JUDICIAL REVIEW OU GRITARIA?, por Fábio Sá e Silv

Compartilho comentário de Fábio Sá e Silva em seu Facebook. Profissionais muito bem preparados e sérios, como é o caso do Fábio e não é o caso de Dallagnol, argumentam com sobriedade e inteligência e não necessitam de power point, argumentos circulares e fundamentações religiosas ou messiânicas para expor suas ideias e opiniões jurídicas.

O profissional do Direito, quando acometido de paixão cega e incapacitante, perde o equilíbrio, o  senso de justiça e acaba perdendo o que lhe resta de compostura. A linha que separa o justo do prevaricador é tênue e, uma vez ultrapassada, transforma-se num caminho sem volta. Dallagnol está sendo contaminado pelos venenos que manipulou em sua fábrica de inventar nexos causais e, em lugar de provas, apresenta crenças. Está cada vez mais possuído pelo demônio da “visão de antolhos”. É visível que está enfeitiçado pelas suas teorias e elocubrações. O problema é maior quando o louco desvairado recebe aplausos e se nutre dessa energia falsa e destruidora. Aos operadores de Justiça recomenda-se isenção, neutralidade e sobriedade e, não, cegueira premeditada e primarismo tosco. A Justiça não necessita de palco, nem de picadeiro.

Leia, a seguir, os comentários de Fábio.

Paulo Martins

JUDICIAL REVIEW OU GRITARIA?

Deltan escreve hoje artigo “exclusivo para o UOL”

Finaliza a peça com a “esperança de que o Supremo reconheça a inconstitucionalidade” do Decreto de Indulto assinado por Temer este ano

Fora isso, não gasta uma linha pra explicar qual seria o fundamento da alegada inconstitucionalidade

Na minha humilde leitura da CF e do Decreto, não há qualquer razão, formal ou material, para considerar o Decreto inconstitucional

Materialmente falando, então, a CF não impõe qualquer restrição ao poder de indultar

Diz o Art. 5º, XLIII: “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de GRAÇA OU ANISTIA a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (…)”

Ou seja, mesmo nesses casos mais graves, não há, NO TEXTO CONSTITUCIONAL, qualquer vedação ao INDULTO

Controle de constitucionalidade não é, ou ao menos não deveria ser uma disputa por quem grita mais

Deltan precisa entender que, quando vem a público para falar de direito, precisa trazer mais do que bravatas ou PowerPoints

De resto, a maior proteção contra medidas da natureza desse Decreto é a preservação do voto e da accountability vertical (do cidadão em relação ao presidente)

Se há problema no Decreto, ele é de outra natureza

É que se trata de ato tão (i)legítimo quanto todas as reformas conduzidas por Temer desde o seu primeiro dia no governo, tais como PEC do teto, terceirização sem limites fim da CLT, corte de programas sociais, venda de patrimônio público, destruição de Conselhos, aparelhamento da EBC, etc

Medidas que não sobreviveriam a um debate eleitoral e que seriam onerosas demais na campanha seguinte e, por isso, não seriam recomendáveis a um presidente alçado ao poder de acordo com as regras do jogo

Mas quem foi conivente com (ou até apoiou) tudo isso, não pode agora vir posar de indignado

A “fazendalização” da Previdência Social e a verdade sobre a reforma

Por Julio Cesar Vieira Gomes
Quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Publicado em justificando.cartacapital.com.br

A “fazendalização” da Previdência Social e a verdade sobre a reforma

Com a Lei 13.266/2016 foi extinto o Ministério da Previdência Social e transferidas suas competências para uma Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda, apropriando-se das políticas, diretrizes, administração e gerência dos benefícios previdenciários. A arrecadação já havia sido confiscada na última passagem do atual ministro Henrique Meirelles pela equipe econômica do governo.

A Lei 11.457/2007 fez com que a Secretaria da Receita Previdenciária – SRP do Ministério da Previdência Social fosse transferida para o Ministério da Fazenda, criando-se assim a Secretaria da Receita Federal do Brasil – SRFB, a chamada “Super Receita”.

Com a “fazendalização”, a previdência social deixa de ser verdadeiramente um patrimônio do trabalhador, a ser usufruído justamente quando ele mais precisa (incapacidade, doença, idade avançada, a morte de quem dependia economicamente etc), para se tornar um produto bancário, a lucrativa previdência privada comercializada pelos grandes bancos. E, na política neoliberal, o Ministério da Fazenda é precisamente o “cordão umbilical” que une os bancos e todas as instituições financeiras ao governo federal.

O que antes era uma matéria de política social foi transferida para a equipe econômica do governo. Uma lástima intimamente relacionada à reforma da previdência social.

O discurso de “acabar com os privilégios” é falacioso. Faz quase 15 anos que uma outra reforma, por meio da emenda constitucional 41, de 19/12/2003, já havia equiparado a previdência dos funcionários públicos com a previdência do INSS paga aos trabalhadores em geral.

A aposentadoria do servidor público também é limitada pelo teto de salário de benefício, hoje em R$ 5.531,31. Para receber proventos superiores ao teto, ele tem que contratar dos bancos uma previdência complementar privada ou optar pela Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal – FUNPRESP.

Portanto, o marketing do governo pela reforma da previdência ofende a inteligência do povo brasileiro. Como se uma campanha publicitária fosse capaz, como num “toque de alquimia”, transformar uma mentira em verdade.

As verdadeiras intenções do governo são outras

Para os trabalhadores em geral, a “fazendalização” permitiu que somente os valores declarados pelas empresas como salários em GFIP – Guia do FGTS e Informações à Previdência Social compusessem o cálculo dos benefícios pagos pelo INSS (aposentadoria, auxílio-doença, salário-maternidade etc).

Mesmo quando a omissão ou sonegação resulte em autuações pela Receita Federal para a cobrança das contribuições previdenciárias sobre essas parcelas salariais e, posteriormente, a empresa promova a quitação de sua dívida pelo REFIS ou PERT, o governo não apropria “de ofício” os salários na base de dados da previdência social (GFIP) para que à época do cálculo do benefício a ser pago aos empregados dessas empresas autuadas esses valores sejam considerados.

Segundo dados da Procuradoria da Fazenda Nacional, o montante dessas autuações já em dívida ativa totaliza aproximadamente R$ 430 bilhões e, quando adicionamos os créditos ainda tramitando na esfera administrativa então esse valor supera em muito R$ 500 bilhões, ou seja, meio trilhão de reais (1).

Com relação àqueles rotulados de “privilegiados”, na verdade, as razões para o governo impor regras de aposentadoria inalcançáveis são outras: a primeira é que o governo federal não presta conta sobre as contribuições previdenciárias patronais a que está obrigado na condição de empregador dos servidores públicos federais.

Da mesma forma que as empresas são obrigadas a contribuírem mensalmente com a previdência social dos seus empregados, sob pena de graves sanções, o artigo 8º da Lei 10.887/2004 obriga a União custear a previdência dos servidores públicos através de contribuições a serem depositadas mês a mês em conta específica para essa finalidade (2).

De fato, a reforma da previdência “cai como uma luva”, a imposição de regras inalcançáveis para aposentadoria dos servidores públicos passa a ser um meio encontrado pelo governo de anistiar a si próprio em relação às contribuições patronais inadimplidas.

O segundo motivo é que o governo se tornou obsessivo que os servidores públicos migrem para o sistema de previdência complementar privada, a fim de beneficiar as instituições financeiras.

Com a Lei 13.328/2016, o prazo de adesão que estava fechado a décadas foi reaberto até 29/07/2018, coincidentemente, logo após a data estimada pelo governo para que a reforma da previdência esteja aprovada pelo Senado.

O terceiro motivo é de puro revanchismo. As entidades dos servidores públicos, em especial a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e o SINDIFISCO, demonstraram que não havia déficit atual da previdência social, que era a primeira campanha publicitária do governo. O superávit da previdência social também foi comprovado pela CPI do Senado.

Imediatamente, o governo mudou o discurso, passou a falar de projeções futuras de déficit. Como se no Brasil algum governante pensasse em planejamento de longo prazo, e como se a dívida das empresas em mais de R$ 500 bilhões não precisasse ser cobrada. Em seguida, veio com mais essa mentira: de que a reforma da previdência seria para acabar com privilégios.

Na verdade, os privilegiados não estão no serviço público, estão no núcleo político de todas as entidades da federação: União, Estados, DF e municípios. Esses sim que verdadeiramente continuarão “trabalhando pouco, ganhando muito e se aposentando cedo”.

O atual texto da reforma da previdência não atinge os atuais deputados e senadores e nem os atingirão caso sejam reeleitos em 2018.

De fato, os “privilegiados” não são a professora da escola pública, a enfermeira do posto de saúde ou qualquer outro servidor público, mas a classe política, exatamente os que decidirão o destino dos milhões de trabalhadores que com o passar dos anos não mais poderão contar com os únicos recursos de que dispõem para sua sobrevivência: saúde e idade para trabalhar.

Julio Cesar Gomes é Doutorando e Mestre em Direito Financeiro e Tributário na UERJ. Especialista em Previdência Social pela UnB. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Tributário – SBDT. Professor.

(1) “O estoque da dívida ativa previdenciária atingiu o montante de R$ 432,9 bilhões em janeiro de 2017 e continua crescendo a um ritmo de aproximadamente 15% ao ano”, Fonte: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias_carrossel/pgfn-recupera-mais-de-r-22-bilhoes-em-creditos-previdenciarios.

(2) Lei 10.887, de 18/06/2004: “art. 8o A contribuição da União, de suas autarquias e fundações para o custeio do regime de previdência, de que trata o art. 40 da Constituição Federal, será o dobro da contribuição do servidor ativo, devendo o produto de sua arrecadação ser contabilizado em conta específica”. Parágrafo único. A União é responsável pela cobertura de eventuais insuficiências financeiras do regime decorrentes do pagamento de benefícios previdenciários”.

Com a Lei 13.266/2016 foi extinto o Ministério da Previdência Social e transferidas suas competências para uma Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda, apropriando-se das políticas, diretrizes, administração e gerência dos benefícios previdenciários. A arrecadação já havia sido confiscada na última passagem do atual ministro Henrique Meirelles pela equipe econômica do governo.

A Lei 11.457/2007 fez com que a Secretaria da Receita Previdenciária – SRP do Ministério da Previdência Social fosse transferida para o Ministério da Fazenda, criando-se assim a Secretaria da Receita Federal do Brasil – SRFB, a chamada “Super Receita”.

Com a “fazendalização”, a previdência social deixa de ser verdadeiramente um patrimônio do trabalhador, a ser usufruído justamente quando ele mais precisa (incapacidade, doença, idade avançada, a morte de quem dependia economicamente etc), para se tornar um produto bancário, a lucrativa previdência privada comercializada pelos grandes bancos. E, na política neoliberal, o Ministério da Fazenda é precisamente o “cordão umbilical” que une os bancos e todas as instituições financeiras ao governo federal.

O que antes era uma matéria de política social foi transferida para a equipe econômica do governo. Uma lástima intimamente relacionada à reforma da previdência social.

O discurso de “acabar com os privilégios” é falacioso. Faz quase 15 anos que uma outra reforma, por meio da emenda constitucional 41, de 19/12/2003, já havia equiparado a previdência dos funcionários públicos com a previdência do INSS paga aos trabalhadores em geral.

A aposentadoria do servidor público também é limitada pelo teto de salário de benefício, hoje em R$ 5.531,31. Para receber proventos superiores ao teto, ele tem que contratar dos bancos uma previdência complementar privada ou optar pela Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal – FUNPRESP.

Portanto, o marketing do governo pela reforma da previdência ofende a inteligência do povo brasileiro. Como se uma campanha publicitária fosse capaz, como num “toque de alquimia”, transformar uma mentira em verdade.

As verdadeiras intenções do governo são outras

Para os trabalhadores em geral, a “fazendalização” permitiu que somente os valores declarados pelas empresas como salários em GFIP – Guia do FGTS e Informações à Previdência Social compusessem o cálculo dos benefícios pagos pelo INSS (aposentadoria, auxílio-doença, salário-maternidade etc).

Mesmo quando a omissão ou sonegação resulte em autuações pela Receita Federal para a cobrança das contribuições previdenciárias sobre essas parcelas salariais e, posteriormente, a empresa promova a quitação de sua dívida pelo REFIS ou PERT, o governo não apropria “de ofício” os salários na base de dados da previdência social (GFIP) para que à época do cálculo do benefício a ser pago aos empregados dessas empresas autuadas esses valores sejam considerados.

Segundo dados da Procuradoria da Fazenda Nacional, o montante dessas autuações já em dívida ativa totaliza aproximadamente R$ 430 bilhões e, quando adicionamos os créditos ainda tramitando na esfera administrativa então esse valor supera em muito R$ 500 bilhões, ou seja, meio trilhão de reais (1).

Com relação àqueles rotulados de “privilegiados”, na verdade, as razões para o governo impor regras de aposentadoria inalcançáveis são outras: a primeira é que o governo federal não presta conta sobre as contribuições previdenciárias patronais a que está obrigado na condição de empregador dos servidores públicos federais.

Da mesma forma que as empresas são obrigadas a contribuírem mensalmente com a previdência social dos seus empregados, sob pena de graves sanções, o artigo 8º da Lei 10.887/2004 obriga a União custear a previdência dos servidores públicos através de contribuições a serem depositadas mês a mês em conta específica para essa finalidade (2).

De fato, a reforma da previdência “cai como uma luva”, a imposição de regras inalcançáveis para aposentadoria dos servidores públicos passa a ser um meio encontrado pelo governo de anistiar a si próprio em relação às contribuições patronais inadimplidas.

O segundo motivo é que o governo se tornou obsessivo que os servidores públicos migrem para o sistema de previdência complementar privada, a fim de beneficiar as instituições financeiras.

Com a Lei 13.328/2016, o prazo de adesão que estava fechado a décadas foi reaberto até 29/07/2018, coincidentemente, logo após a data estimada pelo governo para que a reforma da previdência esteja aprovada pelo Senado.

O terceiro motivo é de puro revanchismo. As entidades dos servidores públicos, em especial a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e o SINDIFISCO, demonstraram que não havia déficit atual da previdência social, que era a primeira campanha publicitária do governo. O superávit da previdência social também foi comprovado pela CPI do Senado.

Imediatamente, o governo mudou o discurso, passou a falar de projeções futuras de déficit. Como se no Brasil algum governante pensasse em planejamento de longo prazo, e como se a dívida das empresas em mais de R$ 500 bilhões não precisasse ser cobrada. Em seguida, veio com mais essa mentira: de que a reforma da previdência seria para acabar com privilégios.

Na verdade, os privilegiados não estão no serviço público, estão no núcleo político de todas as entidades da federação: União, Estados, DF e municípios. Esses sim que verdadeiramente continuarão “trabalhando pouco, ganhando muito e se aposentando cedo”.

O atual texto da reforma da previdência não atinge os atuais deputados e senadores e nem os atingirão caso sejam reeleitos em 2018.

De fato, os “privilegiados” não são a professora da escola pública, a enfermeira do posto de saúde ou qualquer outro servidor público, mas a classe política, exatamente os que decidirão o destino dos milhões de trabalhadores que com o passar dos anos não mais poderão contar com os únicos recursos de que dispõem para sua sobrevivência: saúde e idade para trabalhar.

Julio Cesar Gomes é Doutorando e Mestre em Direito Financeiro e Tributário na UERJ. Especialista em Previdência Social pela UnB. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Tributário – SBDT. Professor.

(1) “O estoque da dívida ativa previdenciária atingiu o montante de R$ 432,9 bilhões em janeiro de 2017 e continua crescendo a um ritmo de aproximadamente 15% ao ano”, Fonte: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias_carrossel/pgfn-recupera-mais-de-r-22-bilhoes-em-creditos-previdenciarios.

(2) Lei 10.887, de 18/06/2004: “art. 8o A contribuição da União, de suas autarquias e fundações para o custeio do regime de previdência, de que trata o art. 40 da Constituição Federal, será o dobro da contribuição do servidor ativo, devendo o produto de sua arrecadação ser contabilizado em conta específica”. Parágrafo único. A União é responsável pela cobertura de eventuais insuficiências financeiras do regime decorrentes do pagamento de benefícios previdenciários”.

Sobre bitcoin e Marx: uma aproximação, por André Perfeito

Não é um texto escrito e revisado pelo autor, André Perfeito. É apenas uma reflexão, com dúvidas e questionamentos, que ele gentilmente dividiu com seus leitores na rede social. Compartilho porque acho fundamental discutirmos para que buraco negro um ganancioso e desregulado sistema financeiro internacional poderá levar pessoas e nações. Ou seria a semente da autodestruição do capitalismo tal como conhecemos, com a criação de outra forma de relacionamento financeiro ainda mais destrutiva, uma espécie de metástase?

Paulo Martins

Sobre bitcoin e Marx: uma aproximação.

O assunto se espalhou feito rastilho de pólvora e não me vejo em entrevista que seja nestas últimas semanas sem ter que tecer opinões sobre se bitcoin é uma bolha ou não. Não me dava com o assunto e dei de ombros com os que afirmavam que bitcoin era uma moeda: não, bitcoin é muita coisa, menos uma moeda no sentido estrito da palavra. Ela não é meio de conta, nem reserva de valor e é meio de troca não por ela, mas pela tecnologia de blockchain que ela representa.

Mas hoje um frio na espinha me correu, destes que deixam aguçados os instintos intelectuais ao perceber algo mais sutil no sorriso imóvel da cotação na tela. Vi no Twitter, e repliquei aqui no meu facebook, que a valorização do bitcoin já superou a maior bolha conhecida pelo homem: a bolha das tulipas do século XVII.

O que está acontecendo com o bitcoin já supera em escala larga os maiores processos de apreciação conhecidos e desde 2011 seu valor subiu mais de 2 milhões porcento.

É algo que não posso ignorar como economista e tenho que formular uma resposta mais bem acabada sobre o assunto do que recomendar bom senso; afinal eu seria um canalha se recomendasse para clientes e para a sociedade um ativo que se valorizou mais de 1700% só este ano. Falo o que o bom senso manda. Quer entrar, entre, mas não me venha pedir conselhos depois.

O frio na espinha foi duplo hoje. Estava conversando hoje com o diretor de câmbio da corretora – que por sinal é cético quanto ao futuro do bitcoin – e ele me informou que o mais provável é que as autoridades econômicas tratem bitcoin como mercadoria e como tal teremos a incidência de ICMS além da legislação pertinente.

Este é um assunto sensível para nós na corretora: não permitimos nem queremos envolver nossa operação em zona cinzenta, o risco pode ser elevado e assim preferimos ficar numa distância calculada.

Mas a palavra “mercadoria” me pegou. Havia ali, neste tratamento jurídico do fenômeno, uma revelação material do que se apresenta como ideia em abstrato.

Já escrevi aqui que sou keynesiano uma vez que que vejo no esforço de Keynes uma contraposição ao autoritarismo que se revelava na Europa Continental durante a Segunda Grande Guerra. Mantenho essa posição, mas também disse que a caixa de ferramentas de um economista tem que ter mais que uma ferramenta e não posso negar que o marxismo me permite entender com maior precisão o que é o bitcoin que a teoria ortodoxa (que uso muito) ou mesmo a teoria keynesiana (que uso todo o dia).

O frio na espinha é o que segue….

Para Marx o dinheiro é uma mercadoria, uma mercadoria especial sem dúvida, mas uma mercadoria que contém sua especialidade em poder de maneira fetichista informar o quanto de cada uma se expressa em outra.

Se todos sabemos o valor, por exemplo do ouro, posso relativizar um cafezinho em proporção de um carro ao media-la pelo ouro. De tempos em tempos as mercadorias elegem uma em especial para fazer a função de “tradutor universal” (este é o conceito de fetiche em Marx, de algo que faz as vezes de substituir o fundamental por alguma mediação; tal qual uma cinta liga ou um espartilho estão ao serviço de excitar uma vez que a cinta liga e o espartilho apenas mediam o sexo propriamente, a vulva, o corpo).

Se o bitcoin é uma mercadoria isto implica dizer que ela pode virar também uma moeda, afinal toda mercadoria o é. Para explicar esse ponto faço uma pequena digressão: se eu produzo lápis e estoco estes eu sei que tenho, naquele estoque, dinheiro em potencial, só produzo lápis porque para mim é “mais fácil” fazer lápis do que canivetes, logo toda mercadoria é, neste sentido, dinheiro também.

Para Marx o valor de uma mercadoria está ligado ao quanto de trabalho que nela é incorporado. A única substância que exprime o real valor é a quantidade de trabalho necessário a sua produção.

Vamos supor que se demore três dias para caçar uma onça e vamos supor que se demore um dia para caçar uma capivara. O lógico – o fetiche – é que se troque uma onça por três capivaras num mercado equilibrado.

A questão que se impõe aqui é que o valor de um bitcoin é que, no sentido do valor, ele tende à zero. São computadores criando códigos atras de códigos. Não há em tese mão de obra “nova” no processo (fora o gasto significativo de energia elétrica, mas isso deixo pra depois).

Dito de maneira marxista a composição orgânica dessa mercadoria bitcoin é infinita uma vez que o capital constante (c) é infinitamente maior que o capital variável (v). Isso só pode acontecer uma vez que um computador é, de forma absoluta e relativa, todo o acúmulo de capital até hoje na forma de capital constante.

Chegamos assim ao segundo frio na espinha.

Uma tulipa é uma tulipa afinal…

Uma tulipa é algo material, visível e até útil. Já uma linha de zeros e uns? O que é?

Marx apontava que a produção de mais-valia (que se expressa em parte na composição orgânica que apontei acima) é a parte desagradável da tarefa do capitalista. Se este pudesse faria dinheiro do ar como no mais fez como vimos na cara durante a crise subprime.

Meu espanto, meu maior temor é que talvez o bitcoin não seja uma bolha, mas antes a mercadoria absoluta, a mercadoria “perfeita”, sem um dono humano, a mercadoria que desafia e pode destruir os estados nacionais ao criar algo que escapa todas as convenções sociais organizadas.

O bitcoin pode ser a utopia final do capitalismo: o não lugar e todos os lugares ao mesmo tempo, a mercadoria sem trabalho.

Isso só ocorre porque está evidente que o Dólar encontrou seu limite e a expansão trilionária do balanço do FED: o canto do cisne de uma superpotência que não consegue dar sentido real para a liquidez criada.

O surgimento da inteligência artificial seria um desafio para nós humanos com a internet, com o bitcoin e o blockchain se torna quase intransponível.

Não há um botão mais para desligar a máquina…

(Quem não conhece Marx sugiro que veja esse documentário da BBC)

Obs: O vídeo em referência pode ser encontrado no Youtube, com o título de Masters of Money -3. Conheço este vídeo e

Moro pretende pautar o STF

Compartilho, a seguir, interessante interpretação de Alexandre Valadares sobre a intenção do juiz Sérgio Moro quando sugeriu ao “presidente” Temer que interferisse junto ao Supremo Tribunal Federal no caso da revisão da decisão de mandar para prisão condenados em segunda instância, antes da finalização do processo criminal.

Moro, a exemplo de Dallagnol e seus “blue caps”, desejam mesmo é usar a mídia de negócios para pautar o Supremo Tribunal Federal. Com o Supremo caído na sarjeta e a Constituição Federal rasgada como está sendo, não nos surpreende que todo mundo se ache no direito de mandar recados e tentar influenciá-lo.

O título do artigo é de minha autoria. Não deve ser atribuído a Alexandre.

Paulo Martins

Por Alexandre Arbex Valadares

Ao receber o prêmio da revista istoé diante da presença sentada de michel temer, moro declarou novamente, com uma desfaçatez que já começa a dar na vista, que prometeu a si mesmo honrar o legado de Teori Zavascki, justamente o único membro do stf a criticar com rigor, antes do golpe, os desmandos praticados pelo juiz da lavajato. Creio que essa insistência com que moro procura relacionar seu nome ao do ministro Teori não se resume aos efeitos demagógicos dessa associação: há nisso o sintoma psicológico de uma culpa mal resolvida, de uma ferida no ego não cicatrizada.

Foi Teori quem anulou a validade jurídica da gravação ilegal das conversas entre Lula e Dilma, cujo conteúdo moro vazou para o jornal nacional, alegando como motivação a defesa do “interesse público”. A divulgação dessas conversas, injustificável do ponto de vista jurídico, marcou o momento em que a operação lavajato se tornou um processo politicamente orientado, ou melhor, um processo que passou a empregar meios jurídicos – e, quando estes não bastavam, meios policiais e midiáticos – para alcançar fins políticos. A retórica de seus porta-vozes (“limpar o país”, “virar a página da história” etc.) fez parecer que esses fins eram tão moralmente superiores que qualquer meio usado para alcança-los devia ser considerado admissível e válido.

No despacho de uma decisão de 22 de março de 2016 em que decretou sigilo sobre os grampos (que seriam anulados juridicamente por outra decisão sua, em junho), Teori escreveu: “A esta altura, há de se reconhecer, são irreversíveis os efeitos práticos decorrentes da indevida divulgação das conversações telefônicas interceptadas. Ainda assim, cabe deferir o pedido no sentido de sustar imediatamente os efeitos futuros que ainda possam dela decorrer e, com isso, evitar ou minimizar os potencialmente nefastos efeitos jurídicos da divulgação”. A crítica do ministro a moro se mostra mais explicitamente noutro trecho: “Não há como conceber, portanto, a divulgação pública das conversações do modo como se operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal. É descabida a invocação do interesse público da divulgação ou a condição de pessoas públicas dos interlocutores atingidos, como se essas autoridades, ou seus interlocutores, estivessem plenamente desprotegidas em sua intimidade e privacidade”.

Pouco antes dessa decisão, Teori havia declarado numa solenidade pública que “o papel do juiz é o de resolver conflitos, e não criar”. A alusão a moro era tão clara que até o estadão percebeu: uma manchete de 18 de março de 2016 chegou a dizer que o então ministro do stf havia “alfinetado” (não sei quando o estadão começou a adotar essas expressões do nelson rubens na redação) o juiz de Curitiba sem citá-lo.

Li aí nos sites de direita que a aparente recusa de temer a se levantar para aplaudir moro no prêmio da istoé engrandecia ainda mais o laureado. No entanto, moro, em seu discurso, fez um apelo a temer, em nome da memória do Teori, para que impedisse a revisão pelo stf de uma decisão precedente do falecido ministro que autorizava o início da execução da pena a partir da condenação do réu em segunda instância, mesmo que restassem a ele outros recursos.

A forma com que moro se dirigiu a temer pareceu-me meramente protocolar, e não subserviente, como alguns descreveram. Aliás, ao contrário: moro não pediu a temer que interviesse, com seu “poder” e sua “influência”, no stf para impedir o “retrocesso” que a revisão daquele precedente penal poderia significar – ele se valeu do “poder” e da “influência” que sua imagem heroica lhe confere para pautar o stf. É mais uma pequena mostra de que a disputa política se desloca cada vez mais da arena democrática, onde é travada por representantes eleitos, para se insular num judiciário de matriz aristocrática, cujas facções concorrem por “influência” dentro de um mesmo projeto de “poder”.

O Brasil é você. O Brasil somos nós.

Por Janio de Freitas,  Folha de São Paulo

Ninguém, parece mesmo que ninguém, tenta pensar o Brasil em seu pleno sentido e em seus possíveis amanhãs. É um país sem estratégia, sem ideia do que é e conviria vir a ser no mundo. Na grande tecitura internacional, não vive do que faça para uma inserção desejada, mas do que cada dia lhe traz. Segue adiante porque os dias se sucedem. Condicionado integralmente pelo mundo exterior, perplexo, lerdo, segue.

Com uma gama invejável de minérios, tantos outros recursos e grandes necessidades de consumo, nunca teve uma política industrial. País de latifundiários e fazendeiros, suas políticas agropecuaristas são mera distribuição discricionária de dinheiro e privilégios, de uso à vontade. E nem isso, para uma ciência coordenada com objetivos nacionais e contingências externas.

É difícil pensar um país assim. É difícil pensar mesmo o Brasil atual, o país de hoje. Já a partir do mais grotesco e rudimentar na situação imediata: como explicar, por exemplo, o convívio familiar entre a empolgação generalizada com os êxitos contra a corrupção e, de outra parte, a tolerância indiferente com a Presidência da República ocupada e usada por um político acusado de corrupção, formação de quadrilha, obstrução de justiça, e salvo de processos mediante a corrupção de deputados com cargos e verbas do Orçamento?

Presidência povoada por notórios como Moreira Franco, marginais como Geddel Vieira Lima, acusados como Eliseu Padilha, e deputados, senadores e ministros com lastros semelhantes na polícia e na Justiça?

É difícil pensar um país assim, capaz de contradição tão corrosiva.

Mas esse país é o da contradição em que militares americanófilos e a classe dominante deram um golpe em nome da democracia e por 21 anos aprisionaram a nação na ditadura. Muitos dos artífices dessa contradição ali completavam uma outra, de que foram parte quando em 1945 derrubaram o Getúlio para o qual deram um golpe e impuseram uma ditadura.

Convertidos à democracia, como diziam, em sua pequena convivência com oficiais americanos na Itália da Segunda Guerra, os derrubadores de Getúlio ajudaram a entrega do poder, por via de “eleição democrática”, ao general que sustentou a ditadura até a queda. A vasta fraude que contribuiu para o resultado eleitoral, movida pelos “coronéis” do interior, foi silenciada a pretexto de não se desmoralizar a primeira eleição da “democracia”.

Contradição em cima de contradição. O normal no país em que os primeiros bafejos de democracia vieram de uma ditadura, com a legislação social de Getúlio –inclusive as Leis Trabalhistas agora estupradas.

É difícil desenvolver a compreensão desse Brasil, tão inculto, tão controvertido, tão amalucado. Esse Brasil exultante com as ações contra a corrupção e indiferente à ocupação de sua Presidência por uma declarada quadrilha de corruptos.

O Brasil é você. O Brasil somos nós.

Conduções coercitivas: precisamos de um habeas corpus preventivo? Por Lenio Luiz Streck

Conduções coercitivas: precisamos de um habeas corpus preventivo? 11 de dezembro de 2017 – Por Lenio Luiz Streck

Atenção, faço um artigo, hoje, diferente. Dirigido à presidente do Supremo Tribunal Federal. As circunstâncias da banalização das conduções coercitivas exigem um tipo de mais duro de manifestação. Aqui vai. Como se fosse um Habeas Corpus. Preventivo. Para todo o povo brasileiro!

LENIO LUIZ STRECK, brasileiro, casado, ex-procurador de Justiça por 28 anos, advogado parecerista e professor, vem, à presença de Vossa Excelência, Senhora Presidente, com base no artigo 5º, inciso LXVIII da Constituição Federal, e os artigos 654, § 1º, alínea “b” e 660, § 4º, do Código de Processo Penal, impetrar Ordem de HABEAS CORPUS PREVENTIVO em favor de toda a população brasileira, incluídos os reitores das Universidades Públicas — presentes e futuros — e os juízes e delegados e membros do Ministério Público Federal que porventura possam constar como futuras vítimas (afinal, pau que bate em Chico pode bater em Francisco) para impedir qualquer tipo de condução coercitiva que seja feita à revelia da Constituição Federal e do velho Código de Processo Penal,em vigência desde a ditadura Vargas, pelo que expõe os seguintes argumentos de fato e de Direito (embora não acredite que haja qualquer cisão entre questões de fato e questões de Direito):

  1. Nunca é demais lembrar que a Constituição Federal garante o direito de ir e vir, que somente pode ser atacado por ordem judicial legal e legítima, e o CPP — ínsito, em plena vigência — deixa claro, letra por letra, vírgula por vírgula, em seu artigo 218, que a testemunha regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado, poderá ser conduzida coercitivamente. Veja, senhora presidente do Sodalício Maior, que parece não haver maiores dificuldades para entendermos que só-pode-conduzir-testemunha-se-regularmente-citada.
  2. Já o artigo 260 diz que o acusado somente pode ser conduzido se não atender à intimação para interrogatório. Vou escrever de novo e peço desculpas por isso: se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. Bingo. Tertium non datur. Excelência: Não consigo ler algo diferente do que está escrito: a) só poderá ser conduzida a testemunha regularmente intimada e que não tenha motivo justificado; b) o acusado somente pode ser conduzido se não atender à intimação para interrogatório.

  3. Para não sofrer as críticas por “complicar” o direito, deixo de aplicar os modalizadores deônticos de Von Wright para deixar mais lógica a conclusão de vedação de condução sem intimação prévia (se é proibido conduzir, então é obrigatório não conduzir e é permitido não conduzir — Vp = ONp = PNp, sendo V = proibido (verboten, em alemão); O = obrigatório; P = permitido). Não há quarta hipótese, aqui. Só para referir. Não preciso de ponderação ou de proporcionalidade.

  4. Textos jurídicos que restringem liberdades devem ser lidos sem analogia e sem ampliações. Leiamos o que está escrito, sem colocar adjetivos e elementos de analogia. Aliás, se o CPP é anterior à Constituição Fedearal, mesmo que ele autorizasse explicitamente, teria que ser filtrado hermeneuticamente. Um banho de imersão constitucional resolveria qualquer componente autoritário. Mas nem é necessário. O CPP já diz o suficiente. A lei exige, nas duas hipóteses, intimação prévia. Então, como diz Gadamer, wer einen Text verstehen will, ist vielmeher bereit, sich von im etwas zu sagen lassen (quem quer compreender um texto, deve deixar que o texto lhe diga algo). Não emudeçamos o texto.

  5. Pois as conduções coercitivas, senhora ministra, viraram rotina. Moda. Banalizaram. Agora fizeram isso com o reitor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Já tinham feito com o ex-presidente Lula. Fizeram com um jornalista, e depois… pediram desculpa. Todos os dias fazem isso com a patuleia deste imenso país.

  6. Para não dizer que é implicância minha, trago à colação o texto da desembargadora federal Simone Schreiber, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Ela diz que a condução é de tamanha violência que sequer pode ser corrigida por habeas corpus, dada a sua instantaneidade (ver aqui). Além disso, a desembargadora denuncia a espetacularização das conduções. Entre tantas frases incisivas ditas pela magistrada, destaco esta: “O mais impressionante é que pessoas que se tornaram juízes já sob a égide da Constituição de 1988 não aplicam normas de garantia previstas no Código de Processo Penal da ditadura Vargas”! Permito-me colocar a palavra “bingo”, Excelência. Sei que, em uma petição, não se deve fazer esse tipo de licença poética, mas é que ela mexeu na ferida narcísica do PJ. E qual é? Sequer gostamos de cumprir a velha legalidade do velho CPP. E sabe por quê, Excelência? Porque parece que parcela de juízes, delegados e membros do MP acham que a Constituição errou ao dar tantas garantias. E até mesmo o velho CPP era muito liberal. Solução? Simples: eles mesmos corrigem os textos jurídicos moralmente. Bingo de novo (e novo pedido de desculpas).

  7. Portanto, face a esse estado de coisas, em que qualquer cidadão, rico ou pobre, pode ser conduzido coercitivamente a qualquer momento, de forma ilegal e à revelia de tudo o que se tem de mais sagrado na Constituição Federal, no Código de Processo Penal e nas convenções internacionais, requeiro de Vossa Excelência que defira a ORDEM DE HABEAS CORPUS PREVENTIVO extensivo a toda a população. Pela ordem de HC preventivo, deve ser lido que uma condução coercitiva só é condução coercitiva se houve prévia notificação da testemunha ou do indiciado. Caso contrário, é abuso de poder, que Vossa Excelência já pode deixar explicitada a essa violação, facilitando o trabalho do Ministério Público que, republicanamente, processará os abusadores.

  8. Homenageando os pais do remédio heroico, que, lá no início do século XIII, já se preocupavam com o ir e vir e com prisões e conduções arbitrárias, e saudando os advogados brasileiros que lutam pelas garantias constitucionais e pelo cumprimento das regras do Estado Democrático de Direito,

Pede e espera deferimento.

Como pedido alterativo, se Vossa Excelência achar por bem indeferir a ordem, então inste o STF a fazer uma súmula vinculante (SV), cujo teor copie exatamente os dois dispositivos do CPP já citados (apenas isso). Assim, pelo menos teremos à nossa disposição o recurso da Reclamação. Já que a lei não é cumprida, se transformarmos a lei em súmula, teremos um recurso rápido, sem ter o perigo de sermos barrados pela Sumula 691 e outras jurisprudências defensivas.

Lenio Luiz Streck, jurista e professor – OAB-RS 14.439

Post scriptum: Atenção, já escrevi aqui que conduções coercitivas são inconstitucionais. Coloco isso aqui porque há pessoas que não leram meus textos anteriores!

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.

Revista Consultor Jurídico, 11 de dezembro de 2017.

A destruição da Universidade pública

Por Eduardo Costa Pinto

Professor e pesquisador da UFRJ

A Universidade pública (como instituição) entrou (de forma passiva) no jogo da guerra de todos contra todos que se transformou o Brasil. Entrou para ser destruída, assim como outras instituições estão sendo!

Além do ataque a questão do ensino público pela lógica liberal (que no caso brasileiro é tacanha e é utilizada de forma oportunista pelos nossos setores dominantes, com raríssimas exceções), a tentativa de destruição das universidades está ocorrendo como resultado das lutas fratricidas entre corporações, frações de classe, pequenos grupos e indivíduos.

Vou alertar novamente, não há uma agente coordenando tudo isso! Vivemos o nosso 18 Brumário tupiniquim em que determinados seguimentos (corporações) conseguem poder gerando instabilidade e destruição (de indivíduos e de instituições) para obter benefícios e ganhos econômicos (tentativa da PF de ficar fora da reforma da Previdência, lobbys dos mais diversos nos processos de privatizações, permanência no poder com malas de dinheiro e etc.).

Estamos caminhando para uma nova fase de instabilidade. A nossa questão maior hoje não é a corrupção (é claro que ela precisa ser combatida e os que realizaram delitos devem ser julgados dentro da ordem estabelecida sem as flexibilizações das regras em curso) como acha a maior parte da sociedade. Até parte das forças armadas entraram nesse jogo da instabilidade ao balançarem as armas (episódio recente da fala do General Mourão).

A nossa questão é reestabelecer o Estado de direito (as regras do jogo, os direitos individuais, etc.), pois estamos vivendo uma guerra entre gangues (de todos dos lados – políticos, corporações, empresários, lobbys estrangeiros)! Será que alguém ainda acha que estamos vivendo uma sociedade democrática em que os pesos e contrapesos estão funcionando?!

“O poder de balançar o barco (gerar instabilidade), que antes estava com a lava jato (em sua missão messiânica) e a Mídia (em sua busca por mais poder), agora é utilizado por outras corporações estatais, indivíduos e pequenos grupos, políticos e empresários para alcançar seus interesses, quer sejam eles para o “bem ou para o mal” (e o que isso possa significar!). Agora todos envolvidos acham que podem balançar o barco: juízes de primeira instância de todo o Brasil (efeito imitação do Moro); MP que atua desde clube de futebol até PGR no caso da delação do J&BS e de sua reviravolta; ministros do STF que realizam uma atuação política e falam antecipadamente de processo que vão julgar na imprensa; empresários como os donos da JB&S que tentaram se salvar jurídica e economicamente; o Temer e a cúpula do PMDB que se mantêm nos cargos de presidente e de ministros mesmo com todas as acusações contra os mesmos; PF com suas invasões nas Universidades Públicas. Isso elevou e eleva ainda mais a instabilidade institucional”
Como bem disse Carlos Frederico Rocha: “Aqui, então, são os nossos John Wayne. Até carregam pistola (na verdade, fuzil). E, por acreditarem que são movidos por puro espírito público, desobediências à letra da lei e violações de liberdades individuais serão pequenos desvios com o objetivo de atingir o bem maior. São messiânicos, nos termos de Eduardo Costa Pinto. Se algum indivíduo, por acaso, não for culpado, a devassa mesmo assim será justificada”.

Os direitos individuais estão em jogo em virtude da destruição institucional em cursos. As instituições brasileiras – regras do jogo em seu sentido liberal – não estão funcionando e ainda estão sendo destruídas a cada dia, pois as leis estão sendo interpretadas/flexibilizadas e utilizadas ou negadas como forma de obtenção de determinado interesses/poder de grupos, corporações estatais e empresários.
E o que a invasão da UFMG tem a ver com isso? Tudo! A atuação da PF foi claramente uma represaria a abertura de processo contra a delegada federal (defesa corporativa – como um dos nosso que tem a missão de salvar o país pode ser processado) que conduziu operações da PF na UFSC (que gerou toda a tragédia que conhecemos). Alguns pensaram agora isso vai parar. Não, não vai, pois no nosso estágio atual, mais instabilidade significa mais poder!
Além disso, essa operação conduzida pela PF (sem o aval do MPF) mostra que há fortes tensões entre a PF e o MPF em suas buscas corporativas para aumentar e manter o poder!

É preciso alertar que a origem dessa desestruturação está no mecanismo adotado pela Lava Jato em sua busca messiânica de acabar com a corrupção, a saber: vazamento/publicidade → instabilidade → deslegitimação política → legitimidade da operação junto à opinião pública (aumento do poder) → pressão sobre às instâncias superiores do judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), para que as mesmas não coibissem a flexibilização das regras adotadas pela operação
O motivo do avanço desse mecanismo (flexibilização das regras/leis), além do controle da própria lava jato e da grande imprensa, é a legitimidade que esse processo gera na opinião pública, pois isso possibilitou que Cabral, Picciani, Cunha, entre outros, fossem para cadeia. Queremos o linchamento público, independente das leis. No entanto, é esse mesmo mecanismo que agora é usado para desmoralizar reitores e, consequentemente, as Universidade Públicas. Mecanismo este que vem sendo cada vez mais utilizado para reforçar fins particularistas e corporativos. Por que será que a PF e o MPF não investigam a questão da Globo e a compra dos direitos de transmissão dos jogos? Porque eles precisão da opinião pública do seu lado (da Globo transmitindo suas operações midiática para reforçar os seus poderes).
Não, os delegados da PF não estão articulados como os nossos liberais de conveniência (que acham que a Universidade Pública é um desperdício do dinheiro dos contribuintes). O jogo é bem mais rasteiro do que estamos imaginando. O que há é uma disputa corporativa por poder e benefícios e por busca de legitimidade junto à sociedade.

Desmoralizar as universidades públicas significa destruir uma das poucas frentes (instituições) que restou e que ainda pode fazer alguns contrapontos (com credibilidade) críticos a respeito dessa sanha do linchamento público, da flexibilização das regras, da quebra dos direitos individuais e sociais, etc.
É evidente que o resultado disso (se a escalada continuar) será a privatização ou desqualificação total das Universidades Públicas junto à população!
O 18 Brumário tupiniquim continua!

Oxalá nos ajude e tenhamos forças para resistir! Como disse o André Singer: É hora de defender a universidade!

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/2017/12/1942007-e-hora-de-defender-a-universidade.shtml

Barroso e a pretensão de “Refundar o Brasil”, por Fernando Brito

Eu estava escrevendo um pequeno texto sobre a participação espúria de juízes, ministros do Supremo e procuradores no debate político onde, sem um voto sequer, metem o bedelho. Estava começando o parágrafo que trata dos ministros do Supremo que “sentam” em processos em que foram derrotados, quando tropecei com um texto do mestre Fernando Brito que fala de tudo e mais.

Leiam abaixo.

Paulo Martins

“BARROSO E A PRETENSÃO DE “REFUNDAR O BRASIL”
Por Fernando Brito · 08/12/2017
Sinto muito por ocupar minutos dos caros leitores e leitoras com uma insignificância arrogante como o senhor Luiz Roberto Barroso. Mas já uma declaração dele que, pelo vazio, permite uma reflexão sobre o significado real de “palavras bonitas” como as que ele usa.
Hoje, na Folha, registra-se que ele disse durante palestra na Universidade Stanford, nos EUA, que as mudanças iniciadas pelas grandes operações anticorrupção representam uma “refundação do país que não tem volta”.
Só a idiotia dos pretensiosos, que acham que os tribunais (claro, onde estão) podem ser o motor das transformações históricas, seriam capazes de dizer tamanha asneira.
A menos, claro, que possamos considerar Michel Temer, Moreira Franco, Eliseu Padilha e quejandos como “pais refundadores” de uma nação.
“Refundação”, aliás, é dos termos mais utilizado pelos sujeitos que “se acham”, apesar do primarismo de suas ideias e de seu apego hipócrita a formulações “sonháticas”, que trocam a transformação real pela cegueira aos fatos.
Nem mesmo um flanante como Barroso seria capaz de dizer que, no Brasil de hoje, escoe-se menos dinheiro da população para ganhos privados. Pode ser, até – e olhe lá, porque não há sinal disso – que políticos desviem menos para si, mas o que dizer dos sucessivos perdões e anistias, da política econômica e, até, dos privilégios corporativos, inclusive os dos juízes? Mas a máquina de drenar dinheiro do povo para uma ínfima elite financeiro-empresarial, que entrega perto de 55% da renda nacional para apenas 10% de seus cidadãos, está longe de qualquer ideia de justiça, tanto quanto está a corrupção.
Mais idiota ainda é achar que um país se “refunde”, deixando para trás séculos de história – e tudo o que de bom ou mau nela aconteceu – que formou sua própria natureza, sua identidade cultural, que, afinal, formou a própria Nação. É ideia própria dos que se acham ungidos. “salvadores”, idêntica à dos que vêem um regime militar como solução para o país.
Afinal, qual a diferença entre entregar todo poder a uma camada de “puros e honestos”, com poder de arrastar ao Dops, digo, à Polícia Federal, ou de prender, quantos dias queira, “para averiguação” qualquer pessoa sobre a qual as “convicções” indiquem ser “corrupto”? Qual a diferença entre “os militares vão dar um jeito na bandalheira” e “os juízes vão dar um jeito na bandalheira”?
Barroso admite que “o retrato é devastador”. Devastador para quem? Um país em crise, inerme, sem capacidade de abrir caminhos para o desenvolvimento, a soberania, o progresso é letal para o povo pobre, não para as elites que seguem se fartando dele. O Dr. Barroso pode estar constrangido por ver deputados e senadores acusados, mas o povo está muito mais por ter perdido centenas de milhares de empregos, seu sustento e de suas famílias.
Até do ponto de vista acadêmico, Barroso é primário e despreza os exemplos que estão à vista de todos, sobretudo o da Itália onde o piccolo duce Sérgio Moro copia, com imenso descaramento. Ele certamente leu e desprezou o que os intelectuais italianos, de forma quase unânime, têm como avaliação daquele processo, como expôs, à BBC, o cientista político Alberto Vannucci, um dos maiores estudiosos da Operação “Mãos Limpas”:
Em termos gerais, inquéritos judiciais, mesmo quando bem-sucedidos, podem colocar na cadeia alguns políticos, burocratas e empresários corruptos, mas não conseguem acabar com as causas enraizadas da corrupção.
A falta de transparência e responsabilidade em política e na burocracia estatal, o controle social e político fraco sobre o exercício de poder, mecanismos de seleção da elite política errados e imorais: esses e outros fatores de corrupção não podem ser erradicados por juízes.
E, pior, na Itália, agora, os políticos corruptos, servidores públicos e empresários aprenderam a lição da Mãos Limpas e não estão cometendo os mesmos erros daqueles que foram presos. Nos últimos anos, eles desenvolveram técnicas mais sofisticadas para praticar corrupção com mais chances de ficarem impunes, como dissimular pagamentos de propinas, ou multiplicar conflitos de interesses, como fez (o ex-premiê) Berlusconi (ao criar tensões com o Judiciário).
No início da “Mãos Limpas”, a economia italiana rivalizava com a francesa, em matéria de PIB. Depois dela, reduziu-se a 70% da de sua vizinha.
Os punhos de renda do Dr. Barroso não se importam que se esteja gestando aqui um estado policial, que já levou à morte um colega seu, professor de Direito, reitor da Universidade de Santa Catarina. Não se importa que se esteja caminhando para uma eleição onde a vontade popular poderá ser castrada. Não se importa que este país corra o risco de ser regido por um Jair Bolsonaro ou um arrivista como Luciano Huck.
Tudo o que lhe importa é seu brilho fátuo, é seu juízo primário, a sua convicção que despreza os fatos.
Luiz, como Louis-Dieudonné (“Luís, o presente de Deus”), o Rei Sol da França, é o rei-sol do Judiciário,
Seu “colega” francês é famoso pela frase “d’après nous, le déluge” (“depois de nós, o dilúvio”). de fato, ele veio em poucos anos, e de forma cruenta: a Revolução Francesa, na qual a “refundação” da França lançou ao lixo da história os seus doutos nobres.”

A decisão de Lewandowski acabará com a farra da “delação à brasileira”?, por Aura Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa

LIMITE PENAL
A decisão de Lewandowski acabará com a farra da “delação à brasileira”?
8 de dezembro de 2017, 8h00
Por Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa

Na semana passada, analisamos o problema da quebra das expectativas legitimamente criadas em acordos já firmados, frente a recente decisão do ministro Ricardo Lewandowski na PET 7.265, que não homologou o acordo de delação premiada de Renato Rodrigues Barbosa por conter cláusulas ilegais.

Sustentamos que os acordos já firmados precisam ser preservados, pois efetivados à luz de uma linha até então adotada pelo STF de admitir acordo sobre penas e regimes fora dos estritos limites do Código Penal e da LEP. Mas, ao mesmo tempo, entendemos que existiram excessos negociais que agora a decisão do ministro Lewandowski parece querer trazer de volta para o eixo da legalidade.

A delação premiada é, indiscutivelmente, um instituto importante, de grande utilidade como meio de obtenção de provas e cuja tendência é irreversível. Inobstante, é preciso compreender que criticar a “delação à brasileira” não significa, obviamente, pactuar com a mediocridade, como pensam alguns reducionistas de plantão. Todo o oposto: se querem salvar a delação das práticas abusivas, é preciso retomar o eixo da legalidade.

Nessa perspectiva se situa a importante decisão do ministro Lewandowski, com a qual estamos inteiramente de acordo.

Após quatro anos de vigência da Lei 12.850/2013, é preciso fazer uma avaliação da sua eficácia, impacto e, principalmente, das distorções práticas. A primeira conclusão é que a lei sofre de uma insuficiência normativa manifesta, por ser porosa e genérica, abrindo perigosos espaços impróprios para a discricionariedade negocial do ministério público (com a conivência do juiz que homologa).

Infelizmente, o STF acabou avalizando, até agora, evidentes excessos negociais por parte do Ministério Público, dando sinal verde também para que se avolumem os acordos ilegais em primeiro grau, até porque aqui existe o pacto da mediocridade/conveniência: faz-se um acordo com cláusulas ilegais, mas ninguém recorre. O MPF não recorre porque não tem interesse algum em ser controlado; a defesa não recorre porque ou está diante de uma ilegalidade conveniente ou porque proibida (mais uma cláusula ilegal recorrente: proibição de utilização de recurso defensivo contra o acordo); e o juiz assume uma postura burocrática homologando e não discutindo nada.

A decisão do ministro Lewandowski foi no ponto nevrálgico da questão: nenhum acordo entre as partes está acima da lei (ou das leis penais, processuais penais, de execução penal e, obviamente, a Constituição).

Inicia o ministro explicando o básico: nosso sistema, de matriz romano-germânica não comporta e não recepciona esse poder negocial e esse super-Ministério Público do modelo anglo-saxão. Nosso modelo não recepciona essa ampla discricionariedade por parte do órgão acusador. São duas culturas legais diversas. Isso é mais um recado para os que falam de Direito Comparado sem saber os limites metodológicos para se fazer esse diálogo entre fontes diversas. A moda agora é essa: quando convém, chama o modelo americano, quando não convém, luta pela matriz inquisitória, de busca da verdade real do modelo romano-germânico. Segue ao gosto do acusador…

Mas segue o ministro Lewandowski: não é licito as partes contratantes substituírem o Poder Judiciário, fixando penas de forma antecipada. Também não pode o MPF substituir o Poder Judiciário e antecipadamente prever o perdão de crimes do colaborador.

O que a lei permite é que o juiz fixe a pena e conceda o perdão pedido no acordo ou não. Ou, ainda, reduzir a pena em até 2/3 ou substitui-la.

Simples: esse é o limite da lei. O resto é invencionice do MPF e do juiz que homologa esse tipo de acordo, absolutamente ilegal.

Quanto ao regime de cumprimento da pena: de onde saíram esses regimes semiaberto diferenciado, aberto diferenciado, que constam em tantos acordos feitos em Curitiba? São diferenciados do que está na lei! São ilegais, mais uma invencionice sem base legal.

E foi isso que o ministro Lewandowski afirmou: “O mesmo se diga em relação ao regime de cumprimento da pena, o qual deve ser estabelecido pelo magistrado competente, nos termos do art. 33 e seguintes do CP, como também no art. 387 do CPP, os quais configuram normas de caráter cogente, que não admitem estipulação em contrário por obra da vontade das partes do acordo de colaboração”. Perfeito. Ou “bingo”, como diria Lenio Streck.

O óbvio precisa ser dito (e felizmente o foi): é absolutamente ilegal o MPF (com a conivência do juiz homologador) criar regimes de cumprimento da pena que não estão previstos em lei. Sem falar nos regimes “híbridos”, “sincréticos”… Nesse acordo da PET 7.265, foi estabelecido o regime fechado, mas permitido recolhimento domiciliar noturno, a prestação de serviços a comunidade e até autorização para viagens internacionais. Ora, mas o regime é fechado, e todos sabemos que essas previsões são absolutamente incompatíveis com o regime fechado.

E por isso segue o ministro Lewandowski: “Validar tal aspecto do acordo corresponderia a permitir ao Ministério Público atuar como legislador” (bingo II). E prossegue explicando que isso seria permitir que o órgão acusador pudesse estabelecer, antecipadamente, ao acusado, sanções criminais não previstas em nosso ordenamento jurídico, ademais de caráter híbrido.

Um acordo jamais poderia sobrepor-se ao que estabelecem a Constituição da República e as leis do país, adverte Lewandowski — falando o óbvio, mas até o óbvio precisa ser dito nesse terreno —, cuja interpretação e aplicação, convém lembrar, configura atribuição privativa dos magistrados, integrantes do Judiciário, órgão que, ao lado do Executivo e do Legislativo, é um dos Poderes do Estado. Também a questão dos valores e da multa: incumbe ao MPF sugerir valores, mas compete ao juiz definir no final, na sentença. Não no acordo fixado antes mesmo de ter processo.

Enfim, a decisão do ministro Lewandowski é um manifesto pela legalidade, um puxão de orelhas na “delação à brasileira”, à margem da lei, à la carte, como eles querem, para quem eles querem e do jeito que eles querem…

E isso nos conduz a uma reflexão importante? Como fica o princípio da legalidade?

Os juristas portugueses J.J. Gomes Canotilho e Nuno Brandão[1], analisando um pedido de cooperação feito pela Justiça brasileira à Portugal, em que se debruçaram sobre dois conhecidos acordos de delação premiada (Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef), também fizeram esse questionamento. E chegaram a uma reflexão perturbadora: que os compromissos (acordos de delação) “padecem de tantas e tão ostensivas ilegalidades e inconstitucionalidades que de forma alguma pode admitir-se o uso e a valoração de meios de prova através deles conseguidos”.

E prosseguem: “é terminantemente proibida a promessa e/ou a concessão de vantagens desprovidas de expressa base legal” (como os regimes de cumprimento acima mencionados etc.), ressaltaram os professores. Assim, eles declararam que não é possível reduzir uma pena em mais de dois terços ou conceder perdão judicial a um crime não mencionado pela lei das organizações criminosas, pois “em tais casos, o juiz substituir-se-ia ao legislador numa tão gritante quanto constitucionalmente intolerável violação de princípios fundamentais do (e para o) estado de direito como são os da separação de poderes, da legalidade criminal, da reserva de lei e da igualdade na aplicação da lei”.

É preciso refletir sobre isso se queremos salvar o instituto da delação premiada, a legalidade e a democracia.

Punir é necessário, mas não a qualquer custo. Não violando a legalidade e a Constituição.

O MPF pode muito, mas não pode tudo. As partes podem fazer acordos, mas nos limites da lei. É disso que se trata[2].


P.S. Um abraço a todos que são metidos em processo penal no Dia da Justiça.

[1] “Colaboração premiada e auxilio judiciário em matéria penal: a ordem pública como obstáculo à cooperação com a operação Lava Jato.” In: Revista de Legislação e Jurisprudência. Ano 146, n. 4000, setembro/outubro de 2016, p. 24-25.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Para entender a delação premiada pela Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório Modara, 2018.

Aury Lopes Jr. é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Revista Consultor Jurídico, 8 de dezembro de 2017, 8h00

Em busca de Justiça

Texto de 2012, mas atual. Infelizmente.

Do mural de Jaqueline Quiroga

“Em busca de Justiça – Aldir Blanc

Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel.

Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”;

Para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas;

Para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora;

Para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”;

Para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides;

Para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados;

Para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”;

Para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”;

Para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar;

Para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal;

Para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;

Para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixada no exterior;

Para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno;

Para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis;

Para que inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento;

Para que nunca mais na vida de uma jovem idealista -o queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a expressão da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira – seja ceifada por encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.”

Aldir Blanc é compositor e escritor.

Artigo publicado em 3 de junho de 2012.

Provocação da Polícia Federal: “que eles queiram, já é grave. Mas o pior ainda é que eles possam”, por Tatiana Roque

Sobre a condução coercitiva do reitor e vice da UFMG:

  1. É uma afronta à universidade e à sua autonomia
  2. É um ataque à memória da anistia
  3. É um requinte de crueldade nomear a operação de “esperança equilibrista”

Ou seja, uma operação da PF que resolve fazer uma provocação explícita e direcionada. Que eles queiram, já é grave. Mas o pior ainda é que eles possam.

Invasão da UFMG pela Federal: fascismo e deboche

Quando o poder perde a noção dos limites que deve respeitar, resolve vingar-se e, além disso, resolve debochar dos nacionais a quem devia, por dever constitucional, proteger, está quase tudo perdido. Resta-nos a denúncia, o protesto, a indignação.

Você corta um verso, eu escrevo outro.

Você me prende vivo, eu escapo morto.

De repente olha eu de novo,

Perturbando a paz, exigindo o troco.

…..

Quando o muro separa, uma ponte une

Se a vingança encara, o remorso pune.

…..

E se a força é tua, ela um dia é nossa”.

Compartilho, a seguir, texto de Luiz Carlos Oliveira e Silva e de Leonardo Avritzer sobre este sombrio momento que vivemos. Compartilho também links para textos e notas com diversos posicionamentos contra a invasão da Universidade federal de Minas Gerais e contra as arbitrariedades praticadas pela Polícia Federal.

Paulo Martins

Texto de Luiz Carlos Oliveira e Silva

DEBOCHE, ESTADO POLICIAL E ANOMIA

1. Venho repetindo aqui que estamos caminhando em direção a uma situação de anomia, de falência múltipla dos órgãos da nossa institucionalidade.

2. No vazio crescente de autoridade política, uma articulação de setores da Polícia Federal com juízes e procuradores ávidos por protagonismo histérico e messiânico tem adotado práticas típicas de um estado policial.

3. Os criminosos incidentes que levaram ao suicídio o reitor da UFSC foram apenas o mais visível exemplo de práticas típicas de um estado policial. Mais visível por ter implicado morte.

4. Agora, não satisfeitos com as práticas típicas de um estado policial, os energúmenos acrescentaram à violência o deboche.

5. Batizaram a operação de invasão da UFMG de “Esperança equilibrista”. Isto porque a música de João Bosco e Aldir Blanc tinha fornecido um dos motes do protesto contra os crimes que o estado policial cometeu contra o reitor da UFSC: “uma dor assim pungente não há de ser inutilmente.”

6. Um verdadeiro deboche! Ao debochar desta maneira do protesto e da dor de todos os que sentiram a morte do prof. Luiz Carlos Cancelier, os energúmenos, cada vez mais à vontade, politizam, deliberadamente, ainda mais a sua ação.

7. Isto tudo tem um sentido muito claro: o estado policial está se apresentando como alternativa à anomia que se aproxima.

8. O que chama mais a atenção no deboche, não é o deboche em si, mas a desenvoltura, o “à vontade”, a ausência de pudor. Tudo isto já é, a um só tempo, sinal de anomia e de um projeto político em curso: a instauração de um estado policial entre nós.

9. A conjuntura que se abriu com o impeachmente, talvez venha a ser uma das mais sangrentas da nossa história.

10. Está chegando a hora de a nossa gente bronzeada mostrar o seu valor…

Nota a respeito das conduções coercitivas realizadas na UFMG
Publicada em quarta-feira, 6 de Dezembro de 2017 – 17:10
A diretoria da ABCP vem manifestar a sua profunda preocupação com os fatos ocorridos hoje, dia 6, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), quando a Polícia Federal conduziu coercitivamente, entre outras pessoas, o professor Jaime Arturo Ramirez e a professora Sandra Goulart Almeida, respectivamente, Reitor e futura Reitora eleita daquela Universidade. Assim como já ocorreu em outras circunstâncias, tais operações têm sido feitas de forma espetacular e midiática. A diretoria da ABCP defende que qualquer suspeita deve ser investigada, mas demanda, em nome do Estado Democrático de Direito, que nenhum processo de investigação, por mais justificável que seja, ocorra em detrimento do principio basilar da presunção de inocência.

Do jornalGGN:

Relato do professor Alexandre Neves, da UFMG.

A Polícia federal invadiu a casa do reitor Jaime Artur Ramirez, que estava saindo do banho, de toalha. Ele pediu alguns minutos para se trocar. Resposta da Policia Federal:

  • Você não tem mais direito à privacidade, não, rapaz.

​É o Brasil de Luis Roberto Barroso e da Lava Jato.

Comissão da Verdade de MG: Operação “Esperança Equilibrista” é pura violência e obscurantismo estatal
Escrito por Miguel do Rosário, Postado em Redação
Confira a íntegra da nota divulgada pela Covemg:

A Comissão da Verdade em Minas Gerais (COVEMG) recebeu com surpresa e indignação a notícia da realização da operação da Polícia Federal, ironicamente, intitulada “Esperança Equilibrista”. Há um evidente ataque de setores conservadores e autoritários contra a Universidade brasileira e tudo o que essas instituições representam para o Brasil.

O ocorrido com o reitor da UFSC, a absurda nota de instituição financeira do exterior a criminalizar o ensino superior público, as inúmeras investidas contra os setores profissionais, artísticos e culturais que lutam contra o arbítrio e pela democracia real são claros sinais do estado de exceção em curso no país.

A construção do Memorial da Anistia em Belo Horizonte é um complexo projeto arquitetônico e de engenharia que envolve a reforma de prédios antigos e a construção de novos equipamentos em terreno com problemas estruturais. Portanto, o devido acompanhamento dessa obra, paralisada a fórceps pelo atual governo federal, não deveria ser objeto de ação policial e sim, de adequações financeiras, técnicas e administrativas.

Os acervos memorialístico e documental que compõem o Memorial, de vital importância para a história, a memória e a justiça em nosso país, demandam uma construção cuidadosa e diversificada. Ao criminalizar uma das maiores Universidades do país abre-se a porta para a criminalização de todo um segmento que não se alinha aos setores autoritários. Nós da Covemg conhecemos bem essa metodologia.

Manifestamos nossa solidariedade aos dirigentes e ex-dirigentes da UFMG constrangidos nessa operação. Afinal, tendo residência fixa e sendo cidadãos do mais alto conceito, a condução coercitiva se transforma numa brutal violência, a evidenciar o obscurantismo que envolve ações da justiça e da polícia nesse momento histórico.

Estendemos à toda a comunidade da UFMG nossa solidariedade e apoio.

Belo Horizonte, 06 de dezembro de 2017.

COMISSAO DA VERDADE EM MINAS GERAIS

Carlos Melgaço Valadares
Emely Vieira Salazar
Jurandir Persichini Cunha
Maria Celina Pinto Albano
Maria Ceres Pimenta Spínola Castro
Paulo Afonso Moreira
Robson Sávio Reis Souza (coord.)

Reforma trabalhista – contrato intermitente é inconstitucional, Por Lenio Luiz Streck

OPINIÃO
Reforma trabalhista – contrato intermitente é inconstitucional

4 de dezembro de 2017, 10h05
Por Lenio Luiz Streck

Em recente coluna, listei 21 razões de por que estamos em um estado de exceção com a suspensão da força normativa da Constituição de 1988. Vivemos uma espécie de atrofia constitucional autodestrutiva. O que tenho percebido nos estudos acerca da reforma trabalhista é que a mesma não reconstrói, mas simplesmente destrói as bases estruturais de sustentação do trabalho no Brasil. Essas bases estão assentadas na Constituição de 1988.

Quem luta esta luta a partir do Direito, como eu, tem como premissa a tese de que países de modernidade tardia como o Brasil não se afirmarão historicamente apenas nas estritas condições ideais de formação do consenso público. Noutras palavras, o consenso reformador trabalhista deve ser barrado pela verdade constitucional. Por tudo isso, não deixo de considerar cientificamente correto aqueles que colocam aspas (“reforma” trabalhista) ou aqueloutros que enfatizam a destruição promovida (deforma trabalhista). Há embasamento científico, e o Direito deve se afirmar cientificamente, para tais posturas, não se tratando de dissimulação ideológica. Pelo contrário, ideológicos dissimulados são aqueles que procuram desacreditar tal abordagem ao lhe atribuir tal pecha.

Confirmo tal entendimento, de forma célere e certeira, com os textos das colunas que tenho escrito como saga pela aplicação da jurisdição constitucional na reforma trabalhista (Como usar a jurisdição constitucional na reforma trabalhista e E o filósofo perguntou: por que americanos não vêm curtir nossa CLT?). Além disso, fui obrigado a escrever um texto avulso acerca da malfadada decisão que fulminou trabalhador rural; ali invoquei os juristas deste Brasil a não traírem o Direito, como no grande exemplo do juiz do trabalho e doutrinador alemão Hans Karl Nipperdey (Os juristas que não traíram o direito — ainda a reforma trabalhista). O mais incompreensível nisso tudo são aqueles que se dizem “técnicos” e estão simplesmente a parafrasear as “tecnicidades” intrínsecas dos dispositivos advindos com nova lei e sua medida provisória, como se a jurisdição constitucional não fosse a “técnica” por excelência que justifica o caráter científico do Direito[1].

Pois bem, por ocasião da XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, onde tive o privilégio de palestrar sobre Direito de Defesa, Exposição Pública do Suspeito e Publicidade Opressiva, estava ouvindo um programa de rádio (Rede Brasil Atual de São Paulo – FM 98,9) e uma das interessantes abordagens jornalísticas eram perguntas nas ruas sobre temas da reforma trabalhista. O tema da vez era o contrato intermitente. A jornalista indagou o que o transeunte pensava a respeito. Categórico, o rapaz disse que era bom porque poderia diferenciar os “bons” dos “maus” trabalhadores e daria mais dinheiro para aqueles que se dedicassem mais. A jornalista então lhe provocou a reflexão ao indagar o que achava da possibilidade de um trabalhador intermitente auferir menos que salário mínimo e ainda “poder” arcar com as contribuições previdenciárias sobre a diferença não recebida para atingir o salário mínimo como base de cálculo do salário-de-contribuição. O entrevistado respondeu algo como ônus e bônus, que esse seria um ponto negativo, mas que “faz parte”.

Hum hum! Liberal-individualismo na veia hein! Os meios de comunicação de massa, não que esse seja o caso da mencionada rádio, conseguem criar o senso comum do tal “mérito individual”, do tal “empreendedorismo”. Volta e meia surgem aqueles exemplos do cara que se superou e construiu uma riqueza por “méritos próprios”, como flor de lótus. Também em São Paulo, vários dos canais religiosos encampam a teologia da prosperidade: seja fiel e prospere no mercado… E por aí vai! Obviamente que é de extrema importância criar um ambiente favorável ao empreender e ter sua individualidade respeitada e fomentada. O “detalhe” é que a Constituição empreende uma perspectiva humanista, solidária e pluralista. Os “vagabundos” também são titulares do direito a uma vida digna, queiramos ou não. Não há espaço para repristinar a contravenção penal de vadiagem ou mendicância (o artigo. 60 da Lei das Contravenções Penais foi revogado pela Lei 11.983/09).[2]

Sigo. No tópico propriamente dito do contrato intermitente, é preciso (necessário e certeiro) ter em mente que não adianta ficarmos podando galhos de uma árvore cuja raiz está podre. Para ser mais claro, é flagrante a inconstitucionalidade do núcleo desse instituto de contrato intermitente, sendo ineficiente conjecturar cada uma de suas especificidades. E somente reforçou essa perspectiva o advento das mudanças na Lei 13.467/17 pela Medida Provisória 808/17. Nem há necessidade de abordarmos aqui o insucesso de políticas econômicas de precarização trabalhista, como nos casos do México ou da Espanha. Note-se que isso é economia comparada e aqui os marcos de construção interpretativa são jurídicos, delineados pelo Direito vigente no país, a começar pela Constituição de 1988.

A Constituição da República brasileira tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre iniciativa (artigo 1º, incisos II, III e IV). O núcleo do fundamento inscrito no referido inciso IV são os valores sociais, e não propriamente o trabalho e a livre iniciativa. A importância disso é superar o vislumbre dicotômico entre essas duas realidades. Desse modo, ambos se concretizam com fidelidade à Constituição de 1988 quando embebidos da e na valorização social, ou seja, na realização do bem-estar social, do ideal de vida boa. Mas o que significa valorizar-se socialmente? Significa realizar a dignidade da pessoa humana nas esferas do trabalho e da livre iniciativa, quando ambos se inter-relacionarem em uma circularidade virtuosa. E os caminhos estratégicos para tanto foram circunscritos na Constituição de 1988.

Com efeito, há inicialmente uma ênfase constitucional na perspectiva subjetiva dos trabalhadores, quando a Constituição de 1988 arrola os direitos fundamentais de sua titularidade no artigo 7º, cujo caput instaura o princípio proteção suficiente na perspectiva do trabalho humano, uma proteção nem excessiva nem deficiente, com direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores. Também importante é a abordagem constitucional transformativa na ordem econômica, cuja finalidade é assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social com a busca do pleno emprego (artigo 170), bem como na ordem social, cuja base é o primado do trabalho com objetivo de bem-estar social e justiça social (artigo 193).

Esses elementos não são mera retórica constitucional. Na verdade, trata-se de dispositivos vinculantes da atuação pública tanto quanto da atuação privada na sociedade brasileira pós-1988, a começar pelo Legislativo e pelo Executivo. Sem mais rodeios, não passa por uma filtragem constitucional a intenção reformista legislada de promover o contrato intermitente pela Lei 13.467/17 com as pinceladas da Medida Provisória 880/17 (e aqui abstraio da inconstitucionalidade ab ovo da referida Medida Provisória). Fica nítido na reforma que o contrato de trabalho intermitente foi concebido para a precarização dos meios de contratação de trabalhadores com intento estatístico de propagandear falsamente um incremento do emprego no Brasil. E aqui cabe invocar a vedação ao retrocesso social, na esteira do que já referi na coluna E o filósofo perguntou: por que americanos não vêm curtir nossa CLT?.

De uma vez por todas, saibam os austeros reformistas trabalhistas que emprego precário não é verdadeiro emprego nem se computa (ou nem deveria se computar…) como plenitude para as estatísticas de plantão. A busca do pleno emprego consagrada na Constituição de 1988 não se limita a uma abordagem quantitativa da geração de empregos, mas também abrange uma dimensão qualitativa do emprego gerado. Para ser emprego, deve ele ser pleno tal como instaurado na Constituição de 1988. A plenitude do emprego abarca, nesse sentido, a realização dos direitos subjetivos dos trabalhadores, por exemplo, aqueles arrolados no artigo 7º, dentre os quais o salário mínimo (IV) e a sua garantia para aqueles que recebam remuneração variável (VII).

À luz da Constituição de 1988, não há relação de emprego em qualquer hipótese infraconstitucional em que não garantido o recebimento mensal do salário mínimo. Cindir o direito fundamental ao salário mínimo como se fosse algo a ser medido em horas ou dias é afrontar a máxima efetividade como princípio inerente à fundamentalidade material, em afronta à dignidade da pessoa humana porque lhe atribuindo os riscos diários de garantia de um mínimo de subsistência. Quando o artigo 7º dispõe sobre salário mínimo, ele o faz numa perspectiva transindividual de periodicidade mensal para dar previsibilidade à vida dos trabalhadores na realização de suas diferentes atividades diárias (não apenas trabalho, mas também lazer, convivência social e familiar, etc.). Tanto é assim que nenhum benefício que substitua o salário-de-contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado da Previdência Social terá valor mensal inferior ao salário mínimo (Constituição de 1988, artigo 201, §2º).

Nesse sentido, chegam a ser perversas as previsões consagradas na Medida Provisória 880/17. É como se uma pessoa que ganha menos que um salário mínimo pudesse ainda arcar com contribuições previdenciárias sobre a diferença “entre a remuneração recebida e o valor do salário mínimo mensal” (artigo 911-A, §1º). Mais que isso, se não houver o recolhimento complementar sobre a mencionada diferença, o respectivo mês “não será considerado para fins de aquisição e manutenção de qualidade de segurado do Regime Geral de Previdência Social nem para cumprimento dos períodos de carência para concessão dos benefícios previdenciários” (artigo 911-A, §2º). Salta aos olhos que o contrato intermitente não consagra uma relação de emprego em sua plenitude, ou melhor, de relação de emprego não se trata quando se fala em contrato intermitente.

A Medida Provisória 880/17 chegou ao cúmulo, em caso de extinção do contrato intermitente, de prever o pagamento pela metade da indenização do período de aviso-prévio e do acréscimo de 40% do FGTS, de limitar o levantamento dos depósitos de FGTS em até 80% e de excluir o direito fundamental ao seguro-desemprego (artigo 452-E). A inconstitucionalidade é tamanha que chego a ficar surpreso com tanta desfaçatez. Trata-se de direitos fundamentais dos trabalhadores (Constituição de 1988, artigo 7º, incisos I, II e III) que devem ser garantidos e realizados com máxima efetividade e em total consonância com o princípio da igualdade material (Constituição de 1988, artigo 5º, caput, e artigo 7º, incisos XXX a XXXII). Mas a Medida Provisória 880/17 apenas seguiu a mesma lógica inconstitucional da Lei 13.467/17, de modo que minha surpresa é infundada por óbvio.

É curioso que o § 5º do artigo 452-A da CLT prevê que o “período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes”. Estar inativo nunca significou estar alheio à jornada de trabalho. É um dos conceitos mais antigos do direito do trabalho que o período inativo à disposição do empregador também caracteriza jornada de trabalho, tanto que os austeros reformistas trabalhistas não chegaram ao absurdo de derrogar o artigo 4º da CLT, segundo o qual “serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens”. Noutras palavras, o fato caracterizador da jornada de trabalho é o empregado estar à disposição do empregador, ainda que esteja em inatividade no aguardo de ordens do empregador.

E também nessa perspectiva há violação de direito fundamental, na medida em que a jornada de trabalho é um direito fundamental dos trabalhadores arrolado no inciso XIII do artigo 7º da Constituição de 1988. Como o tempo de inatividade à disposição do empregador integra a jornada de trabalho, não pode uma lei infraconstitucional excluir referido período em detrimento do mencionado direito fundamental. E deve ficar claro que o período de inatividade à disposição do empregador integra o núcleo do referido direito fundamental, de modo que é indiferente haver ou não essa definição em um texto infraconstitucional. Com efeito, se a liberdade de disposição do trabalhador para fazer o que bem entenda resta limitada no aguardo de ordens porque direcionada a sua disponibilidade para o empregador, o princípio é que deve esse período integrar a jornada de trabalho.

E, mais que isso, o contrato intermitente acaba por violar o direito fundamental à “proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa” (Constituição de 1988, artigo 7º, X). Simples assim. Os austeros reformistas trabalhistas acabaram por institucionalizar uma espécie de retenção dolosa do salário, na medida em que não haverá contraprestação da efetiva jornada de trabalho quando o trabalhador estiver em inatividade à disposição do tomador dos serviços. Trata-se de uma frontal desproteção do salário na forma da Lei 13.467/17.

Aliás, a previsão do § 5º do artigo 452-A da CLT é tão esdrúxula que chega a dizer que o trabalhador intermitente poderá prestar serviços a outros contratantes. Bingo. É cômica a previsão porque os austeros reformistas propagandeiam a defesa da liberdade, mas chegam ao cúmulo de “permitir” aos cidadãos a prestação de serviços a mais de um tomador. A exclusividade não é nem nunca foi um requisito ou elemento caracterizador da relação de emprego, do tipo: “ups! não era exclusivo, logo não era empregado”. Não havia qualquer necessidade de uma previsão desse jaez. É surpreendente que a Lei tenha sido engendrada por autodenominados “especialistas” na área do trabalho.

Finalmente, como um tópico ineficiente de abordagem, lembro a questão das férias, direito fundamental assegurado no inciso XVII do artigo 7º da Constituição de 1988. Ali está previsto o direito ao “gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal”. O § 9º do artigo 452-A da CLT prevê que “cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir, nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador”. Note-se como prepondera a perspectiva liberal-individualista nessas previsões. Não interessa aos austeros reformistas trabalhistas se o trabalhador terá ou não efetivo gozo das férias; afinal, ele que decida se vai ou não as gozar.

Essa questão das férias é mais uma flagrante inconstitucionalidade que afronta a máxima efetividade e a irrenunciabilidade dos direitos fundamentais. As férias não encerram direito meramente individual. Envolvem o descanso do trabalhador para recuperação de suas forças, para convívio familiar e social, para lazer, para turismo, para diminuição de acidentes e doenças ocupacionais, dentre outras abordagens transindividuais. E aqui vem à tona a total ausência de prognose legislativa e de uma vinculação do legislador à estratégia socioeconômica imposta pela Constituição de 1988.

A vingar o contrato intermitente, teremos um verdadeiro estado de exceção na área trabalhista com reflexos em diferentes frentes, inclusive no incremento da violência urbana. Nossa Constituição de 1988 é solidária e humanista, não adota a filosofia do “cada um por si e alguma entidade metafísica por todos”. Em alguma medida, não deixo de atribuir razão àqueles que enfatizam um certo desgosto ao abordarem as inconstitucionalidades da reforma trabalhista (como no caso da perspectiva marxista, com a qual tenho profunda discordância). É realmente cansativo dizer tantas vezes o óbvio e lembrar outras tantas vezes aquilo que está escrito na Constituição de 1988. Mas esse é o ônus do jurista que não trai o Direito em tempos de obscuras legislações: fortalecer a barreira de contenção implementada na Constituição de 1988 quando reacionários movimentos de estado de exceção trazem à luz o retrocesso social.

Peço desculpas, de todo modo, por tratar dessa coisa fora de moda: o Direito. E a Constituição. Só sei fazer isso.

[1] E, neste ponto, não posso deixar de tecer considerações sobre recente texto de Valdete Souto Severo (Há caminhos para resistir à “reforma” trabalhista?) e o faço com toda a lhaneza. Sei que a referida jurista – minha estudiosa ex-aluna – integra o Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC), da USP, liderado pelo ilustre professor Jorge Luiz Souto Maior. Note-se que muitas das abordagens do GPTC/USP estão apegadas à Constituição e meus textos sobre a reforma trabalhista inclusive remetem às suas produções. Todavia, não posso deixar passar em branco minha profunda discordância com essa abordagem que coloca o Direito em segundo plano, a reboque da política e da economia. Trata-se de exemplo de predador endógeno do Direito. No referido texto, a juíza, Dra. Valdete, chega a dizer que não basta abordar as inconstitucionalidades da lei e que o cerne da questão não é jurídico. O texto dá a entender que o problema é a opção econômica capitalista e que poderíamos construir as bases para a superação do sistema do capital. Se é assim, pois, então, o que nos resta? Fechar as faculdades? Extinguir o Judiciário?

[2] É crescente o número de mendigos na capital paulista, onde realizei a palestra e onde foi a entrevista do transeunte na rádio. A solução seria eliminar os mendigos? Aliás, foram um tanto surpreendentes a carta dos procuradores da república e um dos líderes da trupe de justiceiros, Deltan Dallagnol, ao conclamar a população para a “batalha final” em 2018. Lembrei na hora da “solução final” engendrada pelos nazistas. Vão mandar os corruptos para campos de concentração? Não é à toa que procurador da República disse que o nazismo foi socialista porque o partido de Hitler chamava-se nacional-socialista. Ignorou que se tratava de propaganda enganosa no melhor estilo Goebbels. Hitler odiava comunistas e marxistas, basta ler o Mein Kampf; seu combustível era o ódio e nada além disso. Comunistas e marxistas foram mortos nos campos de concentração nazistas.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: http://www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2017, 10h05

Automatização afetará entre 400 e 800 milhões de pessoas no Mundo

RICARDO DELLA COLETTA
Publicado em El País, Brasil
Cidade do México 3 DEZ 2017 – 02:22 CET
Foto:
Dois participantes observam um robô industrial em uma feira de robótica em Tóquio. FRANCK ROBICHON EFE

Entre 400 e 800 milhões de pessoas em todo o mundo serão afetadas pela automatização e terão de encontrar uma nova ocupação até 2030, segundo um relatório realizado pela consultoria McKinsey Global Institute.

O impacto das novas tecnologias na vida dos trabalhadores será sentido sobretudo nas economias mais desenvolvidas. Segundo o relatório, até um terço da força de trabalho de Estados Unidos e Alemanha terá de aprender novas habilidades e encontrar outra ocupação. No Japão, a porcentagem de afetados poderá chegar a quase a metade dos trabalhadores.

Os efeitos do fenômeno calculados pela consultoria variam segundo a projeção que se leve em consideração: se a automatização das economias avança a um ritmo intenso ou gradual.

Os responsáveis pelo documento da McKinsey afirmam que os baixos salários no México, por exemplo, levarão a um impacto menos intenso da automatização no país latino-americano: do total de 68 milhões de pessoas que comporão a força de trabalho mexicana em 2030, cerca de 9 milhões serão afetados.

“O México tem uma população jovem e uma força de trabalho que está crescendo. O nível dos salários pode diminuir a implementação da automatização no país”, destaca a consultoria.

A McKinsey analisou o efeito da robotização em 46 economias que representam quase 90% do PIB mundial. Além disso, fez projeções detalhadas do impacto da automatização em seis países: Estados Unidos, China, Alemanha, Japão, México e Índia. A consultoria destaca que os países têm de encontrar formas de realocar os trabalhadores substituídos pela automatização. “Nos cenários em que alguns dos substituídos levam anos para encontrar um novo trabalho, o desemprego cresce em curto e médio prazo. Em longo prazo, se reduz o desemprego e o mercado de trabalho se ajusta, mas com um crescimento menor dos salários”, afirmam.

Além disso, as mudanças tecnológicas atingirão com mais força os trabalhadores com menos estudo. As pessoas com formação universitária e pós-graduação serão menos afetadas. Entre as atividades mais prejudicadas destacadas pela consultoria estão os operadores de máquinas e os funcionários de redes de fast food, além de trabalhadores que fazem coleta e processamento de dados.

“As profissões altamente dependentes das atividades que identificamos como mais suscetíveis à automatização — trabalhos físicos ou processamento de dados — serão provavelmente as mais afetadas”, afirmam os responsáveis pelo relatório. “Ocupações que exigem alto nível de especialização ou uma alta exigência de interação social e emocional serão menos suscetíveis à automatização até 2030”, dizem.

Apesar dos efeitos esperados no mercado de trabalho, os pesquisadores destacam que a inovação, o crescimento econômico adequado e os investimentos podem gerar empregos suficientes para compensar os postos de que serão perdidos pela automatização.