Assassinos da SS com doutorado

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Assassinos da SS com doutorado
Em estudo monumental, historiador francês Christian Ingrao ressalta o papel decisivo dos intelectuais na elite da Ordem Negra de Himmler

JACINTO ANTÓN
Barcelona 22 JUN 2017 – 13:22 BRT

Oficial do SD na Ucrânia, em 1941
A imagem que se tem popularmente de um oficial da SS é a de um indivíduo cruel, chegando ao sadismo, corrupto, cínico, arrogante, oportunista e não muito culto. Alguém que inspira (além de medo) uma repugnância instantânea e uma tranquilizadora sensação de que é uma criatura muito diferente, um verdadeiro monstro. O historiador francês especializado em nazismo Christian Ingrao (Clermont-Ferrand, 1970) oferece-nos um perfil muito diverso, e inquietante. A ponto de identificar uma alta porcentagem dos comandantes da SS e de seu serviço de segurança, o temido SD, como verdadeiros “intelectuais comprometidos”.

O termo, que escandalizou o mundo intelectual francês, é arrepiante quando se pensa que esses eram os homens que lideravam as unidades de extermínio. Em seu livro Crer e Destruir: Os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista, Ingrao analisa minuciosamente a trajetória e as experiências de oitenta desses indivíduos que eram acadêmicos – juristas, economistas, filólogos, filósofos e historiadores – e ao mesmo tempo criminosos –, derrubando o senso comum de que quanto maior o grau de instrução mais uma pessoa estará imune a ideologias extremistas.

Há um forte contraste entre esses personagens e o clichê do oficial da SS: assassinos em massa fardados e com um doutorado no bolso, como descreve o próprio autor. O que fizeram os “intelectuais comprometidos”, teóricos e homens de ação, da SS foi terrível. Ingrao cita o caso do jurista e oficial do SD Bruno Müller, à frente de uma das seções do Einsatzgruppe D, uma das unidades móveis de assassinato no Leste, que na noite de 6 de agosto de 1941 ao transmitir a seus homens a nova ordem de exterminar todos os judeus da cidade de Tighina, na Ucrânia, mandou trazer uma mulher e seu bebê e os matou ele mesmo com sua arma para dar o exemplo de qual seria a tarefa.

“É curioso que Müller e outros como ele, com alto grau de instrução, pudessem se envolver assim na prática genocida”, diz Ingrao. “Mas o nazismo é um sistema de crenças que gera muito fervor, que cristaliza esperanças e que funciona como uma droga cultural na psique dos intelectuais.”

O historiador ressalta que o fato é menos excepcional do que parece. “Na verdade, se examinarmos os massacres da história recente, veremos que há intelectuais envolvidos. Em Ruanda, por exemplo, os teóricos da supremacia hutu, os ideólogos do Hutu Power, eram dez geógrafos da Universidade de Louvain (Bélgica). Quase sempre há intelectuais por trás dos assassinatos em massa”. Mas, não se espera isso dos intelectuais alemães. Ingrao ri amargamente. “De fato eram os grandes representantes da intelectualidade europeia, mas a geração de intelectuais de que tratamos experimentou em sua juventude a radicalização política para a extrema direita com forte ênfase no imaginário biológico e racial que se produziu maciçamente nas universidades alemãs depois da Primeira Guerra Mundial. E aderiram de maneira generalizada ao nazismo a partir de 1925”. A SS, explica, diferentemente das ruidosas SA, oferecia aos intelectuais um destino muito mais elitista.

Mas o nazismo não lhes inspirava repugnância moral? “Infelizmente, a moral é uma construção social e política para esses intelectuais. Já haviam sido marcados pela Primeira Guerra Mundial: embora a maioria fosse muito jovem para o front, o luto pela morte generalizada de familiares e a sensação de que se travava um combate defensivo pela sobrevivência da Alemanha, da civilização contra a barbárie, arraigaram-se neles. A invasão da União Soviética em 1941 significou o retorno a uma guerra total ainda mais radicalizada pelo determinismo racial. O que até então havia sido uma guerra de vingança a partir de 1941 se transformou em uma grande guerra racial, e uma cruzada. Era o embate decisivo contra um inimigo eterno que tinha duas faces: a do judeu bolchevique e a do judeu plutocrata da Bolsa de Londres e Wall Street. Para os intelectuais da SS, não havia diferença entre a população civil judia que exterminavam à frente dos Einsatzgruppen e os tripulantes dos bombardeiros que lançavam suas bombas sobre a Alemanha. Em sua lógica, parar os bombardeiros implicava em matar os judeus da Ucrânia. Se não o fizessem, seria o fim da Alemanha. Esse imperativo construiu a legitimidade do genocídio. Era ou eles ou nós”.

Assim se explicam casos como o de Müller. “Antes de matar a mulher e a criança falou a seus homens do perigo mortal que a Alemanha enfrentava. Era um teórico da germanização que trabalhava para criar uma nova sociedade, o assassinato era uma de suas responsabilidades para criar a utopia. Curiosamente era preciso matar os judeus para realizar os sonhos nazistas”.

Ingrao diz que os intelectuais da SS não eram oportunistas, mas pessoas ideologicamente muito comprometidas, ativistas com uma visão de mundo que aliava entusiasmo, angústia e pânico e que, paradoxalmente, abominavam a crueldade. “A SS era um assunto de militantes. Pessoas muito convictas do que diziam e faziam, e muito preparadas”. O que é ainda mais preocupante. “É claro. É preciso aceitar a ideia de que o nazismo era atraente e que atraiu como moscas as elites intelectuais do país”.

A BASE DE ‘AS BENEVOLENTES’
Ingrao e Littell. Qualquer pessoa que ler Crer e Destruir perceberá os paralelismos com o romance de Jonathan Littell As Benevolentes (2006). Ingrao a descreve como “uma réplica temática em ficção” de seu trabalho, e recorda que este, que foi sua tese, circulou amplamemente antes da publicação de As Benevolentes.

Max verossímil? Max Aue, o protagonista de As Benevolentes guarda muitas semelhanças com os intelectuais do SD de Ingrao. “Exceto na homossexualidade e no incesto. Mas, claro, é uma personagem de novela”. Não é demasiado refinado e esteticista para um SS? “Bem, Heydrich lia muito e tocava violino. E não se esqueça de que Eichmann lia Kant”, responde.

Também outro nazista tomado por Littell, Leon Degrelle (em seu ensaio O Seco e o Úmido) apresenta paralelos com o que foi estudado por Ingrao em seu livro Les Chasseurs Noirs: Oskar Dirlewanger. O primeiro era favorito de Hitler e o segundo, de Himmler.

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#elenão: manifestações históricas, coberturas vergonhosas

Compartilho artigo de José Roberto de Toledo. Créditos abaixo, ao final do texto. O título da matéria é meu. A foto é da manifestação de São Paulo e acompanhou o artigo ora compartilhado.

Eu estive presente nas manifestações do #elenão do Rio de Janeiro, fotografei e filmei. Escrevi um post sobre as manifestações do Rio e estou tentando anexar fotos e filme. Vou apresentar em outros posts. Foi um acontecimento emocionante, histórico. Espontâneo. Verdadeiro. Sem máscaras. Aberto. Livre. Do fundo da alma. As mulheres organizadoras e participantes estão de parabéns. Os homens que apoiaram também.

Nós estávamos lá. Nós vimos. Somos testemunhas de um acontecimento histórico. Quem liga para o que as “ORGANIZAÇÕES” Globo vendem? São omissos e manipuladores desde sempre. Repetem a fórmula de sucesso desde a ditadura. Qual a surpresa?

Paulo Martins

dialogosessenciais.com

Leia a seguir artigo de José Roberto:

Dezenas de milhares de mulheres saíram às ruas para bradar #EleNão neste sábado, em cidades de todas as regiões do Brasil. Juntas, produziram as maiores manifestações populares desta eleição presidencial, de longe. Não se sabem números exatos porque a polícia, sintomaticamente, não contou na maioria das cidades. Mas as manifestantes ocuparam densamente amplas áreas da Cinelândia, no Rio, e do Largo da Batata, em São Paulo, para citar só duas. Em uma campanha na qual rarearam os comícios, tamanha aglomeração de gente contra um candidato é notícia. E foi: em inglês, francês, árabe. Mas o brasileiro que passou o dia na frente da tevê não ficou sabendo. A menos que tivesse um celular na mão.

O episódio sintetiza todas as principais marcas da eleição presidencial de 2018 no Brasil. Em lugar da propaganda eleitoral televisiva, quem mobilizou os eleitores contra e a favor de candidatos foram as mídias sociais, notadamente o WhatsApp. Foi uma hashtag distribuída via Twitter, Facebook e Instagram que levou as maiores multidões à rua, não foram anúncios de tevê.

Os efeitos mais profundos dessa mudança são potencialmente revolucionários, pois todo o jogo de poder dentro dos partidos políticos gira em torno da distribuição do tempo de propaganda eleitoral e das verbas públicas. Se a tevê perde influência, perdem junto os caciques partidários que controlam a distribuição de tempo de câmera entre seus correligionários. Também perdem poder de barganha partidos que só existem para negociar minutos de tevê ao formarem coligações eleitorais.

Principal propaganda desse novo jeito de fazer campanha política é o candidato que lidera as pesquisas de intenção de voto e tem menos de 10 segundos por dia de propaganda na tevê. Perca ou ganhe, Bolsonaro é o personagem do ano por ter sido o único candidato capaz de surfar até o fim a onda de conservadorismo que tomou o país como um tsunami, e numa prancha de isopor: sem propaganda de tevê, sem marqueteiro, sem partido. Mas o fez destilando tanto ódio contra tantas minorias que a reação a ele acabou provocando a maior manifestação de rua de toda a eleição.

Não é de agora o movimento de mulheres contra Bolsonaro. Desde o começo da campanha, o capitão reformado sempre teve muito mais dificuldade de vender suas ideias repressivas ao eleitorado feminino do que ao masculino. O #EleNão catalisou o sentimento contra Bolsonaro e transformou algo difuso em uma ação simultânea e concreta de dezenas de milhares de mulheres. Só não foi maior porque a cobertura da campanha eleitoral na tevê é deliberadamente omissa e limitada. Não faz reportagem, entrevista; não investiga, divulga agendas.

Se parte dessa omissão pode ser explicada pelas limitações impostas pela legislação eleitoral que tange o direito à informação dos telespectadores, nem tudo, porém, cai nessa conta. A falta de cobertura ao vivo dos atos do #EleNão e, mais grave, a ausência de contextualização e ênfase nas raras reportagens sobre a mais importante manifestação de rua da campanha eleitoral de 2018 até agora não se deve ao departamento jurídico das emissoras. O movimento não é partidário nem promove nenhuma candidatura específica. É contra um candidato, sim, mas não prega que é melhor votar neste ou naquele outro.

O resultado dessa omissão e falta de contextualização é que coisas diferentes são tratadas como iguais. Uma manifestação de dezenas, no máximo centenas de pessoas em um lugar é apresentada da mesma maneira e com a mesma magnitude que dezenas de milhares de mulheres em dúzias de cidades. Na tela da tevê, o ato solitário pró-Bolsonaro em Copacabana foi equivalente à maior manifestação popular capitaneada por mulheres na história do Brasil. Felizmente, a internet provê o que a tevê omite.

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO (siga @zerotoledo no Twitter)
Jornalista da piauí, foi repórter e colunista de política na Folha e no Estado de S. Paulo e presidente da Abraji

Repúdio ao fascismo #3 – 30/09/2018

A forma mais verdadeira de desmascarar o fascista é mostrar que sua agenda econômica aumenta impostos pros pobres e diminui pros ricos.

Sua proposta é entregar as riquezas do país ao capital financeiro internacional e escravizar a população brasileira num subemprego terceirizado, sob a égide da reforma trabalhista e da previdência.

O fascista quer perseguir sindicatos, partidos e organizações que representam os trabalhadores para colocar a população trabalhando sob chicote. Militarizar a escola e reduzir o ensino superior visa formar apenas obedientes apertadores de parafusos.

Mão de obra barata e ignorante, que seja alienada da política como era na ditadura, quando o povão trabalhava feito boi de carga, ganhava pouco, passava fome e tinha a renda comida pela inflação, enquanto quem denunciava tudo isto era preso, torturado e morto.

Este é o modelo de país que o fascista quer para o Brasil: colônia de exploração escravista com povo ignorante e repressão.

Mas os ventos das Diretas Já de 1984 e das eleições de 1988 vieram pra ficar.
O Brasil derrotará o fascismo para que nunca volte a acontecer.

#EleNão, #EleNunca, #BrasilContraOFascismo!
Por Thomas de Toledo

Repúdio ao fascismo #2 – 28/09/2018

Por Roberto Efrem Filho.

“Eu sou aquele que pode ser torturado”. Acredito que isso precisa ser dito. “Sabe aquele sujeito amarrado, sangrando, posto num saco? Aquele pode ser eu”.
Penso que isso precisa ser repetido. É que nossas afirmações enfáticas de que Bolsonaro é favorável à tortura, à violência política e a regimes autoritários parecem soar distantes demais, abstratas demais.
Ouvi dias desses que hoje somos um país diferente, que coisas assim não aconteceriam mais, são outros os tempos, afinal, e o próprio Bolsonaro já se arrependeu do que disse. Pior.
Nossas denúncias acerca da tortura esbarram, não raramente, em irrelevância.
Ali, diante de nós, há alguém que julga que a tortura não é nada demais. Por isso, os torturáveis precisam de carne, de tato, de proximidade.
O torturável sou eu, o professor de sociologia e advogado de sem-terra; mas o torturável é também a sua irmã estudante universitária que irá ao ato no sábado; é o seu pai, jornalista que resolve investigar “segredos de Estado”; assim como os torturáveis – e torturados! – são os jovens negros pertencentes aos setores mais precarizados da classe trabalhadora, facilmente criminalizáveis e impunemente matáveis.
A tortura precisa ter carne, precisa mesmo ter nome, precisa de uma identidade.
“Eu sou aquele que pode ser torturado”. Sim, eu sou. “E se você apoia um candidato que concorda com a tortura, você está apertando a corta em meu pescoço”.

Repúdio ao fascismo # 1 – 27/09/2018

Iniciamos aqui a série de compartilhamento de textos que servem de alerta e repúdio contra o fascismo.

Paulo Martins

“O governo de um fascista cultua explicitamente a ordem baseada na violência de Estado e em práticas autoritárias de governo. Despreza naturalmente grupos sociais vulneráveis e fragilizados. Lá no Terceiro Reich, de Hittler, durante o período de 1933 e 1945, foram os judeus. Aqui no Brasil já está declarado que são mulheres(seres inferiores), homossexuais, índios, quilombolas, pretos e pobres das periferias, mas podem também ser eu, você, a sua família ou alguém que discorde dos métodos autoritários e violentos do fascista brasileiro. Aos poucos as pessoas vão acreditando “na construção social das propostas fascistas de um nacionalismo em defesa da pátria, da família e com Deus. Então meus caros amigos, essa é uma publicação de despedida, caso o #elenao seja eleito. #elenao vai me perseguir me prender e me torturar. Porque eles e eu somos muito diferentes. Primeiro porque eu amo o “materialismo dialético: síntese, antítese e tese. E #elesnao simplesmente não dialogam, usam a força, ou fazem nova constituição, matam e arrebentam e torturam também. E os que querem #elenao, não fizeram essa escolha porque compreenderam mal os argumentos. Escolheram #elenao porque aderem bem essa forma de vida e afetos típicos desse modelo de sociedade fascista, racista, homofóbica, violenta e injusta.”

Por Vina Guedes (compartilhado por Fernando Almeida).

Cidadãos impedidos de votar

Eu já observei que em diversas ocasiões os ministros do Supremo Tribunal Federal, quando enfrentam temas políticos que interessam ao andar de baixo da sociedade brasileira, não decidem. Um ministro pede vistas do processo, interrompe seu andamento regular e fica sem decidir por mais de uma ano, mesmo quando sua posição já está derrotada pelo voto da maioria dos seus pares. 
Em outras ocasiões, não pautam para apreciação e votação assuntos relevantes para a vida nacional e para defesa do estado democrático de direito.
Quando, por pressão da sociedade ou por ser impossível continuar driblando o regimento interno, são obrigados a julgar, não enfrentam o mérito, saem pela porta lateral: inventam alguma questão de prazo ou alegam o descumprimento de alguma formalidade irrelevante. 

Infelizmente, estes ministros nunca reconhecem o efeito deletério dos seus erros e omissões sobre a sociedade.

Este é o caso da proibição de votar decidida ontem pelo STF contra eleitores que não fizeram a tempo, por algum motivo, o cadastramento biométrico. Na verdade, trata-se de cancelamento dos títulos o que, dependendo das próximas decisões do TSE, representam efetiva proibição ao direito de votar.

Lembro-me, à época do cadastramento, que foi muito difícil conseguir vaga nos postos de cadastramento aqui na zona sul do Rio de Janeiro.
Eu consegui porque, sendo aposentado, tinha grande flexibilidade de horário e fui persistente.

Fiquei imaginando, na ocasião, quão difícil seria aos eleitores que trabalham em locais muito distantes dos seus locais de residência conseguirem um espaço nas superlotadas agendas dos ocupadíssimos
cartórios responsáveis pelo cadastramento biométrico.

As estruturas administrativas desses cartórios são deficientes, o planejamento logístico é péssimo e a atitude dos senhores
e senhoras responsáveis pelos cartórios, passiva, negligente e arrogante.

Eu, um mero cidadão, sem qualquer responsabilidade sobre o assunto previ, com grande antecedência, a situação que
se apresentou. Não me surpreendo, porém, com o absurdo atraso dos senhores e senhoras, múmias dos tribunais, ágeis para condenar e tirar das eleições certos inimigos selecionados e lentos para definir, em tempo hábil, uma solução alternativa para amparar o direito constitucional dos eleitores que não conseguiram cadastrar suas digitais nos sistemas dos cartórios eleitorais.

A decisão do STF parece ainda mais questionável quando sabemos que milhões de eleitores vão votar pelo sistema antigo, por diversos motivos.
Somente ontem, dia 26 de setembro de 2018, a onze dias das eleições, pasmem senhores, as múmias e zumbis desde triste país, conseguiram fazer chegar ao plenário do STF a discussão de tão importante tema. 

Decidiram, os senhores e senhoras ministros e ministras, por 7 x 2, barrar a possibilidade de votação de cerca de três milhões de eleitores, mesmo que esses eleitores sejam possuidores de títulos de eleitor e já estivessem regularmente cadastrados sem registro biométrico. Não sabemos quantos eleitores possuidores destes títulos barrados já faleceram, quantos mudaram de endereço e vão votar em outro estado ou quantos decidiram não comparecer para votar. Isto precisará ser estudado no futuro próximo.
Bem próximo, espero. Dois milhões de votos, que sejam, podem decidir eleições.

A própria Corte Suprema barrar acesso a um constitucional virou moda no Brasil.
Mudar a intenção do constituinte originário para prender pessoas definitivamente antes do julgamento definitivo,
impedindo seu acesso a direitos fundamentais previstos no texto constitucional, a Corte Suprema já faz. Entretanto, criar
uma categoria especial de eleitor com título, com direitos de cidadão, mas sem direito de votar eu nunca vi.

Alegar falta de tempo para tomar as medidas administrativas necessárias ao registro dos votos destes eleitores soa como desculpa esfarrapada.

Segue tudo normal neste país SQN. Com a mídia comercial, com a Procuradoria da República, com o TSE, com o Supremo, com tudo.

Paulo Martins
dialogosessenciais.com

Entre o delírio e a democracia

Publicado em O Povo Online/Mobile.opovo.com.nr

Psicanalista, ensaísta e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Tales Ab’Sáber atribuiu-se uma tarefa pouco comum entre seus pares: passar em revista a persona dos últimos três presidentes do Brasil: os petistas Lula e Dilma Rousseff e o emedebista Michel Temer. Não sob a ótica estritamente sociológica ou econômica, mas da psicanálise. Em entrevista ao O POVO por telefone, Ab’Sáber parte do acúmulo da análise feita nessas obras para avaliar a exacerbação política que marca as eleições presidenciais a duas semanas do fim do primeiro turno. Para o psicanalista, o País está numa encruzilhada entre a barbárie e a civilidade.

O POVO – Como é que um psicanalista está acompanhando a reta final do primeiro turno numa disputa que vai novamente apontando para uma batalha entre dois polos?

Tales Ab’Sáber – Uma coisa que é importante pensar, a se configurar este turno de modo polarizado, é que essa radicalização simbólica da política foi produzida pela direita e extrema-direita. O governo de esquerda, que foi derrubado com essa estratégia, não era um governo de radicalização política. Muito pelo contrário. Era um governo de conciliação, de pacto social desenvolvimentista-progressista, com avanço do capitalismo e desenvolvimento do mercado interno. Era muito claro esse projeto político, que, durante muitos anos, funcionou. Essa invenção de uma política extremada, que é excitada e, em grande parte, delirante, com uma série de premissas falsas, é uma construção própria da extrema-direita, que está vencendo o jogo político desde a derrubada do governo Dilma. Ela dissolveu a centro-direita, com PSDB, e agora segue sozinha. Então uma coisa que vai se colocar no segundo turno, se tudo indicar uma presença da extrema-direita, porque é disso que estamos falando, será um debate sobre a validade das premissas desse campo político, que sempre foram falsas. Sempre foram psico-politicamente eficazes, mas sempre foram falsas. O Brasil nunca correu risco de “venezuelização”. Nunca existiu revolução bolivariana nem comunismo. Todas essas entidades simbólicas, que produziram apaixonamento e energia política na rua, existiam à revelia dos fatos. Evidentemente, numa disputa direta de perspectivas, essas coisas vão ter que aparecer. O País vai ter que decidir, de um lado, entre esse sistema de delírio que produziu política e, do outro lado, um outro tipo de responsabilidade na democracia, um outro tipo de ordenação da vida. É muito profundo e interessante esse racha de fundamentos simbólicos na leitura da política.

OP – Como essa divisão foi ganhando corpo na vida pública do País?

Ab’Sáber – São vários fatores para a construção do que eu chamo de “apaixonamento delirante” na política. Uma das coisas é que esse grupo, ainda pequeno no processo de legitimação do impeachment (deposição da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016) na opinião pública, já era extremamente aguerrido e produzia energia política intensa. Esse grupo transmitia uma linguagem para o restante da sociedade brasileira que estava insatisfeito com o governo, posicionando-se à direita, num processo extremo, mas fortemente subjetivo e falsificador da narrativa histórica. Basta lembrar que o significante central desse grupo era a ideia de uma revolução comunista iminente. Isto é uma mentira histórica que, agora, tanto faz se contra Fernando Haddad (PT) ou Ciro Gomes (PDT), vão tentar aplicar de novo essa máquina de mentiras para eleger um candidato extremamente problemático, autoritário, antidemocrático e ignorante. O Brasil corre um risco muito grande de, ao invés de se governar pela razão, se governar pelo delírio, que ninguém sabe aonde pode dar. Então é assim: tem um limite esse ato de pautar a totalidade política pela direita. Se não tiver um limite, o limite será a catástrofe. Como sempre foi. Onde a extrema-direita toma o poder, a democracia corre risco. E desde já eles estão demonstrando que não têm apreço pela democracia.

OP – De que forma esse grupo mais conservador e radical foi se constituindo e se fortalecendo?

Ab’Sáber – Num primeiro momento, isso interessou estrategicamente para a retirada da esquerda do poder. Foi uma resposta essencialmente política. Ao mesmo tempo, isso liberou essas forças psico-políticas, ou seja, uma política do desejo e da paixão que tem vida própria. Ela não parou mais de cobrar o seu butim da vitória política da direita sobre a esquerda. Outro dia nós vimos a entrevista do Tasso Jereissati tentando explicar a dissolvência da relevância política do PSDB e precisando dizer: ‘Nós não deveríamos ter entrado nesse processo’. Porque esse processo liberou inclusive a direita do próprio PSDB. O PSDB ficou sem a gestão da direita que ele fazia. A direita passou a andar sozinha, e o PSDB perdeu legitimidade popular. É claro que existe uma pauta real: a segurança. Mas a resposta a ela é construída de modo bastante artificial e beligerante. Que se ligue o problema da segurança a um hipotético ataque comunista e a uma esquerda inexistente, isso é a forma de operar da extrema-direita. O problema passa a ser de violência política e não de racionalidade pública.

OP – Essa análise está no seu livro mais recente, “Michel Temer e o fascismo do homem comum”. Como essa obra se conecta com o momento presente?

Ab’Sáber – Esse livro sobre o Temer estuda como o processo do impeachment foi ultrapassado pelas forças de direita que ele mobilizou para poder acontecer. E como os agentes políticos tradicionais foram dissolvidos nesse processo. Aécio (Neves, candidato a deputado federal pelo PSDB), Cunha (Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, preso em Curitiba), o próprio Temer. É um fim melancólico de governo. Caso não haja proteção intensa, ele será processado pelas práticas corruptas. Esse processo que dissolveu a política foi totalmente a favor desse espírito apaixonado, simplificado e antidemocrático da extrema-direita. Mas o grande risco é que isso tudo está na iminência de não poder mais ser gerido pela estrutura institucional da democracia que temos hoje. Veja a gravidade do processo político no qual o Brasil entrou. Esta eleição é muito importante. Nós estamos numa encruzilhada entre civilidade e barbárie. Volto a dizer: o risco de nós termos um governo autoritário, que vai tentar produzir soluções de controle da democracia à medida que as crises surgirem, é muito grande.

OP – O que o senhor define como “fascismo comum”?

Ab’Sáber – O fascismo comum é a política de ódio banal que foi encantada com esses mitos a respeito do inimigo – porque o fascismo é sempre a projeção de um inimigo total, que é o inimigo da civilização – e o fato de que isso não veio estruturado de um partido, de uma única liderança. Isso veio da vida baixa brasileira, do baixo autoritarismo. Veio das ruas. Uma das sortes do campo democrático é que o Bolsonaro (candidato à Presidência pelo PSL) é um líder extremamente fraco. O Bolsonaro não é comparável com Hitler. O Hitler, embora fosse grosseiro, tinha uma vida simbólica e um esboço de projeto intelectual que ele sustentava. Havia uma distorção da realidade dos conceitos que fazia as vezes de cultura. O Bolsonaro é anticultura radicalmente. É extremamente ignorante. Nesse sentido, é um homem comum que está gerando esse fascismo. Diferentemente do passado – em que era o partido, o líder, o pai, como dizia o Freud -, agora são as hordas em busca de uma estruturação autoritária. Esse autoritarismo está vindo de baixo, está vindo do grupo. É esse o dilema, esse niilismo sádico. É uma estupidez cultural e política comum. Comum no sentido de banal, cotidiana, familiar.

OP – O que explica o relativo sucesso de uma plataforma como a do Bolsonaro (PSL)? Sempre se acreditou que o Brasil, apesar de ser constitucionalmente violento, primou pelo caminho da acomodação e da conciliação.

Ab’Sáber – São muitos elementos, não é um processo simples. Um deles é a criminalização e a produção de ódio na ação política, que é também a liberação de uma irracionalidade nesse mesmo campo. Foi estratégico que se produzisse uma irracionalidade na política. Outra coisa é que o governo pós-impeachment de Temer apontou a ideia de que a crise social, que a própria política recessiva do governo alimenta, deve ser gerida com uma militarização da vida social. Isso é um projeto de um setor da direita ligado ao segmento dos militares: de que a crise é solucionada com a entrada dos militares na vida pública. O terceiro ponto é isso que você falou: o Brasil sempre foi profundamente violento. Na última década, foram cerca de 60 mil assassinatos por ano. E o pior: no momento, não existe uma resposta civilizatória. Ela está liquidada por uma crise muito grave produzida por essas próprias forças. Qual é a resposta civilizatória? Desenvolvimento, emprego e educação. Existe uma hipótese muito radical, que é: o Estado não deve pagar mais nada pelo desenvolvimento do País. É uma hipótese de caráter neoliberal radical para o qual o Estado tem que se livrar de todos os compromissos e abrir mão de qualquer preocupação social. Em qualquer lugar do mundo onde venceu, esse modelo foi acompanhado de violência de Estado. O Estado se militariza quando isso acontece. Foi assim no Chile, em 1973. A ditadura chilena era altamente liberal na economia e profundamente autoritária na vida civil. A mesma coisa com o governo Margaret Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990). Um governo policialesco e belicoso. Porque, pra quebrar as estruturas de direitos, só se faz com polícia. Existia uma lógica nisso tudo: neoliberalismo para o alto, para o capital, e violência social para baixo. É uma lógica histórica que já foi testada em outros lugares. É exatamente com isso que uma parte da elite brasileira está jogando neste momento. Não há dúvida de que é uma crise civilizatória que está em jogo no Brasil.

OP – Qual é o papel do ódio como mobilizador na política brasileira hoje?

Ab’Sáber – É fundamental. O ódio é uma força, uma energia, mas é essencialmente delirante. As pessoas que foram movidas por ódio no processo do impeachment, e que estão movidas até agora, inventaram um sistema delirante perfeito porque é fechado, não é complexo. Elas acreditavam que o governo anterior era antidemocrático, revolucionário e comunista. Isso é completamente falso. O governo era plenamente capitalista, e investia suas fichas no desenvolvimento de uma sociedade de consumo. Era também democrático. O governo anterior nunca forçou, com todo poder eleitoral do Lula, uma terceira eleição. Não alterou nada da estrutura institucional da política do País. E isso é o ódio político: um governo democrático é pintado como uma catástrofe institucional. O ódio não é apenas a energia para a violência. É também uma máquina de extermínio simbólico. Isso foi ligado para produzir política no Brasil. E liquidou o PSDB. O PSDB não tem como competir com uma política de paixão e de ódio. Não tem como. É isso que o Tasso vem tardiamente dizer (na entrevista que concedeu ao jornal Estadão).

OP – Isso explicaria as dificuldades do candidato tucano Geraldo Alckmin na disputa pela Presidência?

Ab’Sáber – Sim. Explica a dificuldade do Alckmin e de todo o tucanato. O Alckmin é racional, por um lado, quando se liga às coisas contemporâneas, ao mercado, às gestões de parâmetros da economia. E, por outro lado, há esse moralismo frio, um moralismo cotidiano que também tem o seu elemento violento – a polícia de São Paulo é extremamente violenta -, mas os homens do tucanato não têm a coragem de enunciar essa violência. É uma violência velada. Então, essa é outra direita, que foi ultrapassada por uma direita apaixonada, passional, enlouquecida e inconfiável. Ninguém sabe o que eles podem fazer movidos a delírio. É uma coisa muito séria quando o delírio vai se tornando a racionalidade de um País. Onde isso acontece, os resultados são muito graves. Aconteceu na Alemanha nazista. E isso será discutido finalmente no Brasil depois de ter passado ao largo do processo político dos últimos anos e agora ser liberado.

OP – Esse ódio estava recalcado?

Ab’Sáber – Exato. Os 30 anos de democracia no País não olharam para a nossa tradição autoritária e não fizeram nenhuma elaboração simbólica profunda desse elemento. Nem houve punição do autoritarismo da ditadura militar. O Bolsonaro é exatamente o herdeiro de um autoritarismo extremado da ditadura. Nas seis eleições do Bolsonaro para deputado, na verdade não se tratava de apresentar projetos – que ele de fato não apresentou. O Bolsonaro estava ali para barrar qualquer tipo de avaliação crítica, pública e estatal, da violência praticada pela ditadura. Por sua vez, essa violência da ditadura está apoiada numa tradição muito mais profunda que remonta às origens escravocratas do País e ao seu desprezo pela vida popular como algo legítimo. E isso aparece como racismo, como preconceito etc. O candidato a vice de Bolsonaro (o general da reserva Hamilton Mourão) despreza fortemente, e de modo preconceituoso, o povo brasileiro. Ele não tem nenhum pudor de afirmar isso. Esse traço é muito arcaico do Brasil. Os 30 anos de democracia não foram suficientes para trabalhar esse traço. Esta eleição é uma oportunidade de a gente fazer isso.

OP – Qual o risco de fazer isso no meio de um processo eleitoral tão dividido?

Ab’Sáber – É um risco grande, mas talvez também artificial. Como eu disse, essa máquina alucinatória da política do ódio e esse fascismo comum brasileiro são muito artificiais e não correspondem às ações democráticas do outro campo. Não encontram equivalência. O que nós vamos ter agora é esse outro campo, representado por seja lá quem for, Haddad ou Ciro, tendo que trabalhar com as elites do País para voltar a uma mesa de negociação racional. Como o Brasil já vinha antes do processo de impeachment. Apesar da crise, existia um pacto de racionalidade. O problema é que esse pacto foi implodido ali para dar acesso a um grupo ao poder. E agora se aprendeu a usar essa irracionalidade para produzir poder. São dois modos diferentes de fazer política que estarão em jogo neste momento, só que estarão explicitados. O Brasil vai ter que decidir conscientemente nesta eleição: nós queremos a irracionalidade, a loucura, a violência e um cara autoritário e ignorante gerindo o País? Ou nós queremos voltar para um pacto de civilidade na política e para o fato de que a política é a gestão delicada e trabalhosa de múltiplos interesses? São dois princípios éticos, políticos e ontológicos muito diferentes. Um a gente pode chamar de o campo do fascismo e o outro, de campo da democracia.

OP – Há chance real de esse campo do fascismo vencer a eleição?

Ab’Sáber – Existe uma chance do fascismo: ele ser apoiado por uma parte significativa e irresponsável da elite econômica brasileira. Porque a voz do fascismo é delirante e odiosa, mas é muito mentirosa. Eles acabaram de ser ridicularizados tentando ensinar à Alemanha que o nazismo é de esquerda. E o cônsul da Alemanha no Brasil precisou dizer que não, o nazismo é de extrema-direita. Ou seja, eles não hesitam em mentir, não hesitam em chocar. Eles funcionam assim. Agora, isso não se sustenta sozinho. Isso só se sustenta se grandes poderes sustentarem. A chance sempre foi que o fascismo seja uma resposta de interesse ao capitalismo. Onde o fascismo venceu, foi assim. Era uma resposta de interesse a outros interesses. É o que eu chamo de pacto do fascismo com o neoliberalismo, quando o próprio capitalismo se torna fascista e não mais liberal, mas autoritário. Isso aconteceu muitas vezes na história. Nesse sentido, o destino desta eleição vai estar sendo decidido em três ou quatro bancos e associações de empresários. Eles vão cacifar o fascista até o fim? Se eles de fato decidirem isso, existe a possibilidade de essa energia política bárbara chegar ao poder do Estado.

OP – Como o senhor projeta o pós-eleição? Como o País vai acordar depois disso?

Ab’Sáber – Essa violência que clivou o pacto democrático e colocou a institucionalidade em jogo lá atrás vai continuar aí. O Bolsonaro, na sua irresponsabilidade política total, já está dizendo que, se ele perder, foi fraude. Olha o grau de barbárie disso. É uma chantagem com o País, só não será fraude se ele ganhar. A eleição nem aconteceu ainda. De todo modo, ele chegou a 20% ou 25% de um movimento que não é sólido, é muito instável e passional. Ganhando ou não ganhando, esse grupo deve ter presença no Congresso. Existe um quadro geral de inclinação à direita no País. Ao mesmo tempo, se perdem a eleição, é um gesto de força do outro campo social, do campo democrático. Que, se for derrotado, também vai se organizar e tentar controlar democraticamente o governo fascista. Como tem que ser. Como é nos Estados Unidos hoje com Trump.

OP – De uma forma ou de outra, há uma fratura aí.

Ab’Sáber – Sim, o Brasil não encontra uma medida comum. É típico do País. Nós precisamos lembrar que a origem do Brasil está nos senhores que acumulavam renda e numa massa de escravos. A nossa fratura é uma fratura original entre o dinheiro, que não quer produzir direitos sociais, e uma massa do outro lado tentando construir o seu lugar numa democracia. Portanto, essa fratura vem de longe e está reencenada agora. Infelizmente, em vez de a democracia nos levar para o futuro, pra integração rica e produtiva, ela nos leva de volta ao passado.

Lula

Governo Lula Em Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (Hedra), o psicanalista e ensaísta Tales Ab’Sáber analisa as condições políticas e o pacto social que se estabeleceu nos oito anos de governo do petista, hoje preso em Curitiba condenado por corrupção e lavagem de dinheiro na Operação Lava Jato.

Dilma

Os anos de crise Dilma Rousseff e o ódio político (Hedra), escrito por Ab’Sáber nos momentos que se seguiram à deposição da ex-presidente, em 2016, reflete sobre as origens da crise política que levou ao processo de impeachment da petista na esteira da Lava Jato.

Temer

À sombra do presidente Michel Temer e o fascismo comum (Hedra) fecha a trilogia presidencial de Ab’Sáber. Dedicado ao presidente emedebista, a obra investiga a trajetória do político cujas ações se desenvolvem nos bastidores da vida social brasileira.

A roda que não rodou e o polo que desandou

A roda que não rodou & o polo que desandou

(bastidores do processo eleitoral)

Por Cláudio Guedes

No início do ano, um movimento articulado por intelectuais e políticos muito próximos ao PSDB e ao PPS, intuindo o provável fracasso dos tucanos no processo eleitoral, buscou a constituição de um polo centrista (sic) reformista e democrático. Fizeram articulações, lançaram documentos e alguns atos que juntaram FHC, Roberto Freire, Paulo Hartung, Rose de Freitas e outros. Entre os intelectuais ligados ao movimento estão Marco Aurélio Nogueira, Alberto Aggio e Hubert Álqueres.

O objetivo era, mais uma vez, com a desculpa de evitar soluções extremadas para o país, enfiar goela abaixo de incautos e ingênuos a candidatura do ex-governador Geraldo Alckmin, o tucano da vez, agora em novo figurino, não mais de social-democrata mas de centrista equilibrado.

Os intelectuais em torno do movimento são os mesmos que nas eleições passadas, nas quatro últimas, se moveram e lançaram manifestos de apoio ao tucano escalado para a disputa. Em 2014, foi um manifesto patético de apoio ao corrupto e moleque Aécio Neves, então presidenciável do PSDB.

Este ano, remaram, remaram, e acabaram na praia desolada onde jaz a quase carcaça de um suntuoso veleiro, com o casco perfurado, onde hipocrisia, empulhação e oportunismo tremulam como bandeiras amareladas nos mastros apodrecidos.

Ontem, 22/09, no Estadão, uma das lideranças intelectuais do movimento, o professor titular de ciência política da UNESP/SP, Marco Aurélio Nogueira, escreve um necrológico da política nacional e brada: incompetência geral!

Sim, sobrou para todo mundo. O fracasso do polo/roda democrática, e da sua estratégia malsucedida para hegemonizar o processo eleitoral, virou incompetência geral.

Algumas verdades, muitas inverdades e muita imaginação, uma sopa farta de palavras, para não enfrentar as questões realmente crucias da atual conjuntura política.

Para o PT sobraram as palavras de ordem de sempre, com pelo menos uma inovação: o ressurgimento do partido seria obra do “imperialismo religioso do lulismo” que se junta à velha catilinária da “mitificação popular de Lula”.

Hehehe!

Já vi de tudo contra o PT – partido do qual não faço parte, nem nunca fiz – mas essa de “imperialismo religioso” é novidade. Bom, ganha uma viagem à Bahia, com passagens pagas e direito a uma casquinha de sorvete de coco na Ribeira, quem me explicar o que significa.
Quanto à “mitificação popular de Lula”, não seria mais fácil e honesto simplesmente reconhecer que Lula possui uma identificação enorme junto à população mais pobre e às regiões mais carentes do país por causa dos programas de inclusão social concebidos e efetivados nos seus governos? Qual a dificuldade de um mestre em ciência política reconhecer este fato objetivo da realidade?

Na crítica dura ao PT, diz Marco Aurélio que o partido se perdeu “inebriado pelo desejo de vingança” e “pela pretensão de comandar com mão-de-ferro o campo progressista”? Essa coisa de desejo de vingança parece mais eco de novela mexicana, o que talvez esteja no radar das tardes solitárias do professor. E onde viu Marco Aurélio a pretensão do PT em comandar o campo progressista? Não vi, de real, nada que denunciasse tal desejo, muito pelo contrário. O PT, de forma apropriada, apenas usou o seu direito democrático de indicar um candidato próprio às eleições presidenciais. Direito respaldado no fato provado de que é o partido de preferência de 25% do eleitorado brasileiro, sendo de longe o maior partido nacional em termos de filiados ativos e um dos maiores – é a maior bancada na Câmara dos Deputados – em número de parlamentares. Não imagino porque este conjunto de fatos, tão objetivo, possa passar despercebido de um professor de ciência política. Então um partido com tal envergadura não possui o direito de disputar as eleições com representante próprio? Por que não?

Mais adiante, ao tratar a questão Bolsonaro, lemos a seguinte afirmação “candidatura pouco qualificada e alinhada com a autocracia regressiva”. Que beleza. Então o ex-capitão, um misógino, truculento, autoritário, defensor da tortura e de torturadores é generosamente tratado como uma “candidatura pouco qualificada”? Sei. Que padrão.

Aliás padrão que se repete ao comparar Bolsonaro com Haddad: para o mestre, “não são equivalentes”, um é autoritário o outro não é, mas ambos “estão atados por um mesmo tipo de cegueira e fanatismo”. Haddad cego e fanático? O professor pode odiar o PT, Lula e petistas, mas deveria ser um pouco mais rigoroso ao avaliar um colega, um professor, um doutor pela USP, qualificado, que foi um dos grandes ministros da educação do país e um bom prefeito de São Paulo. Onde, nos altos cargos públicos que ocupou, durante onze (11) anos – sete (7) como ministro da educação e quatro (4) dirigindo a maior cidade do país, uma das maiores do mundo -, Haddad demonstrou fanatismo e cegueira? O professor não cita um único exemplo. Fica na acusação leviana. Qual a aderência à realidade da avaliação de Marco Aurélio sobre Fernando Haddad? Nenhuma.

O professor afirma ainda, em bom som – como gostam os donos do jornal para o qual escreve – que Haddad não critica os “esquemas de corrupção associados ao modo lulista de governar”. Afirmação vulgar. Os esquemas de financiamento de partidos e eleições, que vigoraram no período petista, eram os mesmos que levaram o PSDB ao governo central alguns anos antes e que mantiveram a longa hegemonia, de mais de 20 anos, dos tucanos no Estado de São Paulo – recursos repassados por empreiteiros e fornecedores do estado. Os mesmos que financiaram as campanhas de todos os grandes partidos que, nos últimos 30 anos pelo menos, disputaram o poder no país. O “modo” lulista de governar, como hoje é reconhecido até por adversários duros do PT, reforçou e deu liberdade à atuação dos orgãos de fiscalização do Estado, além de autonomia à Policia Federal e ao Ministério Público para investigarem denúncias de corrupção de agentes públicos.

Para Marco Aurélio chegamos ao esgotamento de uma época democrática. Todos são culpados por esta situação. As vítimas e os algozes. Nenhuma palavra sobre a liberdade política e os avanços enormes nos costumes e na defesa das minorias conquistadas nos governos petistas. Nada. Nenhuma palavra sobre a violência do impeachment farsesco de uma presidente da República eleita pelo voto popular. Nenhuma palavra sobre o processo judicial contra o ex-presidente Lula, marcado por controvérsias, ações do juízo e do MP em flagrante desrespeito ao CPP & às leis e com tramitação com prazos singulares e destoantes, a indicar um tratamento “especial” ao então réu. Nada.

Todos são culpados. Os perseguidos, os linchados pela mídia conservadora, os que sofrem o peso draconiano de uma justiça parcial e politizada e os que se beneficiaram dessa situação. Todos igualmente culpados.

Por fim, como não poderia ser, vaticina o emérito professor, na sua peroração: “a sociedade abandonou os políticos à própria sorte e os políticos, sem apoio social e sem partidos dignos do nome, perderam as referências”. Talvez o professor é que tenha abandonado a ciência e tenha virado as costas para o mundo real. O líder petista preso, enjaulado, em decorrência de um processo onde farsa e parcialidade se juntaram, não parece ter sido abandonado pela sociedade. Esta demonstrou, em inúmeras pesquisas, que o elegeria para comandar o país no próximo quadriênio se solto estivesse. E o Partido dos Trabalhadores (PT), hoje com mais de 2 milhões de filiados e com a preferência explícita de 1/4 do eleitorado brasileiro, não é um partido digno de nome? O que é um partido digno de nome para o ilustre docente?

Marco Aurélio Nogueira, do alto de sua cátedra de ciência política, não se permite enxergar essa realidade. E o cego é Fernando Haddad.

O BRASIL NUNCA FOI UM PAÍS COMUNISTA

Nem nenhum país, hoje ou ontem. Compartilho texto muito oportuno de Ulysses Ferraz. Didático. Infelizmente, estamos falando para “hipnotizados”, neste hospício ideológico em que se transformou o Brasil. Admiro a paciência e a esperança do Ulysses. Confesso que ao ler ou ouvir os hipnotizados e seus “discursos” desconexos, bate um desânimo! Algumas vezes tento argumentar alinhando teorias e fatos, para além do senso comum pasteurizado, hipnotizador. Outras vezes desisto na primeira réplica, pois percebo que o interlocutor não está ouvindo honestamente e, mesmo antes de eu concluir meus argumentos tem, já engatilhado, um conjunto de frases feitas, prêt-à-porter, disseminadas pelos hipnotizadores. Querem um exemplo, notório, gritante ? Assistam com atenção a entrevista de Fernando Haddad, candidato a presidente da República na chapa liderada pelo PT, no Jornal Nacional. Bonner e Renata, que cumprem diariamente, obedientes ao patrão, o papel de hipnotizadores, parecem, eles próprios, cegos pelo hipnotismo que eles mesmos diariamente fomentam. Eles, Bonner e Renata, Leitão e Sardenberg, Lôbo e Camaroti, Leilane e Valdo repetem, dia e noite, sem raciocinar,  os mantras encomendados pelos donos das máquinas de produzir hipnotizados, os irmãos Marinho, donos das “Organizações” (quase escrevi em italiano).   Repetem tanto, tantas vezes, que eles, encarregados pelo patrão de hipnotizar seu grande público, acabam hipnotizados. Os profissionais que não se deixassem hipnotizar e que se recusassem a acreditar que a terra é plana ou que tentassem mostrar que não existem países comunistas, seriam expulsos do templo, das “Organizações”.   Como a máquina da grande mídia – “as Organizações” – vem sendo aperfeiçoada desde sua criação, selecionando já no berço jornalistas obedientes, hipnotizados já nos bancos escolares, desde o maternalzinho, a possibilidade de aparecer e sobreviver no meio um jornalista que pense em desacordo com o Código de Honra das “Organizações” é mínima. Leia o texto do Ulysses e reflita honestamente. E lembre, nem a China, nem a Coreia do Norte são comunistas, no sentido econômico, histórico ou filosófico do termo. Mas aí já é “a totally different ball game”. Fica para outro texto. Paulo Martinsdialogosessenciais.com

O BRASIL NUNCA FOI UM PAÍS COMUNISTA, por Ulysses Ferraz

É urgente explicar para a população de um modo geral, inclusive aos segmentos mais escolarizados, o que significa o termo comunismo. Um conceito quando é usado de forma imprecisa e incorreta, generalizadamente, torna-se vazio de conteúdo. Só contribui para a propagação de ruídos e mal entendidos. E fomenta a violência. Até o cardeal dom Odilo Pedro Scherer foi agredido em 2016 por uma senhora que o acusou de “comunista”.

Essa onda de ódio, turbinada pela ignorância fundamentalista de certos grupos, sob a conivência dos principais meios de comunicação, vai acabar resultando em tragédias sob o pretexto de combate ao “comunismo”. Será preciso que haja mortes? Assassinatos? O Brasil nunca foi um país comunista. Tampouco socialista. É um Estado democrático de direito, com uma economia de mercado em crescimento moderado. Pelo menos éramos até 2015. Temos eleições livres e diretas regulares para os poderes Executivo e Legislativo. Pelo menos tínhamos até 2014. E se vivemos hoje em recessão, num Estado de exceção, isso não se deve a ”comunismos” mas a fascismos disfarçados de liberalismos.

O fato é que não há e nunca houve comunismo no Brasil. Nem idealizado nem real. Se houvesse, a maior parte dos meios de produção seriam de propriedade coletiva ou do Estado. Mas no Brasil, o setor privado corresponde a mais de 90% da atividade econômica do país. O “tamanho” do Estado é relativamente pequeno em proporção às maiores economias do mundo e às economias de países em desenvolvimento. A carga tributária em relação ao PIB está na média do Brics e dos países da OCDE. O grau de regulação dos mercados no Brasil é compatível com todas as democracia desenvolvidas do mundo, para que o capital não se concentre excessivamente, e não haja formação de monopólios e oligopólios. E as concentrações excessivas que existem em alguns setores, a despeito das regulamentações legais, são mais ou menos semelhantes às que ocorrem no resto do mundo capitalista. O Google e o Facebook são exemplos óbvios de que transgressões às leis concorrenciais não são exclusividade das organizações Globo. No Brasil também não há restrições draconianas para investimentos estrangeiros e a remessa de lucros para o exterior, além de permitida, não é sequer tributada. E a propriedade privada é garantida pela Constituição Federal com estatuto de direito fundamental. Um governo que implementa um mínimo de políticas públicas voltadas para inclusão social, redução da pobreza e melhor distribuição de renda e riqueza não é comunista ou socialista. Todos os países capitalistas desenvolvidos, as chamadas economias do Norte, possuem, em algum grau, maior ou menor, algum tipo de rede de proteção social. E algum mecanismo de redistribuição de renda. No Brasil, sequer atingimos o patamar de Estado de bem-estar social, como o atingido na maioria dos países ricos da Europa, apesar dos esforços desses 12 anos dos governos Lula e Dilma. A construção de uma sociedade mais justa e igualitária, sob princípios democráticos, em um Estado de direito consolidado, ainda é um objetivo quase utópico no Brasil. E cada vez que nos aproximamos deste ideal, as forças conservadoras entram em ação para desconstruir as conquistas democráticas e sociais do país, sob o pretexto de uma ameaça ”comunista”, como se vivêssemos anacronicamente nos tempos da Guerra Fria. Essas mesmas forças conservadoras que, quando lhes convêm, não respeitam os direitos humanos mais básicos, alimentam o ódio e a ignorância das massas, inclusive da classe média hipnotizada ideologicamente, e fazem crer, assim como o fizeram em 1964, que vivíamos entre 2003 e 2015 numa ditadura comunista de tipo stalinista. Até quando vamos permitir e tolerar que manipulem nossas cérebros e insultem a inteligência coletiva da nação? Basta de MBL e afins!

Um país que não tem dignidade não sente indignação, por Aldo Fornazieri

Diálogos Essenciais

Compartilho texto duro e realista de Aldo Fornazieri sobre o Brasil e sobre os brasileiros. Já escrevi diversos textos sobre os temas abordados no artigo do Aldo, mas meus textos não chegam aos pés deste texto santamente indignado.

Não compartilho este texto com alegria, muito ao contrário. Preferiria não ter que encarar tão de frente esta realidade que nos cerca. Mas não temos opção: ou encaramos ou desistimos.

Quem escreve ou compartilha tenta, pelo menos, romper com a omissão e a apatia.

Apatia essa, marca nacional, muitas vezes premeditada por conveniência, neste Brasil que se encontra na UTI por metástase do golpe, que os seus autores fingem não admitir.

Mas quem escreve ou compartilha ainda tem esperança, tirada não sei de onde.

Vou deixar este artigo como texto fixo na página inicial deste blog para que todos possam ler, reler e refletir.

Paulo Martins

Publicado em viomundo.

Fornazieri: Brasil não…

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Liberalismo econômico de Bolsonaro faz lembrar Chile de Pinochet, por Laura Carvalho

Diálogos Essenciais

Liberalismo econômico de Bolsonaro faz lembrar Chile de Pinochet

Publicado em Folha de São Paulo

Quando indagado por um ouvinte do programa da jornalista Mariana Godoy na RedeTV! sobre o que pensa do tripé macroeconômico —composto por câmbio flutuante, metas de inflação e superavit primário—, Jair Bolsonaro não quis arriscar: “Quem falará de economia por mim é a minha equipe econômica no futuro”.

Em meio à forte repercussão nas redes sociais do trecho da entrevista, que deixou clara a insegurança de Bolsonaro na área econômica, um blog do jornal “O Estado de S. Paulo” informou na segunda (6) que o presidenciável estaria tendo aulas de economia com o pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Adolfo Sachsida.

Embora tenha negado a informação de que foi contratado para a árdua tarefa, Sachsida confirmou que mantém conversas regulares com Bolsonaro, que, segundo ele, seria um admirador de Ronald Reagan e Margaret…

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Tristes trópicos

Este post publicado em meu blog dialogosessenciais.com há um ano, continua atual. Não tiro uma linha, não acrescento uma palavra.

Diálogos Essenciais

1 – Temer não vai cair nem renunciar. Se renunciar, perde o foro privilegiado e a proteção de uma Câmara de Deputados com maioria corrupta, que está no mesmo barco.

2 – Temer não vai renunciar para concorrer a um mandato de deputado federal que lhe garanta foro privilegiado. Correria um risco muito grande.

3 – Temer vai tentar negociar a nomeação  para algum ministério no novo governo eleito em 2018 para manter o foro privilegiado. Como sempre fez.

4 – No segundo turno, se houver, a direita montará um acordão, com PSDB, com PMDB, com Lava Jato, com Supremo, com tudo.

5 – A aparente oposição de parte da grande mídia venal a Temer é tática, de curto prazo e tem fôlego curto. É um simples jogo de mercado.

6 – Parcela relevante da grande mídia venal continuará apoiando Temer até ele entregar tudo que prometeu: a reforma da…

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“A universidade pública nos deu 5 Nobel, a privada nos deu Macri”

A Argentina enfrenta uma situação e econômica e financeira caótica, aprofundada pelas políticas recessivas e equivocadas do presidente Macri.

Mas a verdade indisputável é que Macri foi eleito para fazer exatamente a destruição que está fazendo. Ele não escondeu de ninguém qual seria o caminho que seguiria. Os eleitores da Argentina, guiados por uma mídia manipuladora e venal, escolheram por maioria, sua própria desgraça. Isto prova que um povo pode escolher, por sua própria vontade, afundar o próprio país.

Macri, face a situação de desespero e miséria  que sua fracassada política econômica levou o povo argentino e as finanças públicas, pediu socorro ao Fundo Monetário Internacional. Em outras palavras, a Argentina abriu mão de, soberanamente, resolver seus próprios problemas e entregou a gestão do país ao FMI.

Fala-se pouco no Brasil do fracasso da receita neoliberal adotada pela Argentina. A mídia de negócios do Brasil, manipuladora e venal a exemplo da mídia argentina, finge não ver. Passa superficialmente pelo assunto. Teme que a divulgação do fracasso do receituário neoliberal na Argentina atrapalhe seus candidatos de direita e de extrema direita nas eleições no Brasil. As experiências positivas recentes de outros países europeus que saíram da crise e estão reconstruindo suas economias não são divulgadas por aqui. Esses países adotaram políticas contrárias à crença neoliberal e às recomendações ortodoxas do FMI. Portugal é o exemplo mais próximo de nós. Brasileiros de classe média que aqui no Brasil apoiam o receituário neoliberal e rotulam qualquer política social-democrática de “comunismo”, estão emigrando e fixando residência no tal paraíso “comunista”. Haja incoerência! Fingem não perceber.

Vou parar por aqui. Às vezes uma frase vale por mil palavras. Como a frase dos estudantes universitários argentinos, a seguir:

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David Harvey: o capitalismo da servidão por dívida

David Harvey: o capitalismo da servidão por dívida

Publicado no Blog da Boitempo

“Uma das formas de exercer controle social é afundar as pessoas em dívidas a tal ponto que elas não possam sequer imaginar um futuro que não seja viver para poder pagar sua dívida. Esse é um dos maiores limites ao radicalismo, por exemplo, da geração dos ‘millennials’.”

Publicado em 29/08/2018

Entrevista especial com David Harvey. Para a Boitempo

David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade. Geógrafo de formação, ele desenvolveu uma leitura bastante original da obra de Marx informada por uma sensibilidade às dinâmicas de urbanização que acompanham a história do capitalismo e suas crises. Seu mais novo livro, A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI, é um esforço culminante desse projeto intelectual e político. Nele, Harvey se propõe a atualizar o pensamento de Karl Marx à luz das novas transformações da globalização capitalista contemporânea. Disparando contra a “loucura da razão econômica”, ele revela a total impotência da dita “ciência econômica” imperante para lidar com os problemas postos pela crise atual do capitalismo. Trata-se de uma obra de amplo alcance temático – abordando fenômenos diversos como bitcoin, inteligência artificial, a ascensão do fascismo, os megaprojetos chineses e a crise da Zona Euro – que procura fornecer um instrumental teórico à altura das complexidades e armadilhas da lógica do capital para que os diversos movimentos e organizações sociais possam calibrar melhor suas estratégias políticas diante do inimigo comum.

Um dos temas centrais abordados pelo livro novo é a economia do endividamento generalizado e o surgimento de uma situação marcada por um regime de servidão por dívida cada vez mais com traços feudais. É sobre esse tema que David Harvey falou a Jeremy Scahill em entrevista para o The Intercept. A tradução é de Deborah Leão para o The Intercept Brasil.

Boa leitura!


Ao longo do último ano, experimentamos todos uma sensação de vertigem política. Parte disso, claro, decorre do fato de o atual presidente dos Estados Unidos ser Donald Trump — e de ele estar constantemente encadeando um absurdo no outro, normalmente quando a gente mal começa a debater sobre o primeiro.

Estamos correndo o tempo todo, e fica difícil tomar pé de onde estamos e onde estivemos. Poder parar e olhar para as coisas de uma perspectiva mais ampla se torna um luxo quase inacessível. Isso terá sérias consequências. Estamos sofrendo alterações em nossos cérebros, na forma como processamos as notícias e as informações, nos nossos conceitos de resistência e tirania. Já vivemos em uma sociedade que não estuda sua própria história — a história nua e crua –, e muitas vezes os acontecimentos em curso são analisados num vácuo que raramente inclui o contexto histórico necessário para compreender o que é novidade, o que é antigo e como chegamos até aqui.

Nós nos alienamos da nossa realidade e do nosso trabalho.

No momento em que Trump comemora seu primeiro ano de mandato em meio a manifestações contrárias a seu governo em várias partes dos EUA, o acadêmico marxista David Harvey aceitou o convite para uma entrevista para o podcast Intercepted, de The Intercept. Harvey é um dos principais pensadores marxistas da atualidade, uma autoridade na principal obra de Marx, O capital, que completou 150 anos no fim de 2017. Ele é professor benemérito de Antropologia e Geografia na City University de Nova York e um pioneiro da geografia moderna. Acaba de lançar o livro A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI.

Abaixo, o áudio completo em inglês e uma versão traduzida e editada da conversa.


Jeremy Scahill: Professor, bem-vindo ao Intercept.

David Harvey: Obrigado.

JS: Para começar, fiquei curioso depois de ler seu livro: como chegamos a Trump? Quais fatores levaram à ascensão de Trump à Casa Branca?

DH: Eu resumiria em uma palavra: alienação. Uma população cada vez mais alienada. Alienada do processo de trabalho, porque não há muitos trabalhos com propósito e significado por aí. Prometeram a esses trabalhadores uma espécie de cornucópia do consumo, um espaço no qual encontram muitos produtos, mas que não funcionam bem, e acabam tendo que comprar um telefone novo a cada dois anos. Um estilo de vida é imposto e, sabe, essas pessoas estão desiludidas. E claro que também estão desiludidas com o processo político; eles percebem que quem tem o dinheiro compra o que quiser.

Populações alienadas não necessariamente se comportam de uma forma que faça sentido para alguém como eu. Eles não se voltam para a esquerda, por exemplo. Dizem simplesmente: “Quero uma coisa que pareça diferente”. E acho que quando Trump veio e disse “eu vou ser a voz de vocês”, foi aí que ele levou a melhor sobre Hillary Clinton. E acho que é a mesma coisa que você encontra na votação do Brexit na Grã-Bretanha, onde as áreas metropolitanas estão indo bem, mas você encontra populações alienadas nas cidadezinhas onde a base econômica da vida simplesmente desapareceu.

E aí você vê irromper um pessoal neofascista, populista e de direita que chega e diz: “Ouça o que eu digo, ouça o que eu digo, eu tenho uma resposta diferente para todas essas perguntas”. E acho que esse tipo de coisa está acontecendo não só nos Estados Unidos, mas em vários outros lugares.

JS: Baseado nos atos de Trump enquanto presidente e nas ideias que apresenta em seus discursos ou no Twitter, você considera que ele tem alguma ideologia?

DH: Acho que ele tem algumas ideias, estejam ou não reunidas em uma ideologia. Uma das suas ideias, por exemplo, é desmanchar tudo que Obama fez. Isso é quase instintivo para ele: fazer tudo na direção exatamente oposta. Então dá pra dizer que ele tem ideias.

Agora, uma ideologia? Não acho que ele tenha uma ideologia clara. Mas ele com certeza constrói um personagem: tudo gira em torno de mim, mim, mim. O narcisismo é óbvio, o que me parece um traço clássico de líderes populistas.

JS: É o que muitos observadores chamam de populismo à la Trump. Tem muitos mantras que ele repete, e seu favorito para falar de seu sucesso à frente da presidência é que a bolsa de valores continua batendo recordes, e os investimentos dos planos de previdência privada estão estourando. O que ele não diz é que a maior parte dos trabalhadores do país não tem aposentadoria e não participa dos planos de previdência. Como você explica que está acontecendo agora com Wall Street e o mercado de ações? A bolsa está mesmo batendo recordes.

DH: O que me parece é que, desde os problemas de 2007 e 2008, temos visto bancos centrais colocando mais dinheiro no mercado. Esse dinheiro precisa ir para algum lugar, e vai principalmente para o mercado de ações, e, claro, para o bolso do 1% mais rico. Então, se você olhar para os índices de desigualdade desde 2007-2008, vai ver que eles aumentaram vertiginosamente, não apenas nos EUA mas em todo o mundo.

De certa forma, o que acontece é que nos deparamos com dificuldades em 2007-2008, e a resposta foi injetar mais dinheiro, o que foi ótimo para o mercado de ações e o resto do mercado financeiro. Mas, como sabemos, a renda das pessoas comuns não melhorou em nada, a situação delas não melhorou. Os benefícios das pequenas recuperações desde 2007-2008 não atingiram ninguém além do 1%. É a solução dos investidores para o problema econômico. E os últimos benefícios tributários foram sob medida para os investidores.

O que acontece nos Estados Unidos é que os investidores estão criando uma economia boa para eles mesmos.

JS: Se alguém de outro universo chegasse aqui e perguntasse a você: “De onde vem o dinheiro que paga os salários dos trabalhadores, ou que existe no mercado de ações, ou que sai das mãos do ‘povo’ para empresas como a Amazon?”

DH: Bem, o dólar deveria valer o que pode comprar, que são os bens de consumo que a gente quer. E o que a gente quer são bens de consumo úteis. O problema disso é que o capitalismo é muito bom em fabricar bens de consumo que não funcionam, ou que estragam, ou que só duram dois anos. Eu costumo usar esse exemplo: ainda estou usando os garfos e as facas que foram da minha avó. Se o capital produzisse coisas que duram cem anos, o que aconteceria? Em vez disso, se produz computadores que não funcionam se tiverem mais de três ou quatro anos de uso.

Gostaríamos de pensar que o capitalismo é um sistema racional, mas não é. É irracional, ele insere essas irracionalidades porque é a única forma de continuar se reproduzindo. E acho que as pessoas estão começando a ver que essa não é exatamente a vida boa que elas achavam que teriam em algum momento, em especial para a massa da população que hoje está endividada e precisa pagar essa dívida, seja ela de cartão de crédito, de hipoteca, de crediário. É nesse mundo que estamos vivendo.

Vivemos no mundo da servidão por dívida, em que o futuro da maior parte da população está tomado pela maneira como estão atadas ao capitalismo. Sabe como é aquele papo para ter uma vida confortável: tome dinheiro emprestado e tudo ficará bem.

JS: E o papel da Amazon, do Google, do Facebook em nossas vidas? Isso é novidade na evolução ou na degeneração do capitalismo?

DH: Não acho que seja novo. Vamos considerar de uma perspectiva histórica: estamos vivendo isso desde os anos 1970, com o que chamamos de desindustrialização, a perda dos trabalhos industriais, do setor manufatureiro. O resultado foi que os sindicatos, que eram muito fortes… Tudo se perdeu.

Então, a desindustrialização do setor manufatureiro foi um fator importante. Agora estamos vendo a mesma coisa acontecer no varejo e no marketing. Vemos isso com o Wal-Mart, com a Amazon, com as compras online. E vamos ver acontecer no setor de varejo a mesma coisa que aconteceu no setor manufatureiro, e acho que isso vai ter um grande impacto sobre a economia norte-americana.

JS: Qual é a sua crítica ou o seu problema com a ideia de que a concorrência possibilita não só aos consumidores, mas também aos Estados, um produto de maior qualidade?

DH: Em primeiro lugar, gostaria de perguntar: que concorrência? Temos monopólios demais. Vejo isso na área de energia, na área farmacêutica, vejo isso em toda parte, um monte de monopólio em tudo quanto é lugar. Então, a concorrência é, na verdade, uma espécie de falsa concorrência.

E internacionalmente, claro, sempre há algum nível de concorrência entre diferentes Estados — mas veja o que ela faz. Basicamente, o que se espera é que você crie um bom ambiente de negócios. É isso que se espera do estado. E quanto melhor o ambiente de negócios, mais capital será atraído para ele. Isso significa menos tributos. Então, na verdade, você tem que dar dinheiro para as empresas. E é impressionante, o capital corporativo não parece capaz de sobreviver atualmente sem subsídios do setor público.

Assim, no fim das contas, esse setor público está permanentemente sustentando as grandes empresas, e elas não estão realmente concorrendo. Estão simplesmente usando o poder de seu monopólio para reunir uma grande quantidade de riqueza em poucas mãos.

JS: No que se refere à política eleitoral nos EUA, houve um debate bem feroz dentro da esquerda norte-americana sobre as eleições de 2016. E acho que uma porção significativa, mesmo da esquerda, no fim das contas, tapou o nariz e votou na Hillary Clinton como forma de votar contra Donald Trump. Onde você se coloca em relação a essas questões?

DH: Bem, acho que eu me coloco dizendo: “É, temos que organizar algo que seja muito diferente e alternativo à esquerda, em vez de ter o que eu chamo de partido de Wall Street à frente de ambas as legendas”.

O tipo de coisa que me preocupa em relação ao Trump é o que ele está fazendo com o meio ambiente, e o que ele pode fazer com a guerra nuclear. Ele é completamente irracional com esses assuntos. Então, sim, eu preferiria que fosse a Hillary, mas eu não quero estar numa situação em que eu precise dizer que a única alternativa a alguém como Trump é a Hillary, porque isso me parece um retorno aos mesmos problemas que tivemos no primeiro governo Clinton, que foi o começo do processo de venda do governo dos EUA para os investidores e para Wall Street. Então, temos que buscar algo que seja uma espécie de partido não-Wall Street.

E acho que a liderança na estrutura de poder dentro do Partido Democrata é, em certa medida, antagônica a um verdadeiro impulso socialista.

Precisamos de um bom movimento de esquerda real, sólido, nos moldes do que começamos a ver se cristalizar em torno de Bernie Sanders, algo assim. Mas penso que precisamos ir mais longe que isso.

JS: Bernie Sanders se identifica como socialista democrático, mas no seu registro de votos, podemos ver que ele apoiou a mudança do regime no Iraque, e ele disse que daria continuidade ao programa de assassinatos por drones que existia no governo Obama. Como você descreveria Bernie Sanders? Ele é marxista, na sua opinião?

DH: Não, não, ele não é marxista de jeito nenhum. Ele é, como você disse, uma espécia de social-democrata. Mas sociais-democratas têm um longo histórico de serem bastante bélicos, acreditarem em coisas como humanismo militar, esse tipo de coisa. A história da social-democracia é um pouco maculada por isso. Então, eu considero que é preciso haver um verdadeiro movimento socialista de esquerda.

E eu acho que Sanders, à medida que começou a falar mais com os “millennials”, começou a mudar seu discurso para uma linha mais socialista. Começou a falar sobre um sistema de saúde público e sobre acesso gratuito ao ensino superior.

JS: O termo neoliberal é muito usado atualmente por pessoas que parecem não ter a menor ideia do que seja a política econômica neoliberal ou o neoliberalismo. Dê uma definição para essas pessoas: o que significa neoliberalismo?

DH: Eu considero que é um projeto político, que começou em 1970 com a Mesa de Negócios [Business Roundtable, associação dos presidentes das maiores empresas dos EUA], os Rockfellers, e todos os demais, para reorganizar a economia de forma a restaurar o poder de uma classe capitalista em declínio. Eles estavam em dificuldades no final dos anos 1960, começo dos anos 1970, porque o movimento dos trabalhadores estava muito forte, e havia vários ativistas comunitários, o movimento ambientalista, todas essas forças de reforma surgindo, a criação da Agência de Proteção Ambiental dos EUA, todo esse tipo de coisa. Eles então decidiram, por meio da Mesa de Negócios, que iriam realmente tentar recuperar e acumular o máximo de poder econômico que pudessem.

E havia vários elementos nisso. Por exemplo, se você se visse diante de uma situação de ter que escolher entre resgatar pessoas ou resgatar os bancos, você resgataria os bancos e deixaria as pessoas em apuros. Sempre que você encontrasse um conflito entre o capital e o bem-estar das pessoas, você escolheria o capital. Essa era a forma resumida do projeto.

Tem também algumas pessoas que dizem que é só uma ideia sobre livre mercado. É, realmente, livre mercado para alguns, responsabilidade individual, sim. Uma redefinição de cidadania tal que um bom cidadão é um cidadão sem necessidades. Então, qualquer cidadão com necessidades é uma pessoa ruim. Os serviços sociais são organizados para punir as pessoas, não para realmente dar assistência e ajudá-las.

JS: E o que eu costumo considerar um dos aspectos mais visíveis da política econômica neoliberal é a ideia de medidas de austeridade que são impostas às economias dos países do Sul, mas também no caso da Grécia, por exemplo. A primeira coisa que os credores exigem para conceder empréstimos é o fim de programas sociais, e o dinheiro que você gastaria neles passa a ser destinado a pagar o principal ou os juros do empréstimo que está sendo “generosamente” concedido.

DH: É a servidão por dívida, mais uma vez. Você organiza a servidão por dívida de forma a aprisionar as pessoas para que elas precisem pagar. Mas você não tira dinheiro dos investidores. Quer dizer, no caso da Grécia, por exemplo, não é como se alguém tivesse ido atrás dos bancos franceses e alemães que emprestaram o dinheiro à Grécia. Eles basicamente socializaram a dívida, entregaram ao FMI, ao Fundo Europeu de Estabilidade e a todo o resto, e então obrigaram os gregos a pagar.

A bem da verdade, se os bancos cometeram um erro de avaliação, eles deveriam pagar. Mas não pagaram, e esse é o princípio neoliberal em funcionamento. Eu tendo a não gostar do termo austeridade, porque é usado para políticas que são aplicadas à população. Austeridade não é para o capital. E não é para as instituições financeiras em absoluto, não é para o 1% do topo. A austeridade diz respeito aos programas sociais. E, de fato, o estado está profundamente envolvido em subsidiar o capital. Os bancos nunca se ferem. É isso que constitui a ordem neoliberal.

JS: Quando vemos políticos fazendo campanha com base na ideia de que vão reduzir ou eliminar a dívida do governo federal dos EUA, do que eles estão realmente falando?

DH: Bem, é uma espécie de taco de baseball que é periodicamente levado à política. Você se lembra do [ex vice-presidente] Dick Cheney dizendo que “Ronald Reagan nos ensinou que a dívida não importa”. Porque o Reagan fez dívida feito doido, principalmente pelo lado militar, e o Bush, também, fez muitas dívidas.

Então, quando o Obama chegou, os Republicanos viraram e disseram: “Temos que fazer alguma coisa a respeito da dívida”. E isso se tornou a desculpa para impedir que qualquer programa fosse aprovado. Agora que os Republicanos voltaram ao poder, o que eles fazem? Aumentam a dívida em meio trilhão de dólares, ou algo assim.

Não me parece que haja uma questão real nisso, é simplesmente uma desculpa política para inflamar o discurso sobre o endividamento e termos que lidar com a dívida para os nossos filhos, mas aí, claro, tudo é virado do avesso. Como essa última legislação tributária, ninguém se importa com isso, sendo que, na verdade, eles passaram uma eternidade berrando para chamar a atenção para a dívida. É uma ferramenta política que você usa de um jeito bem específico, em um momento histórico específico.

JS: Como seria se a sociedade norte-americana fosse radicalmente reorganizada à luz de uma filosofia ou uma ideologia de base marxista? Ou se o bem-estar social fosse realmente uma prioridade nesse país, em vez de ser cada um por si? O que isso representaria num país grande e populoso como os EUA?

DH: Dizendo de forma direta: eu acho que o futuro dos EUA, caso haja um futuro radical, está mais próximo do que eu chamaria de anarquismo não ideológico. Eu não acho que o país esteja pronto para o tipo de empreitada coletiva que seria realmente necessária para confrontar o poder do Federal Reserve [o sistema de bancos centrais dos Estados Unidos] e encontrar uma alternativa. Não acho que esteja pronto para pensar em um movimento de massa do tipo que realmente começaria a redefinir como a economia funciona.

Penso que se vai haver algum tipo de esquerda real, vai ser um tipo de política de esquerda socialista-anarquista, e que tem muitas características favoráveis. Vindo de uma tradição de marxismo histórico, eu deveria ser bem hostil ao anarquismo, mas na verdade tenho grande apreço por essa tradição. E acho que há uma área ideológica de intersecção que traz algo de diferente para a história e a cultura dos EUA, e precisamos reconhecer a importância dessa história.

JS: Não há caminho possível para um completo colapso do estado capitalista nos EUA. Estou certo?

DH: Não, eu acho que uma das coisas que está acontecendo na esquerda em alguma medida é a tentativa de redefinir as formas de poder governamental, por assim dizer, que representem alternativas às estruturas estatais existentes. E vejo o ativismo em curso no nível municipal como um caminho interessante para começar a explorar essas alternativas. Podemos criar formas democráticas de governança municipal, por exemplo?

[…]

O que me chamou a atenção [nos protestos em] Ferguson [no estado do Missouri, em 2014] foi a imagem da polícia militarizada — a meu ver, não há como um movimento político imaginar que possa tomar as ruas e estourar as barricadas e chegar a algum lugar. Eles seriam simplesmente massacrados. Então é preciso começar a pensar num tipo de transformação progressiva na política que não envolva confrontos e violência desse tipo, porque, francamente, me parece que qualquer movimento desse tipo seria derrotado. E assim, temos que pensar em um tipo de movimento alternativo.

O problema é que os movimentos que estão tentando construir alguma alternativa acabam sendo criminalizados. Vemos a criminalização dos ambientalistas, por exemplo. Quando se crimanaliza, você passa a ter o direito de ir lá e matar essas pessoas.

É esse, basicamente, o problema da esquerda. A esquerda precisa pensar em uma estratégia alternativa em vez de ficar sonhando com a Revolução Russa ou a Revolução Americana ou algo desse tipo.

JS: Eu costumo discutir com pessoas que dizem coisas do tipo: “Ah, sabe, vai acabar tendo um golpe nos Estados Unidos e os militares vão tomar o poder. Ou vão construir campos de concentração da FEMA [Agência Federal de Gestão de Emergência], etc.” E eu já discuti com essas pessoas, inclusive algumas do meu próprio mundo na esquerda, e o que digo a elas é: “O estado não precisa fazer nada disso. Eles não precisam construir um campo de concentração e te colocar lá. Eles já estão vencendo.”

Esse é o capitalismo deste país: a ideia que as pessoas têm de que é preciso um grupo restrito de homens brancos gordos, fumando charutos e imaginando formas de prender todo mundo que se oponha a elas — não é assim que esse tipo de força opera. Está muito mais entranhado em todos os aspectos das nossas vidas.

DH: Sim, e é por isso que eu volto à ideia da servidão por dívida. Uma das formas de exercer controle social é afundar as pessoas em dívidas a tal ponto que elas não possam sequer imaginar um futuro que não seja viver para poder pagar sua dívida.

Se você pensar, um dos maiores limites ao radicalismo, por exemplo, da geração dos “millennials”, é o imenso volume de dívida estudantil que eles têm. Cientes isso, eles não vão se arriscar tanto. Servidão por dívida é o que tem para hoje.

JS: Professor David Harvey, muito obrigado por se juntar a nós no Intercepted.

DH: Bem, obrigado por esta oportunidade. Foi ótimo. Obrigado.


“David Harvey provocou uma revolução em sua área de conhecimento e inspirou uma geração de intelectuais radicais.” – Naomi Klein

“Neste livro surpreendente, David Harvey tece delicadamente o movimento do valor a partir da obra de Karl Marx, em busca de uma maneira compreensível de representar seus achados fundamentais diante dos impasses econômicos e políticos da atualidade. Imerso no contexto do século XXI, Harvey questiona a pertinência e a atualidade do pensador alemão. Vai adiante dele, com ele.” – Amélia Luisa Damiani

“Ler esta devastadora denúncia de Harvey sobre como vivemos hoje é duvidar, como nunca, da convicção de que o livre mercado é a melhor maneira de aumentar o padrão de vida das pessoas.” – Stuart Jeffries, The Guardian

“David Harvey não dá o menor sinal de que vá diminuir o ritmo; sua fecunda produção garantiu seu estatuto como um dos acadêmicos mais citados do mundo. Este seu mais recente livro oferece um panorama simples, sem ser simplista, do sistema de pensamento de Marx e aplica esse sistema ao atual clima de incerteza política e econômica, jogando luz, ao longo do processo, em problemas novos e antigos. Uma obra informativa para os iniciados mas também para os leigos.” – Fred Melnyczuk, Financial Times

Trecho do livro

“Minha intenção aqui não é sugerir que o capital às vezes cede a um instinto primordial de destruir o que quer que ele tenha construído, como algumas crianças que parecem adorar pisotear os castelos de areia cuidadosamente construídos por outras crianças. Pois, para Marx, o que interessava era mostrar que aquilo que na história do capitalismo parecia (ou era apresentado como) um ato do destino ou dos deuses era de fato produto do próprio capital. Mas, para tanto, ele precisava de um aparato conceitual alternativo. Por exemplo, o modo de produção capitalista precisa reconhecer, escreveu Marx, que uma “desvalorização do dinheiro creditício […] faria estremecer todas as relações existentes”. Os bancos, como sabemos bem, precisam ser socorridos custe o que custar. “Sacrifica-se, portanto, o valor das mercadorias para assegurar a existência imaginária e autônoma desse valor no dinheiro. Como valor monetário, ele só fica assegurado enquanto estiver assegurado o dinheiro.” A inflação, como também sabemos muito bem, precisa ser controlada a todo custo. “Por uns poucos milhões em dinheiro, é preciso sacrificar, portanto, muitos milhões de mercadorias, o que é inevitável na produção capitalista e constitui uma de suas belezas.” Valores de uso são sacrificados e destruídos independentemente da necessidade social. Quão insano é isso