em todo o mundo, mas particularmente na China, nos EUA e na Europa. Por isso, pode-se dizer que a dimensão determinante da crise mundial, neste momento, é a sua dimensão epidemiológica.

Os germes e as grandes epidemias têm vida própria e reaparecem através da história com uma frequência cada vez maior, apesar de o reaparecimento periódico não obedecer a nenhum tipo de regra ou de ciclo conhecido e previsível. No caso específico desta última epidemia, não se decifrou ainda o vírus, não se conhece seu desenvolvimento nem se sabe da possibilidade de que ele tenha recidivas onde já foi controlado. Portanto, desde logo, partindo de um ponto de vista estritamente biológico e médico, é muito difícil ainda fazer qualquer tipo de previsão sobre o futuro dessa primeira grande peste do século 21.

Nesses momentos de grande medo e imprevisibilidade, é muito comum que se façam comparações com a intenção de ajudar a pensar e prever o futuro. Mas essas comparações são sempre limitadas e, às vezes, prejudicam mais do que ajudam, mesmo quando se restrinjam ao campo econômico. No caso das comparações com 1929, ou mesmo com a crise financeira de 2008, é importante ter presente que estamos falando, nos dois casos, de crises endógenas da economia capitalista. Enquanto que, no caso dessa crise atual, estamos falando de uma crise que atinge a economia capitalista, mas que foi provocada por um fator externo à própria economia e que não obedece às chamadas “leis econômicas”, mesmo quando possa provocar um estrago econômico e social equivalente ao das crises econômicas que foram mencionadas.

Da mesma forma, é muito comum comparar ou associar as grandes epidemias com as guerras, como se as duas viessem sempre juntas. Ou, ainda, dizer que as grandes pestes produzem sempre grandes inflexões, mudanças ou rupturas na trajetória das sociedades e do próprio sistema mundial. Mas nenhuma dessas teses tem sustentação empírica ou validez universal. É verdade que, quando as grandes pestes surgem ou se difundem junto com grandes guerras, elas tendem a ser mais rápidas e violentas, como foi o caso, por exemplo, da Gripe Espanhola, que se difundiu logo depois da Primeira Grande Guerra e que matou algo em torno de 50 milhões de pessoas em apenas dois anos, de 1918 a 1920.

No entanto existem inúmeras outras epidemias que surgiram e se difundiram sem nenhuma relação com guerras. Como foi o caso, só para citar algumas mais recentes, da febre amarela, do sarampo, da malária, da varíola, da tuberculose, ou mesmo a epidemia do HIV, que já infectou mais de 40 milhões de pessoas e matou mais de 20 milhões em todo o mundo sem ter nenhuma ligação direta ou causal com grandes guerras.

Da mesma forma, pode-se dizer, mesmo com o perigo do anacronismo histórico, que a Peste de Justiniano (527-569), que durou dois séculos e matou mais 100 milhões de pessoas, teve uma relação muito estreita com o fim do Império Romano. E mesmo se poderia dizer, talvez com muito maior razão, que a Peste Negra, que matou metade da população europeia no século 14, teve um papel decisivo no nascimento do sistema interestatal europeu. O historiador inglês Mark Harrison, da Universidade de Oxford, sustenta a tese de que foi a Peste Negra que provocou a centralização do poder dos Estados e sua delimitação territorial, como forma de controlar e limitar o contágio, difundindo novas práticas higiênicas entre as populações que ainda viviam sob a servidão feudal.

Acho que essa tese, aliás, faz todo sentido e ajuda a entender reação “egoísta” dos Estados nacionais, através dos tempos, toda vez que tiveram que enfrentar epidemias contagiosas, que se expandem por cima de suas fronteiras territoriais. Mesmo assim, todas as demais epidemias ou pestes que mencionamos podem ter provocado grandes avanços médicos ou sanitários, mas não produziram nenhuma grande ruptura histórica nem alteraram a rota expansiva do sistema mundial. Ou seja, a crise atual não é da mesma natureza que as crise de 1929 e de 2008, e não envolverá necessariamente nenhuma grande ruptura histórica.

TUTAMÉIA — POR QUE É MUITO COMUM COMPARAR AS EPIDEMIAS COM AS GUERRAS?

JOSÉ LUÍS FIORI — Acho que é uma comparação muito forte e que pode ser útil para mobilizar as populações e os atores sociais e econômicos mais importantes para o combate à doença. E, de fato, as grandes pestes costumam produzir consequências econômicas de curto e médio prazo parecidas com as das guerras. Além disso, nas grandes epidemias, como nas grandes guerras, os Estados nacionais são obrigados igualmente a assumir o comando estratégico do combate ao “inimigo comum”, estatizando atividades relevantes e implementando políticas econômicas típicas das chamadas “economias de guerra”.

Mas, ao contrário das guerras, as epidemias não costumam destruir cidades, infraestruturas, equipamentos físicos, fábricas ou qualquer outra atividade econômica. Por outro lado, as guerras envolvem pelo menos dois atores ou Estados que se consideram inimigos e que têm uma materialidade e uma identidade emocional que provoca uma imediata solidariedade nacional por cima das próprias classes sociais. Já as epidemias contagiosas, como a que estamos vivendo, não têm uma materialidade clara e afetam as classes sociais de um mesmo país de forma inteiramente diferente, provocando uma reação defensiva de tipo “egoísta”, por parte dos Estados, das classes e dos indivíduos, sendo muito comum a estigmatização das grupos sociais mais vulneráveis ou contagiadas. Por fim, e essa é uma diferença fundamental, nas guerras sempre existem os vencedores e os perdedores, e cabe ao vencedor impor as regras de sua “paz hegemônica”, que devem ser acatadas necessariamente pelos derrotados.

No caso das grandes pandemias, como a que estamos enfrentando, não há vitoriosos e perdedores nítidos, e não há nenhuma força material que imponha qualquer tipo de acordo em torno do que poderia ser um eventual plano de reconstrução coletivo.

Ou seja, as guerras são muito mais destrutivas, mas as saídas das pandemias são muito menos solidárias.

Hoje, muitos falam de um mundo novo, que poderia nascer desta experiência traumática, e até apostam em mudanças humanitárias do capitalismo. Mas não vejo a menor possibilidade de que isso aconteça. O próprio avanço da epidemia já está provocando uma guerra sem quartel entre as nações pelos equipamentos médicos. Essa guerra dever seguir e até aumentar depois da epidemia, junto com os ressentimentos que ficarão desta megaexperiência de egoísmo coletivo explicito.

TUTAMÉIA — QUAIS SÃO AS CONSEQUÊNCIAS DESSA CRISE PARA A GEOPOLÍTICA GLOBAL? É CORRETO PENSAR QUE A CHINA SE CONSOLIDA COMO LIDERANÇA GLOBAL?

JOSÉ LUÍS FIORI — Essa pandemia não produzirá nenhuma grande inflexão geopolítica dentro do sistema mundial. O que ela fará é acelerar a velocidade das transformações que já estavam em curso e que seguirão se aprofundando. Alguém já disse que é na hora das grandes pestes que a gente conhece a verdadeira natureza de uma sociedade. Pois também acho que essa nova peste está apenas desvelando o que já existia, mas que ainda estava encoberto pelo que talvez se pudesse chamar de último véu de hipocrisia do que muitos analistas chamam de “ordem liberal”, ou de “hegemonia americana” do século 20.

A epidemia do novo coronavírus foi identificada na China, no final de dezembro de 2019, mas hoje já está claro que seu epicentro se deslocou para a Europa e os Estados Unidos e que sua duração não será nunca menor do que seis ou sete meses, sendo ainda difícil quantificar o tamanho do estrago e da destruição humana e econômica desses países. Mas ninguém tem dúvida que, se ela se estender para o Sul, terá um efeito muito maior e devastador sobre a população e a economia dos países “periféricos” da África, do Oriente Médio e da América Latina. E, depois que a epidemia passar ou for controlada, como sempre acontece, serão as grandes potências que se recuperarão na frente, começando pela China e pelos Estados Unidos.

Nesse sentido, o mais provável é que essa epidemia aumente a desigualdade e a polarização do mundo, que já vinham crescendo de forma acelerada desde a crise financeira de 2008. E deve acentuar a nova virada nacionalista do sistema interestatal, que já vinha se manifestando desde o início do século 21 e que assumiu alta velocidade depois que os Estados Unidos de Donald Trump mandaram para o espaço as suas antigas convicções multilateralistas e globalistas, começando pela sua própria política econômica.

A Rússia deverá sofrer um novo baque econômico com a epidemia e com a crise da indústria do petróleo, mas isso não afetará a sua nova posição como grande potência militar dentro do sistema mundial.

Na União Europeia, por sua vez, a pandemia deve apenas acelerar e, quem sabe, concluir o processo de implosão ou desintegração do seu projeto unitário, que já vinha se decompondo desde a crise de 2008 e que entrou alta rotação depois do Brexit.

E a China seguirá o curso do seu projeto expansivo programado para a metade do século 21, aproveitando as oportunidades e brechas abertas pela decomposição europeia, pela desvinculação norte-americana da antiga utopia da ordem liberal e da economia globalizada.

A aposta do poder americano nesse momento está inteiramente depositada na manutenção da sua supremacia no campo da moeda, no das finanças e no do controle naval de todos os mares e oceanos do mundo. Nesse ponto, não há que ter ilusões: o epicentro da crise de 2008 foi nos EUA. Mas, depois da crise e durante a segunda década do século 21, foi o país que mais cresceu entre os considerados desenvolvidos, chegando a aumentar sua participação no PIB mundial de 23% para 25%. Na mesma década, os EUA aumentaram seu poder financeiro global junto com sua capacidade de utilizar sua moeda e seu mercado financeiro para hostilizar seus inimigos e concorrentes. Nesse período, o mercado de capitais americano aumentou 250%, ficando com 56% da capitalização financeira global.

Os grandes bancos americanos dominam hoje as finanças globais mais do que em 2010. Cerca de 90% das transações financeiras globais são feitas em dólar. Ou seja, não há nada que impeça que os EUA superem essa nova crise e recuperem rapidamente sua capacidade econômica e financeira global, na frente de todos os demais países desenvolvidos –com exceção, talvez, da China.

Ou seja, olhando para a frente, há que colocar essa pandemia dentro de uma trajetória mundial de grandes transformações que já estavam em curso, incluindo a competição e o conflito entre China e Estados Unidos, que devem aumentar em escala exponencial depois da epidemia, sobretudo se Donald Trump for reeleito.

TUTAMÉIA — NO ESTOPIM DA CRISE NO CAMPO ECONÔMICO ESTÁ TAMBÉM A DISPUTA PELO MERCADO DE PETRÓLEO. COMO ESSA LUTA DEVE EVOLUIR? QUAIS DEVEM SER OS PAPÉIS DA RÚSSIA, DA ARÁBIA SAUDITA, DA CHINA E DOS EUA?

JOSÉ LUÍS FIORI — A pressão sobre os preços e os níveis de produção mundial de petróleo já vinha se acentuando desde antes da epidemia e se materializou na ruptura das negociações da OPEP+ e no início da guerra de preços entre Rússia e Arábia Saudita. Não há dúvida, no entanto, de que a pandemia do coronavírus e a consequente queda da demanda mundial de óleo foram decisivos para que o preço do petróleo caísse de US$ 70 para US$ 25 o barril, dando início à maior crise da indústria petroleira nos últimos cem anos, segundo muitos especialistas da área.

Não se sabe ainda por quanto tempo se prolongarão a epidemia e o baque da economia mundial, nem tampouco se sabe o tamanho e a duração da recuperação econômica depois do fim da pandemia. Mas uma coisa é certa: se os preços do petróleo se mantiverem nos níveis atuais, eles terão um impacto muito grande sobre a geoeconomia mundial do petróleo.

A indústria americana do shale oil teria que ser protegida pelo governo ou quebraria. E, neste caso, os EUA perderiam a posição que conquistaram nos últimos três anos, de maior produtor mundial de petróleo. Esses preços afetariam também a capacidade fiscal da Rússia e da Arábia Saudita e atingiriam em cheio os países petroleiros que trabalham com altos custos de produção, como é o caso do Irã, da Venezuela, do Iraque, da Nigéria etc.

Por isso, é muito provável que se siga uma nova crise da dívida soberana dos países dependentes da exportação do petróleo, como no caso quase imediato do Equador e do México, mas também do Iraque e da Nigéria, entre outros. Nesse momento, tudo leva a crer que as negociações, que foram retomadas, acabem levando a um acordo. Mas não é provável que os novos preços sejam superiores aos US$ 35 o barril. Mesmo esse preço seria insuficiente para alterar a situação do petróleo americano e, muito mais, dos países que dependem inteiramente da sua exportação de óleo.

Seja como for, as perspectivas pela frente são muito ruins para a indústria do petróleo como um todo e, como efeito derivado, para todo o mercado financeiro mundial e norte-americano em particular, envolvido até o pescoço com as cadeias de investimento e pagamento da indústria do óleo e com a própria valorização do petróleo como ativo financeiro.

TUTAMÉIA — OS EUA SE MOVIMENTAM NESSE MOMENTO NO CARIBE. UMA INVASÃO NORTE-AMERICANA NA VENEZUELA É UM CENÁRIO POSSÍVEL? QUAIS AS CHANCES DE ESSA INVESTIDA SER BEM SUCEDIDA? COMO REAGIRIAM CHINA E RÚSSIA NESSA HIPÓTESE? QUAL SERIA O PAPEL DO BRASIL?

JOSÉ LUÍS FIORI — No início do mês de março, publicamos um artigo com William Nozaki anunciando essa possibilidade através de um raciocínio e de um argumento deduzido a partir de várias evidências que pareciam ainda desconectadas. Mas hoje essa ameaça já se materializou, com o cerco naval da Venezuela em nome do combate ao tráfico de drogas que acontece sobretudo na Colômbia e no México. Já se falou de defesa da democracia, de necessidade humanitária, de combate ao comunismo etc. Mas agora se trocou pelo combate ao tráfico de drogas para o mercado consumidor norte-americano. Os motivos alegados já são a essa altura inteiramente irrelevantes. O que importa é a decisão e a ação norte-americana, do seu bloqueio naval, das suas sanções comerciais e da tentativa de estrangulamento financeiro da economia e do Estado venezuelano.

Creio que a invasão militar direta ainda é improvável –e, se ocorrer, será através de bombardeios navais. Antes disto, entretanto, os EUA apertarão o cerco cada vez mais para provocar pânico e aumentar o estresse psicológico do governo e da população venezuelana, inclusive com o boicote à capacidade médica venezuelana de combate na epidemia do coronavírus.

Creio que Rússia e China manterão seu apoio ao atual governo venezuelano, mas não sei calcular sua capacidade de bloquear ou desativar esse tipo de guerra que os americanos estão promovendo. Do ponto de vista militar e estratégico, a Colômbia é muito mais importante do que o Brasil. As bases americanas já estão instaladas no território colombiano e a fronteira entre a Colômbia e a Venezuela é mais extensa e ativa do que a fronteira brasileira.

Nesse momento, o Brasil não tem capacidade militar nem financeira para enfrentar a Venezuela. Mas com certeza lhe será destinado um papel que o comprometa nessa ação, como fechar a fronteira sul da Venezuela, ou controlar e intervir na Bolívia e no Equador, que completam o quadro geopolítico junto com o Peru, da Amazônia Sul-Americana _e onde é muito provável que ocorram novas revoltas populares, na sequência da epidemia. A disputa dos EUA com a China e a Rússia já colocou a luta pelo controle da Amazônia Sul-Americana dentro do mapa geopolítico e econômico da competição entre as grandes potências econômicas e militares do sistema mundial. Esse parece ser um processo irreversível.

Os novos acordos militares entre o Brasil e os EUA, negociados pelo governo Temer e completados pelo atual governo brasileiro, como no caso do recente acordo RDT&E, que foi assinado pelas autoridades brasileiras diretamente dentro do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA para a América Latina e o Caribe, inscrevem-se diretamente dentro dessa estratégia americana, à qual o Brasil agora está inteiramente subordinado. Amplos setores das FFAA brasileiras acreditam e apostam na possibilidade de que esses novos acordos possam transformar o Brasil numa espécie de “protetorado militar” dos EUA, com acesso a algumas tecnologias militares mais avançadas, que são entregues a alguns aliados mais estreitos dos EUA.

Mas, nesse caso, não fica claro para que serviriam essas armas. Seria ridículo imaginar que elas fossem suficientes para defender o país do ataque das grandes potências militares do sistema mundial. E, nesse caso, elas só seriam “úteis” contra os vizinhos mais fracos da América Latina, o que seria uma tragédia para as futuras gerações brasileiras. Além disso, seria importante que esses militares que não têm a representação da sociedade brasileira para tomar uma decisão dessa gravidade lembrassem, por um minuto que fosse, que o Iraque também foi armado pelos EUA para lutar contra o Irã, e depois foi inteiramente destroçado pelos próprios EUA.

TUTAMÉIA — QUAIS OS IMPACTOS DA CRISE SOBRE A ECONOMIA? O ATUAL ARRANJO PRODUTIVO DA CHAMADA GLOBALIZAÇÃO (COM FRAGMENTAÇÃO DA PRODUÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO) PODE RESISTIR A ESSA HECATOMBE?

JOSÉ LUÍS FIORI — Seus impactos imediatos serão devastadores. A epidemia do coronavírus não se destaca por sua taxa de mortalidade, que é bem menor do que a de muitas outras grandes epidemias. Ela se destaca pela velocidade do seu contágio e sua expansão universal. Ela foi identificada na China, no final do mês de dezembro de 2019, e em três meses já atingiu quase 200 países e mais de um milhão e meio de pessoas. Uma peste velocíssima e que é já praticamente universal, sem que se consiga prever o seu tempo de desenvolvimento futuro.

Alguns especialistas falam em seis a sete meses, outros em dois a três anos, mas seu impacto econômico foi quase instantâneo, atingindo a oferta e a demanda, com uma queda da produção e aumento vertiginoso do desemprego em quase todos os países do mundo, seguindo-se da quebra das grandes cadeias globais de produção e de pagamento ao redor do mundo, com efeito imediato sobre os circuitos financeiros de todo o mundo. Hoje, as perspectivas futuras já são muito ruins, mas elas podem piorar ainda mais, dependendo da duração da epidemia e da paralisia econômica dos EUA. E dependendo da profundidade de seu impacto sobre a economia europeia. E, sobretudo, sobre o sistema monetário europeu, que está ameaçado de naufragar junto com a própria União Europeia.

Não se deve esquecer que, se esse “apagão” econômico do Ocidente se prolongar, ele acabará dificultando também a recuperação da economia chinesa, que ficará temporariamente afastada dos grandes mercados consumidores de sua produção industrial. O FMI está revendo suas previsões a cada semana, mas já não tem dúvidas de que em 2020 a economia mundial terá uma grande recessão, com altíssimas taxas de desemprego, muito pior do que na crise de 2008.

Para os EUA em particular, estão prevendo uma queda do PIB neste ano que deverá ser o dobro da que ocorreu naquela grande crise. E a própria China está revendo para baixo suas previsões iniciais para sua economia, que já eram muito ruins para eles e para todo mundo.

A única pergunta que permanece sem resposta é sobre a duração provável desse baque econômico. Alguns falam em um semestre; outros em até três anos; no caso da maioria dos países mais pobres, já se fala da década de 2020 como uma década inteira perdida.

TUTAMÉIA –MUITOS TÊM APONTADO QUE A CRISE VAI ENTERRAR AS IDEIAS NEOLIBERAIS E QUE O ESTADO VOLTARÁ A SER CONSIDERADO COMO ESSENCIAL NA CONDUÇÃO DO ENFRENTAMENTO DA CRISE. ISSO FAZ SENTIDO?

JOSÉ LUÍS FIORI — Num primeiro momento, como em todas as situações de guerra, ou de grandes catástrofes, o Estado será obrigado a centralizar o comando e o planejamento sanitário e econômico do país e levar à frente uma política econômica “heterodoxa” de aumento expressivo dos seus gastos e de multiplicação do dinheiro disponível para as pessoas e as empresas. Mas nada disso garante que depois da crise os países mantenham essa mesma política de cunho mais fortemente keynesiano.

As grandes potências deverão rever as estratégias de globalização de suas cadeias produtivas.

A Rússia, a China e alguns países europeus procurarão aumentar seus graus de liberdade com relação ao sistema financeiro e monetário norte-americano. E todos deverão aumentar o grau de proteção mercantilista de seus territórios e de sua economia.

Os países periféricos e mais fracos, pelo contrário, deverão enfrentar as “dívidas da epidemia”, com a volta radicalizada a suas políticas anteriores de austeridade fiscal e de venda acelerada do patrimônio público na “bacia das almas”, na busca impossível do “equilíbrio perdido”.

Não é improvável que nesse momento se multipliquem as revoltas sociais ao redor do mundo e a mudança de governos nos países que ainda mantenham a prática de fazer eleições periódicas e regulares, na década de 2020.

TUTAMÉIA — É POSSÍVEL PREVER UMA CRISE FINANCEIRA QUE RESULTE NUM ENCOLHIMENTO DESTE SETOR NA ECONOMIA MUNDIAL?

JOSÉ LUÍS FIORI — Se a epidemia e a recessão econômica se prolongarem, é muito provável que tenhamos uma crise financeira mais grave pela frente, apesar de os governos e os bancos centrais dos países mais ricos terem reagido de forma bastante rápida, mais rápida do que em 2008. Nesse momento é do interesse direto dos EUA e do Fed repetir o que fizeram naquela última crise financeira, assegurando liquidez em dólares para os BCs das principais economias capitalistas dependentes do seu sistema financeiro.

Seja como for, não devemos nunca esquecer a lição fundamental do historiador Fernand Braudel, sobre a história do capitalismo: na origem do capitalismo, na primeira a hora de sua existência, se estabeleceu uma relação muito estrita entre os príncipes e os banqueiros e, desde então, eles permanecem unidos, numa espécie de casamento indissolúvel, através de toda a história capitalista. Tudo indica que seguirão juntos e inseparáveis, se defendendo mutuamente e mantendo seus espaços relativos de poder, até o fim da história capitalista, se é que ela terá um fim.

TUTAMÉIA –O GOVERNO BRASILEIRO TEM SE MOSTRADO INEPTO NO ENFRENTAMENTO DA CRISE. O QUE É POSSÍVEL PREVER SOBRE OS DESDOBRAMENTOS DA CRISE NO PAÍS DO PONTO DE VISTA SANITÁRIO, SOCIAL E ECONÔMICO?

JOSÉ LUÍS FIORI — A epidemia apenas explicitou o que já se sabia: que o Brasil é presidido nesse momento por um cidadão inteiramente desequilibrado, inepto e ignorante. E que a economia brasileira está nas mãos de um pequeno financista, que só tem uma única ideia fixa na sua cabeça. E, por isso, não consegue entender, pensar e reagir de forma um pouco mais inteligente e eficiente frente ao tamanho da crise que o país está enfrentando. Na verdade, não se trata de um governo; se trata de um amontoado de pessoas reunidas pelos seus medos, suas fobias e seus ódios ao petismo, ao lulismo, à China, ou seja lá ao que for.

Ou seja, um governo inteiramente despreparado e sem comando e, portanto, incapaz de enfrentar uma crise dessas proporções. Foram lentos e estão divididos frente à epidemia e mal conseguem se mover no plano econômico para fazer o que todos os governos do mundo estão fazendo. Ou seja, emitir e distribuir o dinheiro indispensável para que as pessoas –sobretudo os desempregados e subempregados– e as empresas possam seguir comprando, pagando e cumprindo seus compromissos financeiros durante a paralisia inevitável da atividade econômica e durante a longa recessão que teremos durante muito tempo.

Segundo o próprio Ministério da Saúde, a epidemia no Brasil está recém na sua primeira fase e deve se agravar em maio e junho, chegando até no mínimo a setembro. Além disso, o contágio epidêmico parece ainda não ter alcançado as populações mais pobres e marginalizadas das grandes cidades brasileiras –São Paulo e Rio de Janeiro, em particular. Sabidamente, o Brasil está entre as sociedades mais desiguais do planeta e isso o torna extremamente vulnerável frente à uma epidemia contagiosa que, quando alcançar as populações e as comunidades mais pobres, terá um efeito devastador.

Hoje, os governadores dos Estados têm atuado de forma mais eficiente do que o governo federal. Mas logo à frente o problema será alimentar a população de desempregados e miseráveis de todo o país, sobretudo de suas grandes cidades. E aqui não há como se enganar: os prognósticos para um país tão desigual e sem governo são os piores possíveis.

TUTAMÉIA — É POSSÍVEL QUE BOLSONARO POSSA SAIR DO GOVERNO EM MEIO A ESSA CRISE? POR IMPEACHMENT? POR GOLPE? OU POR ALGUM OUTRO ARRANJO QUE AINDA NÃO VISLUMBRAMOS?

JOSÉ LUÍS FIORI — Depois de um ano de pirotecnias verbais e gestuais, esse senhor não se sustenta mais por si mesmo. Ele foi instalado na Presidência da República por uma operação política, jurídica e militar, nacional e supranacional bem sucedida. Mas ele é inteiramente incapaz de governar ou mesmo de tomar alguma decisão um pouco mais difícil e que demande um nível intelectual um pouco mais elevado. Sua inépcia pessoal e sua total ignorância o impedem de saber o que fazer frente a situações desse tipo.

Ele é uma espécie de boneco mecânico que foi programado para fazer sempre a mesma coisa, como se fosse um boneco que só sabe cuspir e que reage frente a tudo sempre da mesma maneira, cuspindo em qualquer circunstância. Isso já estava claro desde o início, mas ficou muito mais visível no momento em que em que ele foi obrigado a enfrentar uma situação que não estava prevista no seu programa e começou então a dizer bobagens e fazer agressões a esmo. Só que, nesse caso, ameaçando a vida dos próprios brasileiros.

Frente a uma pandemia mundial, ele já não tem como jogar bananas, dizer palavrões, agredir quem quer que seja. Sua única habilidade de paranoico agressivo ficou inteiramente fora de foco. Assim mesmo, o mais provável é que esse senhor siga sentado na cadeira presidencial por inteira falta de alternativa de seus principais sustentadores: os financistas de plantão e os generais aposentados que o cercam.

Por isso, esse senhor deverá seguir onde está e fazendo as suas asnices diárias que nos envergonham como brasileiros. E o país deverá seguir desgovernado a despeito da junta militar que cuida do capitão, mas não tem comando direto sobre a hierarquia das Forças Armadas. Hoje existem poucos economistas que queiram substituir o pequeno ministro de uma ideia só, porque o desastre econômico já vai muito avançado para que alguém queira pagar a conta e ficar com o abacaxi na mão. E, portanto, o nosso prognóstico político e econômico para o Brasil é muito ruim, e a situação deverá ficar ainda pior quando começarem a surgir os primeiros focos de rebeldia social inorgânica, movidos pela fome e pela miséria, que crescerão de forma geométrica no ano de 2020.

TUTAMÉIA — AS OPOSIÇÕES TERÃO FORÇA POLÍTICA PARA AGIR NESSE QUADRO?

JOSÉ LUÍS FIORI — Força política é uma coisa que se conquista no dia a dia, com a capacidade de saber o que dizer e saber o que fazer frente aos grandes desafios e oportunidades que se abrem na hora das grandes crises. Ninguém é forte de antemão. Na hora das grandes catástrofes muitas fronteiras se desfazem. Como dizia o poeta Antônio Machado, em plena Guerra Civil Espanhola: nessas horas, “o caminho se faz ao caminhar”.

………

Foto em destaque: Guilheeme Gandofi/Fotos Públicas

Um belo domingo, rapazes!

Acordei Cruz e Sousa. Fui na varanda e curti a claridade das manhãs ensolaradas de abril.


“Sol, rei astral, deus dos sidérios Azuis,

que fazes cantar de luz os prados verdes, cantar as águas!

Sol imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade! “

Neste domingo de necessária quarentena, lembrei-me de Semprun em “Um belo domingo”, que li há muito tempo. Não tenho mais o livro. Alguém levou emprestado e não devolveu. Tudo bem. Livros são feitos para proporcionar viagens e para, eles próprios, viajarem de mãos em mãos.

Neste domingo em que o Brasil enfrenta duas pestes, um vírus invisível e uma ameaça totalitária no governo, visível, não haveria motivos para curtir o sol e abstrair a dura realidade. Mas acordei Semprun. Recorri à internet e recuperei uma passagem marcante do livro:

“Manhã fria e cinzenta, no campo de concentração de Buchenwald, em que um prisioneiro, sem nenhuma razão plausível para a admiração, comenta: um belo domingo, rapazes!” *

E segue Cruz e Sousa …

Permite-me que um instante repouse na calma das Idéias, … e deixe lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal dos homens ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha acesa das formidandas paixões sangrentas.

Concede, Sol, que os manipanços não possam grotescamente, chatos e rombos, com grimaces e gestos ignóbeis, imperar sobre mim; e que nem mesmo os Papas, (os medievais papas e os novos pastores, eu diria) que têm à cabeça as veneráveis orelhas e os chavelhos da Infalibilidade, para aqui não venham com solene aspecto abençoador babar sobre estas páginas os clássicos latins pulverulentos, as teorias abstrusas, as regras fósseis, os princípios batráquios, as leis de Crítica-megatério.

E faz igualmente, Sultão dos espaços, com que os argumentos duros, broncos, tortos, não sejam arremessados à larga contra o meu cérebro como incisivas pedradas fortes.

Livra-me tu, Luz eterna, desses argumentos coléricos, atrabiliários, como que feitos à maneira das armas bárbaras, terríveis, para matar javalis e leões nas selvas africanas.

Pelo cintilar de teus raios … faculta-se … o magnificente poder de rir – rir e amar, perpetuamente rir… perpetuamente amar…

* eliesercesar.wordpress.com

A cavalaria verde-oliva não virá para nos salvar

A cavalaria verde-oliva não virá para nos salvar, por Igor Grabois

O ocupante do Planalto é tão ruim, mas tão ruim, que até os militares parecem ser melhores. Só que não. A imprensa e vastos setores da esquerda estão comprando a versão de que Bolsonaro foi enquadrado, que o general Braga Netto tem poderes demiúrgicos de enquadramento do capitão tresloucado, que os militares são racionais em contraste com as loucuras do capitão. E o general Mourão, o famoso “mal menor”, foi elevado a um quase-cara-legal, alternativa de poder viável.
As fontes da versão Braga Netto presidente de fato levam sempre ao mesmo lugar, ao site Defesanet, editado por Nelson During, renitente vivandeira de quartel e porta-voz dos generais de pijama do Rio Grande do Sul. O jornal italiano La Repubblica elevou o Defesanet a órgão oficial do Ministério da Defesa. Nem tanto, apenas oficioso, como se dizia antigamente. O editor During só publica o que é de interesse dos generais. E, para os generais, interessa a imagem de Braga Netto como o todo-poderoso.
Há um propalado documento do Centro de Estudos Estratégicos do Exército, ligado ao que os militares chamam de Órgão de Direção Geral, o Estado Maior do Exército. Lá foram encontradas teses que contrariariam a visão bozonariana da pandemia. Essas teses consistem, se é que contrariam, em duas posições, sobre a eficácia do isolamento horizontal na curva ascendente da epidemia, que perpassa o documento, e uma citação, que o papel do Estado é fundamental nessa travessia. Porém, o objetivo do documento é justamente levantar os critérios de isolamento horizontal em direção à normalidade, inclusive pelo título do documento, “Estratégias de transição para a normalidade”.
Nesta segunda correu a versão que os militares haviam impedido o capitão tresloucado de demitir o ministro Mandetta. Já corre, nessa terça, 7 de abril, a versão de que Mandetta fez um acordo com o Bolsonaro para ficar no cargo, de recuar em aspectos do isolamento horizontal e esse acordo teria sido costurado pelos militares.
O capitão e seus filhos só têm uma entidade que os enquadra, Donald Trump. A imprensa internacional já dá conta dos interesses de Trump na produção da tal cloroquina. E o Laboratório do Exército está fabricando adoidado a cloroquina, como se pode conferir nos sites do Exército e do Ministério da Defesa. O Itamaraty (oque fazem com a memória do Barão de Rio Branco) é, hoje, uma subseção do Departamento de Estado, repercutindo toda a política militar dos EUA. Vide a posição brasileira acerca da provocação naval levada a curso contra a Venezuela. O enquadramento pelos militares parece uma tabelinha, como se diz no futebol.
Pois bem, os autores racionais do documento “Estratégias de transição para a Normalidade” são os mesmos que inventaram o conceito de “Arco do Conhecimento”, ou seja o arco geográfico do Atlântico Norte, ainda em 2017. Desde então, ao contrário do que preconiza a Estratégia Nacional de Defesa, os militares abrem mão da autonomia tecnológica, doutrinária e operacional para buscar tecnologias e doutrinas nos membros da OTAN. O fato de o Brasil se tornar aliado extra-Otan não veio da “inteligência” do capitão ignóbil. É uma formulação dos militares.
A FAB permitiu a entrega da Embraer, escondendo, inclusive, relatórios internos da Força. E entregou a base de Alcântara. A Marinha preside o desmonte da Petrobras, a privatização da Eletrobras e a entrega do setor nuclear para empresas americanas. O almirante Leal Ferreira é presidente do Conselho da Petrobras e o almirante Bento é o ministro das Minas e Energia. O Exército nomeou um general para ser subcomandante do Comando Sul do Pentágono. Não dá pra botar esses fatos apenas na conta do capitão. As Forças Armadas agem, por orientação de seu comando, como um corrente política anti-nacional e anti-popular.
Por fim, as relações do capitão com os militares têm um método. Esse método foi aplicado em todas as crises provocadas pelo capitão. O capitão estica a corda. Causa indignação nacional. O capitão ensaia um recuo. Esse recuo é atribuído aos militares. Essas medidas voltam de maneira edulcorada. Os militares apoiam o capitão publicamente. O caso das MP’s 927 e 936, as do confisco salarial, é emblemático. É o que parece ocorrer com o affair Mandetta.
A cada crise, os militares avançam. Pelo menos a cúpula das forças, que apoia Guedes, Moro, e toda política neoliberal e de destruição da Constituição de 88. A lista de cargos assumidos pelos militares é interminável. Afora os seus privilégios na reforma previdenciária.
A saída para o Brasil é necessariamente popular. A prioridade hoje é combater e superar a pandemia, e isso deve nortear a ação do campo popular. Não podemos, porém, incorrer no erro de tratar os militares como alternativa. Esses dirigentes militares que aí estão são saudosos da ditadura e de suas políticas. O povo brasileiro não pode entregar os seus destinos aos generais.

“Milão. A cidade mais privilegiada de Itália está agora na fila do pão.”

“Milão. A cidade mais privilegiada de Itália está agora na fila do pão.”

De Milão, onde vive e está isolado, o professor e e escritor italiano Antonio Scurati escreve o que vê da janela da sua casa.

Texto publicado no jornal português Observador.

“Como posso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela janela, estou a trabalhar? — perguntava-se Joseph Conrad no início do século passado. Eu, em vez disso, pergunto-me: como posso explicar à minha filha que, quando olho pela janela, vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não conhecerá, a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da Humanidade.

Vivo em Milão, até ontem a mais evoluída, rica e brilhante cidade de Itália, uma das mais desejadas do mundo. A cidade da moda, do design, da Expo. A cidade do aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e a happy hour e que hoje é a capital mundial do Covid-19, a capital da região que, sozinha, soma trinta mil contágios confirmados e três mil mortos. Uma taxa de mortalidade de 10%, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas.

As sirenes das ambulâncias tornaram-se a banda sonora dos nossos dias; as nossas noites são atormentadas por homens adultos que choramingam no sono:
— O que é, sentes-te bem?
— Nada, não é nada, volta a dormir.
Milhares de amigos, parentes e conhecidos tossem até cuspir sangue, sozinhos, fora de todas as estatísticas e sem qualquer assistência, nas camas dos seus estúdios decorados por arquitetos de renome.

Se, neste momento, olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida com admirável diligência por imigrantes cingaleses. Até ontem, era uma singular anomalia neste bairro semicentral e, ao seu modo elegante, uma nota dissonante.
Hoje é um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrinas despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter a sua marca preferida de farinha.
Ficam, apoiados pela disciplina do desânimo, a um metro de distância uns dos outros, ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados, com máscaras improvisadas, feitas de pedaços de tecido com os quais, até ontem, protegiam as plantas exóticas do seu roof garden, gazes desfiadas penduradas nos seus rostos com a melancolia mole dos restos de uma era acabada.

Vejo estes homens e estas mulheres tristes, incongruentes consigo mesmos. Olho-os. Não tenho nenhuma intenção de os diminuir ou de troçar deles. São homens e mulheres adultos, contudo por cima das máscaras mostram o olhar assustado das crianças carentes.
Chegaram totalmente despreparados ao seu encontro com a história e, no entanto, precisamente por este motivo, são homens e mulheres corajosos. Fizeram parte do pedaço mais abastado, protegido, longevo, bem vestido, nutrido e cuidado da Humanidade a pisar a face da Terra e, agora, na casa dos cinquenta, estão na fila do pão.

A sua aprendizagem na vida foi uma longa aprendizagem da irrealidade televisiva. Tinham vinte anos quando assistiram, a partir das suas salas de estar, à primeira guerra da história humana ao vivo na televisão, trinta quando foram alvejados através dos televisores pelo terror midiático, quarenta quando a odisseia dos condenados da terra aterrou nas praias das suas férias. Todos encontros fatídicos que não poderiam perder. As grandes cenas da sua existência foram consumidas em eventos midiáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas praias dos migrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à televisão. E agora estão na fila do pão.

A sua infância foi uma mangá japonesa, a sua juventude uma festa de piscina — lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa —, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesi do trabalho, os verões na praia, o sublime do spa. Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam, mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca viveram uma questão sobre o seu lugar no universo.
E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já brancos, o abdómen prolapso e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na fila do pão.

Turistas compulsivos, correram o mundo sem nunca sair de casa e agora a sua casa marca para eles os limites do mundo; sofreram quase só dramas interiores e agora o drama da história catapulta-os para a linha de fogo de uma pandemia global; têm uma casa na praia e um carro de última geração, mas agora estão na fila do pão; tiveram mais cães do que filhos e agora arriscam as suas vidas para levar o seu caniche a mijar.

Olho-os da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os enquanto o número de mortes sobe para quatro mil, enquanto o contágio cresce exponencialmente, enquanto sustenho a respiração para não inalar o ar do tempo. Olho-os e compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da história humana, mas, depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente quando começaram a ficar demasiado velhos para esperar um mundo vindouro. Porém, terão de o fazer. E o farão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo que têm sido obrigados a experimentar nestes dias: um mundo que se questiona sobre como educar os próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável, sobre como cuidar de si e dos outros. Uma era acabou, outra começará. Amanhã. Hoje estamos na fila para o pão. Hoje os jornais titulam: “resiste, Milão!” E Milão resiste.

Lanço um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos dos cinquenta anos, os meus concidadãos milaneses, os meus rapazes repentinamente envelhecidos: como são grandes e patéticos com os seus ténis de corrida e as suas máscaras cirúrgicas. Tenho piedade, compreendo-os, compadeço-me deles. Dentro de alguns segundos estarei na fila junto deles.”

Antonio Scurati – professor de Linguística e Comunicação na Universidade de Milão.

Via Mauricio Machado

Compartilhado do Facebook de Ulisses Ferraz

Considerações sobre o Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro”,

Compartilhado de aterraeredonda.com.br

Por Marilena Chaui*

Considerações sobre o Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro”.

“Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer” (Geraldo Vandré)

Maquiavel dizia que o verdadeiro político é aquele que, na desordem e no tumulto, sabe discernir o momento oportuno para agir. O Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro” é uma convocação para agirmos no momento oportuno.

Seu acerto é duplo. Em primeiro lugar, por propor agir como uma frente nacional contra a irresponsabilidade criminosa de incitação ao homicídio feita por Bolsonaro ao se opor ao isolamento social (imaginando-se aliado e cópia de Donald Trump, acabou isolado pelo mundo inteiro) e sua demora em tomar providências mínimas para assegurar a vida de milhões de brasileiros, procrastinando a liberação de recursos com querelas sobre MPs e decretos.

Em segundo lugar, o Manifesto acerta ao propor a renúncia de Bolsonaro e não seu impeachment, pois este acrescentaria à crise atual mais uma crise (longa e de resultado imprevisível) que abriria espaço para divergências e lutas num momento em que a sociedade brasileira clama por clareza de objetivos e de ações.

Para não esquecer

Durante os últimos 35 anos, vimos surgir e agir uma personagem que, do Alto e à nossa revelia, decidia os rumos do planeta. Essa personagem foi batizada pelos meios de comunicação e pelos economistas de direita com o nome de “O Mercado”, dotado de onisciência e onipotência. Onisciência porque, tendo a extraordinária capacidade de auto-regulação racional, sabe sempre e de antemão os rumos corretos e necessários do capitalismo. Onipotência porque possui um poder incontestável de decisão sobre as ações dos Estados e das sociedades e sobre os corações e as mentes dos indivíduos. Como toda divindade fetichista, “O Mercado” tem reações psicológicas: “está nervoso”, “está calmo”, “está de acordo”, “não está de acordo”, “aprova”, “desaprova”, “recompensa”, “pune”. Em suma, o seu “estado de espírito” repercute nas políticas do planeta e na vida cotidiana dos cidadãos. “O Mercado”, como sabemos, é o apelido do capitalismo neoliberal.

Ora, algo curioso vem acontecendo nas últimas semanas com a expansão do coronavírus ou Covid-19. Nos meios de comunicação, nos debates políticos, nas falas de governantes e nas redes sociais a palavra “mercado” desapareceu como por um golpe de mágica. Jornalistas, políticos, governantes e cidadãos passaram a empregar duas palavras que haviam sido banidas do vocabulário: economia e Estado. Como conseqüência, de repente, não mais que de repente, o vocabulário da socialdemocracia – controle estatal da economia e políticas sociais – é retomado.

Exemplifiquemos com o caso do Brasil.

Sem a menor vergonha na cara, agora é feito o elogio do Bolsa Família (aquele programa que era assistencialismo para os preguiçosos, lembram-se?), do SUS (aquele que Mandetta desativou quase por completo, lembram-se?) e muitos apregoam a necessidade da Renda Básica ou da Renda Mínima (sem que Eduardo Suplicy seja mencionado uma única vez nem entrevistado como o incansável campeão dessa idéia). Por sua vez, o “empresário de si mesmo”, os trabalhadores informais, os desempregados e os moradores de favelas e de rua passaram a receber uma nova designação: “vulneráveis”, como se sua vulnerabilidade tivesse surgido por conta do Covid-19 e não da aliança entre “O Mercado” e o governo neoliberal.

É espantoso o descaramento do uso da palavra “solidariedade” por aqueles que controlam ideologicamente a mídia e a política e que, até um mês atrás, se empenhavam do elogio irrestrito à competição e à “meritocracia”. Além disso, com igual descaramento, o governo federal exige que os cientistas das universidades públicas e dos centros públicos de pesquisa tragam rapidamente soluções para aquilo que deixou de ser “histeria” para ser considerado pandemia, sem que se diga que não houve investimento algum nas pesquisas públicas (lembram-se de Bolsonaro afirmando que pesquisa séria só é feita em universidades privadas e Weintraub cortando as bolsas de pesquisa do CNPq e da CAPES?). Exemplos não faltam se lembrarmos tudo o que foi dito e feito desde o golpe contra Dilma e a prisão de Lula.

Em suma, a referência à mudança de vocabulário e à relação com as políticas sociais é feita aqui no sentido de que é preciso resgatar e unificar por meio dos partidos de oposição as lutas e manifestações de movimentos sociais e populares em defesa de direitos que, desde o governo Temer, se espalharam pelo país, mas eram sempre fragmentadas, esporádicas e sobretudo criminalizadas. Insisto na figura dos chamados “vulneráveis” porque, a despeito da ideologia neoliberal sobre a “nova classe média brasileira”, são eles que constituem, na verdade, o que chamo de “nova classe trabalhadora brasileira”, fragmentada e isolada, carecendo de organizações de proteção, desprovida de uma visão social e política que lhe dê um lugar na luta democrática e socialista. Esse resgate de lutas e essa unificação de classe poderão, agora, encontrar eco na sociedade brasileira em sua rejeição a Bolsonaro.

Para nos ajudar a compreender

Penso que o artigo de Harvey “Política anticapitalista na época do Covid19”, é iluminador tanto sobre a situação planetária do capitalismo e da crise do neoliberalismo – combatido de Santiago à Beirute –, bem como sobre o lugar do Covid-19 na luta de classes, ponto que merece nossa maior atenção e pode guiar muitas das ações propostas pelo Manifesto. Harvey traça com firmeza o panorama planetário do neoliberalismo vitorioso, das lutas contra ele e dos efeitos do Covid-19 sobre ele, assinalando a ironia histórica do surgimento de uma perspectiva socialista no centro do mundo neoliberal.

Também considero importante para nossa reflexão e ação, o artigo de Paulo Capel Narvai, “A estratégia da pinça”. Narvai salienta que o que está em jogo não é a pandemia, mas as eleições de 2022. É particularmente significativa sua análise sobre a luta do grupo bolsonarista contra os governadores, que serão responsabilizados pelo péssimo desempenho da economia (o “pibinho” e o “dolão”), e sobretudo sua analise do papel de Mandetta nesse jogo, isto é, do discurso técnico aparentemente oposto ao discurso psicótico de Bolsonaro.

Uma proposta para discussão

Algumas pesquisas, mencionadas por articulistas de A Terra é Redonda e pelo site Brasil 247 indicam que, no Brasil, os mais penalizados pelos efeitos do Covid-19 (tanto do ponto de vista da saúde quanto da subsistência) são exatamente os eleitores dos partidos de oposição, particularmente os de esquerda. Em outras palavras, são aqueles de cujas organizações e lutas nasceram os projetos e programas dos partidos de esquerda, e também aqueles, destroçados pela economia e política neoliberais, que hoje buscam o caminho que define a essência da democracia, qual seja, a criação e garantia de direitos. Os partidos de oposição (esquerda e centro) devem a eles sua presença na política brasileira e por isso faço aqui uma proposta.

O Manifesto, como frente nacional de oposição, apresenta uma lista de ações necessárias a serem exigidas do governo federal, mas essa frente nacional também pode agir diretamente no atendimento emergencial dos que foram os mais atingidos pela destruição dos direitos sociais e por isso são também os mais atingidos, no curto e no longo prazo, pelo Covid19, pois são os que mais dependem dos serviços públicos e das garantias trabalhistas. Proponho que se considere a possibilidade de dirigir os fundos partidários para ações emergenciais, de maneira a deixar claro que o Manifesto é político e social. Isso configuraria uma espécie de governo paralelo? Que assim seja.

*Marilena Chaui é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Carta aberta do cônsul da China a Eduardo Bolsonaro

Deputado Eduardo, no tuíte que você postou no dia 1º de abril, chamou o Covid-19 (SARS-CoV-2) de “vírus chinês”, o que se trata de mais um insulto à China que você fez depois de ter postado tuítes em 18 de março para atacar maliciosamente a China.

Você é realmente tão ingênuo e ignorante? Como deputado federal da República Federativa do Brasil que possui alguma experiência em tratar dos assuntos internacionais, você deveria saber que os vírus que causam pandemia são inimigos comuns do ser humano, e a comunidade internacional nunca chama os vírus pelo nome de um país ou região para evitar a estigmatização e a discriminação contra qualquer grupo étnico específico. A Organização Mundial da Saúde seguiu esta regra do direito internacional para chamar o novo coronavírus de Covid-19 (SARS-CoV-2). Além disso, ainda está por se confirmar a origem deste vírus. O surto de Covid-19 em Wuhan não significa necessariamente que Wuhan foi a fonte inquestionável do novo coronavírus.

O diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos já reconheceu que, durante a chamada “epidemia de gripe” nos Estados Unidos, no ano passado, algumas pessoas teriam morrido por Covid-19. Isso justifica que, muito provavelmente, os Estados Unidos foram a fonte da Covid-19. Mas podemos batizar o Covid-19 (SARS-CoV-2) como “vírus norte-americano”? Não! Do mesmo modo, ninguém no mundo pode chamar o zika como “vírus brasileiro”, apesar do fato de a epidemia de zika ter acontecido e ainda acontecerem casos frequentemente no Brasil.

É por causa do seu ódio à China que ataca frequentemente a China? Mas de onde vem esse ódio? A aproximação entre a China e o Brasil é resultado de um desenvolvimento histórico com alicerce natural. Tanto a China como o Brasil são grandes países emergentes com território e população gigantes, com culturas ricas e coloridas e povos simpáticos e amigos. Ambos os países possuem planos grandiosos para promover a prosperidade e riqueza nacionais, bem como ambição para salvaguardar a paz e justiça internacionais. É ainda mais importante o fato de que não há divergências históricas nem conflitos atuais entre os dois países, que já se tornaram parceiros estratégicos globais. O povo chinês sempre abraça o povo brasileiro com sincera amizade, tratando o Brasil como nosso país irmão e parceiro. O respeito recíproco e a cooperação de ganhos mútuos de longo prazo entre os dois países trazem benefícios pragmáticos para os dois povos. Por dois anos consecutivos, dois terços do superávit do comércio exterior do Brasil vieram da China, o seu maior parceiro comercial! É por isso que tanto a geração do seu pai como a da sua idade estão todos se dedicando a promover a cooperação amigável sino-brasileira. Em resumo, os seus comportamentos remam contra a maré e não só colocam você no lugar adverso do povo chinês de 1,4 bilhão, mas também deixam a maioria absoluta dos brasileiros com vergonha, bem como criam transtornos ao seu pai, que é o presidente da República. É realmente uma prova de ignorância a respeito do tempo atual!

Será que você recebeu uma lavagem cerebral dos Estados Unidos e quer ir firmemente na esteira deles contra a China? Os Estados Unidos eram realmente um país grande e glorioso. No entanto, neste ponto crítico do avanço da civilização humana, os EUA perderam sua posição histórica e o sentido de desenvolvimento, tornando-se quase totalmente causadores de problemas nos assuntos internacionais, e uma fonte de ameaça à paz e segurança mundiais. Os líderes atuais norte-americanos já se esqueceram dos ideais dos fundadores do país de assegurar a justiça. Ademais, tornaram-se monstros políticos cheios de preconceitos ideológicos contra os outros países e sem capacidade de governar, o que pode ser justificado pelo desempenho horrível no combate à pandemia de Covid-19 nos EUA. Por outro lado, sendo uma potência cheia de vitalidade e em ascensão, o Brasil deve e é capaz de fazer contribuições importantes para o progresso da civilização humana, desde que tenha sua própria visão estratégica, possua sua perspectiva correta sobre os assuntos internacionais e desempenhe seu próprio papel construtivo. O Brasil não deve tornar-se um vassalo ou uma peça de xadrez de um outro país, senão o resultado seria uma derrota total num jogo com boas cartas, como diz um provérbio chinês.

Deputado Eduardo, há pelo menos uma semelhança entre a cultura confucionista chinesa e a cultura cristã brasileira, que é a crença em que sempre existe a causalidade em tudo, razão pela qual a gente tem que pensar nas consequências antes de fazer qualquer coisa. Como não é uma pessoa comum, você deveria entender melhor essa razão. O que é o mais importante para o Brasil agora? Sem dúvida, é salvaguardar a vida e a saúde de centenas de milhões de pessoas, e reduzir ao mínimo o impacto da pandemia na economia do Brasil, da China e do mundo, através da cooperação China-Brasil no combate à Covid-19. A China nunca quis e nem quer criar inimizades com nenhum país. No entanto, se algum país insistir em ser inimigo da China, nós seremos o seu inimigo mais qualificado! Felizmente, mesmo com todos os seus insultos à China, você não conseguirá tornar a China inimiga do Brasil, porque você realmente não pode representar o grande país que é o Brasil. Porém, como é um deputado federal, as suas palavras inevitavelmente causarão impactos negativos nas relações bilaterais. Isso seria uma grande pena! Contaminaria e poluiria totalmente o ambiente saudável que China e Brasil conquistaram até aqui.

Portanto, é melhor ser mais sábio e racional. Você pode não pensar na China, mas não pode deixar de pensar no Brasil. O demônio da Covid-19 chegou finalmente à maravilhosa terra brasileira. Neste momento crucial da cooperação bilateral no combate à pandemia de Covid-19, seria mais prudente não criar mais confusões. Ainda mais importante, seja um verdadeiro brasileiro responsável, ao invés de ser usado como arma pelos outros!

Li Yang é cônsul-geral da República Popular da China no Rio de Janeiro

De onde veio o dinheiro? por Nelson Barbosa

De onde veio o dinheiro?

Nelson Barbosa

A crise do Covid-19 produziu um raro consenso entre economistas. Acostumados a divergir em várias coisas, hoje a maioria de nós acha necessário um aumento temporário e substancial do déficit público para salvar vidas evitar uma queda maior da economia.

Quase que em um passe de mágica, besteiras como “acabou o dinheiro” ou “PIB público versus PIB privado” desapareceram do debate público. Hoje somos todos keynesianos contra crise.

Diante da mudança de opinião por parte de vários colegas, sinto-me no dever de explicar de onde apareceu tanto dinheiro para combater o Covid-19.

O dinheiro já existia há algum tempo, devido ao alto desemprego e elevada ociosidade da economia desde 2016, mas vários colegas escondiam este fato, pois do contrário não poderiam defender um ajuste fiscal draconiano. Vamos por partes.

O governo financiará suas políticas anticrise com emissão de dívida. O Tesouro colocará mais títulos no mercado, retirando moeda da economia. Ato contínuo, o Tesouro gastará os recursos, reinjetando moeda na economia.

No final do processo a dívida pública em poder do mercado subirá, isto é, a sociedade terá emitido uma obrigação contra si mesma, criando poder de compra hoje para ser pago com resultado primário no futuro.

Quanto? A resposta depende do próprio sucesso da política de estabilização. Se as iniciativas derem certo e o PIB se recuperar rapidamente, a sociedade demandará mais moeda e o Banco Central (BC) poderá criá-la comprando parte dos novos títulos emitidos pelo Tesouro. Como o BC é 100% do Tesouro, isto significa cancelamento de dívida pública por emissão não inflacionária de moeda. O governo não é uma dona de casa.

O restante da dívida pública pode ser pago ou rolado de modo infinito, pois o governo não é uma dona de casa. Neste processo, talvez o resultado primário nem precise subir muito no futuro, se a taxa real de juro cair bastante e o crescimento da economia subir de modo duradouro.

Mas sejamos conservadores. Assumamos que será preciso elevar bastante o resultado primário mais à frente para pagar parte da dívida emitida hoje. Quando?

O ajuste fiscal poderá ser abrupto ou gradual. Se for muito rápido, ele pode prejudicar a própria recuperação da economia. Se for muito lento, ele também pode atrapalhar a retomada, consumindo recursos com juros elevados. A arte da política econômica é achar a velocidade ideal e, em breve, nós economistas voltaremos a divergir neste ponto.

Porém, dado que hoje todos corretamente admitem isolamento social para achatar a curva de contágio do Covid-19, espero que a mesma lógica seja aplicada no pós-crise, para achatar o custo social do ajuste fiscal que será necessário.

Por fim, voltando ao tamanho do ajuste em si, tudo depende da taxa de juro real e do crescimento da economia, o que nós economistas chamamos de “r menos g” (eu sei, eu sei).

Se a taxa de juro cair de modo duradouro, a conta de juros será menor e, portanto, será necessário menos resultado primário para estabilizar e depois reduzir o endividamento público no futuro.

Mais importante, se a recuperação econômica for mais rápida, parte dos juros será pago com o aumento da arrecadação sobre um PIB maior, diminuindo a necessidade de ajuste fiscal por razões financeiras.

Persistirá a necessidade de ajuste fiscal por questões sociais, para promover justiça tributária e diminuir desigualdade, mas isto é outra história, para outra coluna.

Paro por aqui para respeitar nossa ortodoxia enquanto ela se recupera de keynesianismo pós-traumático.