CONSPIRAÇÃO E CORRUPÇÃO: uma hipótese muito provável

CONSPIRAÇÃO E CORRUPÇÃO: uma hipótese muito provável

José Luís Fiori[1]

William Nozaki[2]

É comum falar de “teoria da conspiração”, toda vez que alguém revela ou denuncia práticas ou articulações políticas “irregulares”, ocultas do grande público, e que só são conhecidas pelos insiders, ou pelas pessoas mais bem informadas. E quase sempre que se usa esta expressão, é com o objetivo de desqualificar a denúncia que foi feita, ou a própria pessoa que tornou público o que era para ficar escondido, na sombra ou no esquecimento da história. Mas de fato, em termos mais rigorosos, não existe nenhuma “teoria da conspiração”. O que existem são “teorias do poder”, e “conspiração” é apenas uma das práticas mais comuns e necessárias de quem participa da luta política diária pelo próprio poder. Esta distinção conceitual é muito importante para quem se proponha analisar a conjuntura política nacional ou internacional, sem receio de ser acusada de “conspiracionista”. E é um ponto de partida fundamental para a pesquisa que estamos nos propondo fazer sobre qual tenha sido o verdadeiro papel do governo norte-americano no Golpe de Estado de 2015/2016, e na eleição do capitão Bolsonaro”, em 2018. Neste caso, não há como não seguir a trilha da chamada “conspiração”, que culminou com a ruptura institucional e a mudança do governo brasileiro. E nossa hipótese preliminar é que a história desta conspiração começou na primeira década do século XXI, durante o “mandarinato” do vice-presidente americano, Dick Cheney, apesar de que ela tenha adquirido uma outra direção e velocidade a partir da posse de Donald Trump, e da formulação da sua nova “estratégia de segurança nacional”, em dezembro de 2017.

No início houve surpresa, mas hoje todos já entenderam que essa nova estratégia abandonou os antigos parâmetros ideológicos e morais da política externa dos Estados Unidos, de defesa da democracia, dos direitos humanos e do desenvolvimento econômico, e assumiu de forma explícita o projeto de construção de um império militar global, com a fragmentação e multiplicação dos conflitos, e a utilização de várias formas de intervenção externa, nos países que se transformam em alvos dos norte-americanos. Seja através da manipulação inconsciente dos eleitores e da vontade política dessas sociedades; seja através de novas formas “constitucionais” de golpes de Estado; seja através sanções econômicas cada vez mais extensas e letais, capazes de paralisar e destruir a economia nacional dos países atingidos; seja, finalmente, através das chamadas “guerras híbridas” que visam destruir a vontade política do adversário, utilizando-se da informação mais do que da força, das sanções mais do que dos bombardeios, e da desmoralização intelectual dos opositores mais do que da tortura.

Desse ponto de vista, é interessante acompanhar e evolução dessas propostas nos próprios documentos americanos, nos quais são definidos os objetivos estratégicos do país e as suas principais formas de ação. Assim, por exemplo, no Manual de Treinamento das Forças Especiais Americanas Preparadas para Guerras Não-Convencionais, publicado pelo Pentágono em 2010, já está dito explicitamente que “o objetivo dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças internas de resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos”. Com o reconhecimento de que “em um futuro não muito distante, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerra irregulares”[3]. Uma orientação que foi explicitada, de maneira ainda mais clara, no documento no qual se define, pela primeira vez, a nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA do governo de Donald Trump, em dezembro de 2017. Ali se pode ler, com todas as letras, que o “combate à corrupção” deve ter lugar central na desestabilização dos governos dos países que sejam “competidores” ou “inimigos” dos Estados Unidos.[4] Uma proposta que foi detalhada no novo documento sobre a Estratégia de Defesa Nacional dos EUA, publicado em 2018, em que se pode ler que “uma nova modalidade de conflito não armado tem tido presença cada vez mais intensa no cenário internacional, com o uso de práticas econômicas predatórias, rebeliões sociais, cyber-ataques, fake news, métodos anticorrupção”.[5]

É importante destacar que nenhum desses documentos deixa a menor dúvida de que todas estas novas formas de “guerra não convencional” devem ser utilizadas – prioritariamente – contra os Estados e as empresas que desafiem ou ameacem os objetivos estratégicos dos EUA.

Agora bem, neste ponto da nossa pesquisa, cabe formular a pergunta fundamental: quando foi – na história recente – que o Brasil entrou no radar dessas novas normas de segurança e defesa dos EUA? E aqui não há dúvida de que cabem muitos fatos e decisões que foram tomadas pelo Brasil, sobretudo depois de 2003, como foi o caso da sua política externa soberana, da sua liderança autônoma do processo de integração sul-americano, ou mesmo, da participação no bloco econômico do BRICS, liderado pela China. Mas não há a menor dúvida de que a descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, em 2006, foi o momento decisivo em que o Brasil mudou de posição na agenda geopolítica dos Estados Unidos. Basta ler o Blueprint for a Secure Energy Future, publicado em 2011, pelo governo de Barack Obama, para ver que naquele momento o Brasil já ocupava posição de destaque em 3 das 7 prioridades estratégicas da política energética norte-americana: (i) como uma fonte de experiência para a produção de biocombustíveis; (ii) como um parceiro fundamental para a exploração e produção de petróleo em águas profundas; (iii) como um território estratégico para a prospecção de Atlântico Sul[6].

A partir daí, não é difícil de rastrear e conectar alguns acontecimentos, sobretudo a partir do momento em que o governo brasileiro promulgou – em 2003 – sua nova política de proteção dos produtores nacionais de equipamentos, com relação aos antigos fornecedores estrangeiros da Petrobras, como era o caso, por exemplo, da empresa norte-americana Halliburton, a maior empresa mundial em serviços em campos de petróleo , e uma das principais fornecedores internacionais das sondas e plataformas marítimas, e que havia sido dirigida, até o anos 2000, pelo mesmo Dick Cheney que viria a ser o vice-presidente mais poderoso da história dos Estados Unidos, entre 2001 e 2009. A Odebrecht, a OAS e outras grandes empresas brasileiras entram nessa história, a partir de 2003, exatamente no lugar dessas grandes fornecedoras internacionais que perderam seu lugar no mercado brasileiro. Cabendo lembrar aqui o início da complexa negociação entre a Halliburton e a Petrobrás[7], em torno à compra e entrega das plataformas P 43 e P 48, envolvendo 2,5 bilhões de dólares[8], começou na gestão de Dick Cheney e se estendeu até 2003/4, com a participação do Gerente de Serviços da Petrobrás, na época, Pedro José Barusco, que depois se transformaria depis no primeiro delator conhecido da Operação Lava-Jato.[9]

Nesse ponto, aliás, seria sempre muito bom lembrar a famosa tese de Fernand Braudel, o maior historiador econômico do século XX, de que “o capitalismo é o antimercado”, ou seja, um sistema econômico que acumula riqueza através da conquista e preservação de monopólios, utilizando-se de todo e qualquer meio que esteja ao seu alcance. Ou ainda, traduzindo em miúdos o argumento de Braudel: o capitalismo não é uma organização ética nem religiosa, e não tem nenhum compromisso com qualquer tipo de moral privada ou pública que não seja a da multiplicação dos lucros e a da expansão contínua dos seus mercados. E isto é que se pode observar, mais do que em qualquer outro lugar, no mundo selvagem da indústria mundial do petróleo, desde o início de sua exploração comercial do petróleo, desde a descoberta do seu primeiro poço pelo “coronel” E. L. Drake, na Pensilvânia, em 1859.

Agora bem, voltando ao eixo central da nossa pesquisa e do nosso argumento, é bom lembrar que este mesmo Dick Cheney que vinha do mundo do petróleo, e teve papel decisivo como vice-presidente de George W. Bush, foi quem concebeu e iniciou a chamada “guerra ao terrorismo”, conseguindo o consentimento do Congresso Americano para iniciar novas guerras, mesmo sem aprovação prévia do parlamento; e o que é mais importante, para nossos efeitos, conseguiu aprovar o direito de acesso a todas as operações financeiras do sistema bancário mundial, praticamente sem restrições, incluindo o velho segredo bancário suíço, e o sistema e pagamento europeus, o SWIFT.

Por isso, aliás, não é absurdo pensar que tenha sido por esse caminho que o Departamento de Justiça norte-americano tenha tido acesso às informações financeiras que depois foram repassadas às autoridades locais dos países que os Estados Unidos se propuseram a desestabilizar com campanhas seletivas “contra a corrupção”. No caso brasileiro, pelo menos, foi depois desses acontecimentos que ocorreu o assalto e o furto de informações geológicas sigilosas e estratégicas da Petrobras, no ano de 2008, exatamente dois anos depois da descoberta das reservas petrolíferas do pré-sal brasileiro, no mesmo ano em que os EUA reativaram sua IV Frota Naval de monitoramento do Atlântico Sul. E foi no ano seguinte, em 2009, que começou o intercâmbio entre o Departamento de Justiça dos EUA e integrantes do Judiciário, do MP e da PF brasileira para tratar de temas ligados à lavagem de dinheiro e “combate à corrupção”, num encontro que resultou na iniciativa de cooperação denominada Bridge Project, da qual participou o então juiz Sérgio Moro.

Mais à frente, em 2010, a Chevron negociou sigilosamente, com um dos candidatos à eleição presidencial brasileira, mudanças no marco regulatório do pré-sal, numa “conspiração” que veio à tona com os vazamentos da Wikileaks, e que acabou se transformando num projeto apresentado e aprovado pelo Senado brasileiro. E três anos depois, em 2013, soube-se que a presidência da República, ministros de Estado e dirigentes da Petrobras vinham sendo alvo, há muito tempo, de grampo e espionagem, como revelaram as denúncias de Edward Snowden. No mesmo ano em que a embaixadora dos EUA que acompanhou o golpe de Estado do Paraguai contra o presidente Fernando Lugo foi deslocada para a embaixada do Brasil. E foi exatamente depois desta mudança diplomática, no ano de 2014, que começou a Operação Lava Jato, que tomou a instigante decisão de investigar as propinas pagas aos diretores da Petrobrás, exatamente a partir de 2003, deixando fora portanto os antigos fornecedores internacionais, no momento exato em que concluíam as negociações da empresa com a Halliburton , em trono da entrega das plataformas P 43 e P48.

Se todos estes dados estiverem corretamente conectados, e nossa hipótese for verossímel, não é de estranhar que depois de cinco anos do início desta “Operação Lava-Jato”, os vazamentos divulgados pelo site The Intercept Brasil, dando notícias da parcialidade dos procuradores, e do principal juiz envolvido nessa operação, tenham provocado uma reação repentina e extemporânea dois principais acusados desta história que se homiziaram, praticamente, nos Estados Unidos. Provavelmente, em busca das instruções e informações que lhe permitissem sair das cordas, e voltar a fazer com seus novos acusadores o que sempre fizeram no passado, utilizando-se de informações repassadas para destruir seus adversários políticos. Entretanto, o pânico do ex-juiz e seu despreparo para enfrentar a nova situação fizeram-no comportar-se de forma atabalhoada, pedindo licença ministerial e viajando uma segunda vez para os Estados Unidos, e com isto tornou público o seu lugar na cadeia de comando de uma operação que tudo indica que possa ter sido a única operação de intervenção internacional bem-sucedida – até agora – da dupla John Bolton e Mike Pompeu, os dois “homens-bomba” que comandam a política externa do governo de Donald Trump. Uma operação tutelada pelo norte-americanos e avalizada pelos militares brasileiros.

Por isso, se nossa hipótese estiver correta, não há a menor possibilidade de que as pessoas envolvidas neste escândalo sejam denunciadas e julgadas com imparcialidade, porque todos os envolvidos sempre tiveram pleno conhecimento e sempre aprovaram as práticas ilegais do ex-juiz e de seu “procurador-assistente”, práticas que foram decisivas para a instalação do capitão Bolsonaro na Presidência da República. O único que lhes incomoda neste momento é o fato de que sua “conspiração” tenha se tornado pública, e que todos tenham entendido quem é o verdadeiro poder que está por trás dos chamados “Beatos de Curitiba”.

24 de julho de 2019

[1] Professor titular do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ); pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

[2] Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

[3] U.S. Department of the Army. U.S.Army Special Forces Unconventional Warfare Training Manual. Headquarters, Washington D.C., 2010. Disponível em: https://publicintelligence.net/u-s-army-special-forces-unconventional-warfare-training-manual-november-2010/ Acessado em 22/07/2019.

[4] U.S. Department of Defense. National Security Strategy, Washington D.C., 2017. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2017/12/NSS-Final-12-18-2017-0905.pdf Acessado em 22/07/2019.

[5] U.S. Department of Defense. National Defense Strategy, Washington D.C., 2018. Disponível em: https://dod.defense.gov/Portals/1/Documents/pubs/2018-National-Defense-Strategy-Summary.pdf Acessado em 22/07/2019.

[6] U.S. Department of Energy. Blueprint for a Secure Energy Future, Washington D.C., 2011. Disponível em: < htt”Os laços Petrobras Halliburton, 25/02/04ps://obamawhitehouse.archives.gov/issues/blueprint-secure-energy-future> Acessado em 22/07/019.

[7] “Petrobrás fecha negócio bilionário com Halliburton, http://www.dci.com.br, 20/04/04

[8] “Os laços Petrobrás Halliburton, 25/02/2004, http://www.xn--istodinheiro-eeb.com.br/

[9] “Veja na íntegra a delação premiada de Pedro Barusco”, https://poliitca.estadao.com.br, 05/02/2015

Governo doa a BR Distribuidora ao mercado

De forma dissimulada, o governo federal promove uma intervenção direta na Petrobras. Sob alegação de tornar o mercado mais competitivo, ativos da estatal estão sendo negociados. Parece haver um esvaziamento deliberado da empresa, sem apontar uma estratégia que justifique tal objetivo. A lógica é a de vender subsidiárias para fazer caixa. Mas, inexplicavelmente, o Palácio do Planalto parece não enxergar que está se desfazendo de um patrimônio estratégico para a economia brasileira.

Pior do que a insensibilidade do governo é perceber que a indústria, a mineração, os exportadores e o agronegócio, entre outros, estão aceitando calados o desmantelamento do setor de gás. Quem acredita que a venda de 90% da Transportadora Associada de Gás (TAG), por exemplo, vai abaixar as tarifas e, consequentemente, o preço do gás natural? Não parece crível que uma empresa pague US$ 8 bilhões para comprar uma rede de gasodutos e não busque recuperar o investimento feito aumentando tarifas.

Igualmente, como justificar um suposto acordo firmado entre a Petrobras e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), por meio do qual a estatal se obriga a vender oito refinarias de petróleo, além dos ativos relacionados a transporte de combustível? Ganhou em troca o arquivamento de uma investigação de possível falta de concorrência no mercado de refino no Brasil. Só que a investigação sequer foi concluída e tampouco houve acusação formal contra a empresa. O acordo foi firmado antes mesmo que uma sentença tenha sido promulgada pelo Cade.

Se realmente a intenção do governo é captar dinheiro estrangeiro a curto prazo, lamento dizer que a estratégia está furada. Os bilhões de dólares que a Petrobras receberá agora serão devolvidos no futuro, na forma de pagamentos dos serviços da TAG e também utilização da malha de gasodutos do Sudeste, a Nova Transportadora Sudeste (NTS), privatizada em 2017. Mal comparando, é como você vender a casa e passar a pagar aluguel para morar no mesmo imóvel.

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o agronegócio deveriam discutir este tema, porque os dois setores já estão sendo atingidos. Embora haja quem atribua o aumento do preço do frete rodoviário à greve dos caminhoneiros, na verdade a causa real é a política de combustíveis do governo. Vivemos em um país autossuficiente em petróleo que pratica preços em dólar, agora atualizados em tempo real.

É intrigante que o governo obrigue a Petrobras a manter suas refinarias operando a dois terços da carga. Se o óleo produzido aqui fosse totalmente refinado, atenderia a todas as necessidades do país. Porém, de uns tempos para cá, nossas refinarias estão funcionando a 70% de sua capacidade. E olhem que o Brasil voltou a bater recorde de produção de petróleo, chegando à produção diária 3,473 milhões de barris de óleo em maio de 2019.

O “freio” no refino de petróleo até serve para justificar a política de reajuste de preços dos combustíveis do governo, mas é desfavorável à população. A decisão está pesando no bolso do brasileiro, na hora de abastecer o automóvel nas bombas dos postos de combustíveis, ou na compra do gás de cozinha.

  • Jean Paul Prates é senador (PT-RN) e vice-presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Petrobras.

Fonte: O Globo

Até que a grande ficha exploda na cara dos ignorantes, por Rogério Godinho

Quando Bolsonaro foi eleito, a primeira palavra que me ocorreu foi expurgo.
Na época, eu não imaginava o nível da palhaçada.
Não antevi que ele copiaria Trump de maneira tão integral, recusando o centro como âncora e se mantendo no palanque, populista clássico, aumentando ainda o tom da imbecilidade e falando exclusivamente com sua claque. Imaginei que ocorreria o movimento de sempre, com o poder e sua sedução absoluta atraindo quadros competentes, tocando a administração básica, enquanto nossa pátria seria silenciosamente subtraída.
Não há nada de silencioso em Brasília.
Em retrospecto, é fácil entender porque ele fez isso, mas na época não era possível imaginar.
Meu foco era no sistema educacional. Bolsonaro certamente cumpriria a promessa e desmontaria gradualmente a administração, as universidades, os convênios, as ilhas de excelência, os grupos pensantes, tudo que pudesse influenciar, deixando uma marca profunda, suja, anacrônica e ignorante na educação brasileira.
De fato, o receio inicial se manteve e se confirmou, não só na educação, mas em todas as áreas. O expurgo se manifesta desde o primeiro decreto, paulatinamente destruindo, desmontando, decepando, desfazendo, enfim, o que há de civilizado, democrático e participativo.
Os reitores das universidades já perderam o poder de nomear os pró-reitores, que agora virão de Brasília, de forma que as mudanças estruturais que estão sendo preparadas encontrem o mínimo de oposição.
A Ancine irá para Brasília ou será fechada, sendo que Bolsonaro já reduziu a participação dos membros da indústria. A partir de agora, há mais gente do governo do que do próprio setor no CSC.
O INPE foi provocado e em breve virá um ataque com o objetivo de debilitar ainda mais a estrutura de fiscalização ambiental, afetando a capacidade do Ibama de fazer seu trabalho.
O COAF foi amordaçado lá atrás, agora sofre o impedimento do compartilhamento de informações e, para piorar, terá que lidar com a despadronização dos dados das Juntas Comerciais, cortesia deste governo insano.
Enquanto o desmonte ocorre, cada vez mais departamentos e peças desses órgãos têm o centro de decisão sendo transferido para dentro da Casa Civil, que se transforma no covil dessa organização do retrocesso que se instalou no Brasil.
Ato simultâneo, um decreto destruiu a estrutura de órgãos colegiados, o que vai permitir ao governo agir de maneira ainda mais livre, com menos escrutínio e ainda menos inteligência. Dos 2593 conselhos, somente 32 têm a sobrevida garantida. Um pouco menos de mil, ligados ao ensino, permanecem, mas não se sabe até quando. Quase todo o restante desaparece, em uma centena de áreas, como diversidade, ações para refugiados, corrupção, criminalidade, saúde e escolaridade indígena.
Tudo isso acima foi só nessa semana.
Diante de tudo isso, surge o argumento de que devemos tentar explicar o retrocesso ao parente simplório que votou em Bolsonaro. Que falar das declarações ignorantes de Bolsonaro é perda de tempo.
Equívoco.
Sinceramente, eu considero um enorme erro essa linha de argumentação. Mais ainda, que essa seja uma estratégia sofisticada para nos distrair. Que deveríamos prestar atenção somente no expurgo e na destruição e não na ignorância.
Discordo. Muito.
Inclusive, por razões pragmáticas. Não só porque é sim preciso falar e apontar a ignorância. Mas também porque é uma forma de combate. O cidadão médio que foi conivente com a eleição de Bolsonaro não compreende o expurgo. E, sem essa parcela da população, vamos continuar gritando sozinhos, revoltados e impotentes.
Não adianta explicar ao simplório o que é o desmonte civilizatório porque ele nunca chegou a compreender o que era civilização. Não adianta explicar a estrutura da máquina pública, a autonomia universitária, a importância da participação democrática, a legislação e os órgãos de fiscalização.
Isso é grego antigo escrito em hieroglifos maias com tinta invisível.
Mas o simplório entende sim o nepotismo do filho, a grosseria com o nordestino, a censura contra um filme, o desrespeito com a grávida torturada, a tentativa de atrapalhar o combate à corrupção.
“Que nada, Godinho, se votou nele o sujeito não se importa com nada disso”.
Não.
O eleitorado não é homogêneo. Desde janeiro, gradualmente tenho visto eleitores de Bolsonaro se calarem, mudarem de ideia, passarem a criticar.
É lento, mas acontece. Há o teimoso, são milhões, mas aos poucos vai acontecendo.
Esse ou aquele eleitor pode ainda não ter admitido que errou, mas essa ficha está caindo. Para muitos. Cada vez para mais gente. A grande ficha se aproxima.
Não é hora de desprezar nenhuma arma ou argumento, nenhuma liderança moderada ou potencial aliado.
Bolsonaro faz o mesmo quando ataca a OAB, o INPE, a Ancine, o Ibama. Ele profere as besteiras, enquanto prepara, decreta e executa os absurdos.
Da mesma forma, a reação deve ser em todas as frentes.
Vamos usar tudo.
Até que a grande ficha exploda na cara dos ignorantes.
Vai chegar.
Precisa chegar.

“Auto-emprego”: morrer de trabalhar aos 33 anos …

Artigo de Fernando Almeida, publicado no Facebook.

O título é minha responsabilidade.

Na semana passada, um motoboy a serviço de um desses aplicativos de entrega sofreu um AVC quando levava uma encomenda ao bairro de Perdizes, em São Paulo. Um motorista do uber, acionado para levar o rapaz de 33 anos a um hospital, se recusou a transportá-lo quando viu que ele tinha urinado nas próprias roupas. Antes disso, a empresa do aplicativo, consultada pela cliente que havia solicitado a entrega, limitou-se a orientá-la a dar baixa no pedido. O entregador morreu no hospital, depois de esperar quase duas horas por uma ambulância do SAMU. A médica que o atendeu disse que o frio da noite paulistana havia acentuado a gravidade do quadro. Familiares disseram que o rapaz trabalhava doze horas por dia, de segunda a segunda.

Esse episódio terrível ilustra muitos aspectos do momento social e político em que entramos. As pessoas evitam sair de casa porque as cidades grandes se tornaram intransitáveis e perigosas ou porque o cotidiano embrutecido que vivemos nos faz preferir a segurança da distância e da impessoalidade (o “conforto”) a qualquer forma de interação humana que se dê fora das pequenas cidadelas privadas (condomínios, academias, escritórios) em que nos refugiamos contra o inferno hobbesiano da via pública. A tecnologia cria novas formas de trabalho precário, intensificando a jornada dos trabalhadores até o nível da autoexploração, numa interminável maratona pela sobrevivência.

Trabalhar “para si mesmo” sem folga, sem férias, sem proteção social contra os riscos de sua atividade não é uma expressão da liberdade de escolha do trabalhador, de uma “autonomia” do trabalho criada pela tecnologia dos aplicativos digitais: é um sintoma da sua desfiliação, do seu isolamento frente a um regime econômico que, em vez de substituir a mão de obra humana pela tecnologia e liberar as pessoas do trabalho, parece antes substituir os empregadores pela tecnologia no controle direto da força de trabalho. Os empregadores em carne e osso ou mesmo as empresas com suas instalações físicas desapareceram: o patrão é o capital. Ninguém “escolhe” trabalhar e, portanto, ninguém escolhe as condições sob as quais trabalha se delas depende algo absolutamente inegociável como a própria vida.

A glamourização da autoexploração como “empreendedorismo” dissimula o caráter extremo dessa estratégia de “gestão” de curto prazo da sobrevivência. A massificação do acesso a celulares não é o avanço tecnológico que permitiu aos trabalhadores se tornarem autônomos, livres das “amarras” contratuais das relações formais de assalariamento: foi justamente aquilo que permitiu reduzir, para o capital, os custos da exploração do trabalho (de vigilância, de aferição de produtividade etc.), de tal modo que esta passou a prescindir da relação de assalariamento formal para se intensificar. Sujeitos a maior instabilidade e mais expostos ao desemprego, os trabalhadores assumem maiores riscos por uma remuneração menor.

Chico de Oliveira, sociólogo brasileiro morto também na semana passada, formulou, no ensaio “Crítica à razão dualista”, a tese segundo a qual a grande questão da “modernidade tardia”, entre nós, não era, como colocavam seus predecessores, a “superação do atraso”, mas, sim, o fato de que, aqui, a consolidação do capitalismo ocorrera pela introdução de relações novas no arcaico e pela reprodução de relações arcaicas no novo. O arcaico estrutura a forma sob a qual o novo é apropriado socialmente, o novo se expande por meio de relações arcaicas. Uma cadeia produtiva altamente tecnologizada, como o agronegócio, cujos produtos são negociados nas bolsas de valores internacionais, emprega mão de obra precária, às vezes em condições análogas à escravidão. Um aplicativo digital que, funcionando com comunicação por satélite, permite aos clientes receber em poucos minutos suas encomendas em casa usa jovens de bicicleta com mochila nas costas para realizar as entregas.

Sem equipamentos de proteção individual, sem jornadas definidas com remuneração garantida, sem proteção social contra acidentes, sem férias nem folgas, sem um contrato formal que assegure um rol mínimo de direitos: as condições de trabalho dos entregadores dos aplicativos digitais remontam ao séc. XIX. Se, do lado do capital, a tecnologia da entrega por aplicativos é o que há de mais moderno na era pós-industrial, do lado do trabalho a “máquina” que os entregadores pedalam ainda é movida a tração humana.

A reforma da Previdência: um tiro no pé, danação — já se deram conta? Por Lenio Luiz Streck

SENSO INCOMUM
A reforma da Previdência: um tiro no pé, danação — já se deram conta?
Publicado em http://www.conjur.com.br
11 de julho de 2019, 8h00
Por Lenio Luiz Streck

Tantos diálogos revelados e a reforma da Previdência vai passando de cambulhada. Aliás, parece que é favas contadas. A reforma é cheia de maldades. Reforma contra a população. Do vigilante ao policial, passando por professores e quejandos. Até pensão por morte, de um salário mínimo, será lixada. Portanto, para não dizer que não falei em Previdência, deixo registrada minha crítica e algumas sugestões.

A reforma pega todo mundo, alguém dirá, e esse é o lado bom. Resposta: não, todo mundo, não. Tem muita gente que não precisa se aposentar. O andar de cima não se preocupa com descontos e diminuições de benefícios. Os rentistas, banqueiros, grandes proprietários, apresentadores da Globo News etc.: estes se lixam para coisas mundanas como aposentadoria. Ou fingem.

O bicho pega, mesmo, é para a população pobre, porque 82% da conta será paga pelo Regime Geral da Previdência. Sim. Fato. Desse couro é que sairá a maior parte das correias.

O relatório do deputado Samuel Moreira, de forma inconstitucional, retira e reduz, de maneira muito dura, direitos previdenciários de servidores públicos civis, sem que fosse aprovado um único destaque em favor desses trabalhadores públicos, num verdadeiro rolo compressor antidemocrático. Trabalhadores públicos: são os vilões do templo. Os privilegiados. Vilões do novo tempo. Passaram o rodo. Só quem se deu bem foram os militares e os parlamentares. No restante, o pau comeu.

Pleitos justos e razoáveis dos servidores públicos civis relativos a regras de transição, ao cálculo da pensão por morte, à retirada do caráter confiscatório das alíquotas previdenciárias, ao cálculo dos benefícios previdenciários, dentre outros, não foram minimamente atendidos. Criou-se uma narrativa de que a reforma da Previdência salvará o Brasil. O Brasil é ANP e DNP (antes da nova Previdência e depois da nova Previdência).

Ora, prever uma suposta “regra de transição” em prejuízo apenas aos servidores públicos civis com pedágio de 100% — que dobra o tempo (sim, dobra o tempo) que resta para a obtenção da aposentadoria —, além da observância de uma idade mínima — que esvazia ainda mais a “transição” —, enquanto fixa regras bem mais suaves para os militares e os próprios parlamentares, da ordem, respectivamente, de 17% e 30%, vai contra qualquer discurso de tratamento igualitário ou “quebra de privilégios”, em total discriminação aos servidores civis. Poxa. O inferno são os outros; os privilegiados são os outros. Sempre os outros. Quando se trata da base eleitoral, aí não é corporativismo. Humpty Dumpty passou pela Escola de Chicago.

Mas o pior nem é esse. Há mais: falo da inconstitucional desconstitucionalização de diversas normas, inclusive remetendo para lei complementar a obrigatoriedade de extinção de todos os regimes próprios de Previdência já existentes com a consequente migração obrigatória dos servidores para o Regime Geral de Previdência Social, gerido pelo INSS. O ultraliberalismo da nova ordem veio com a chibata em riste. E o látego pegou. Quem (sobre)viver sofrerá.

Direitos adquiridos? Essa palavra não existe para o relator nem para os deputados. Fazem blague, dizendo “privilégios adquiridos”. Estão matando o conceito de lei no tempo (pobre memória de Limongi França) e o princípio constitucional do ato jurídico perfeito.

Só que, na medida em que a narrativa — e, hoje, tudo é narrativa — vigente é a da ANP/DNP, criou-se igualmente a tese de que não se pode falar nada que contrarie a “nova Previdência”. Ser contra suas injustiças é, dizem eles, ser “contra o Brasil”. Em face de qualquer crítica, a resposta é: “então proponha!”. Certo. Trago algumas sugestões mais específicas.

Eis o resumo dos pontos que deveriam ser alterados:

regras de transição mais justas e isonômicas, que prevejam pedágios semelhantes aos conferidos também para militares e parlamentares;
regras mais razoáveis para o cálculo da pensão por morte, tendo em vista que a fixada no relatório pode reduzir em mais de 50% o atual valor concedido, deixando cônjuges, filhos e familiares desprotegidos;
retirada do caráter confiscatório das alíquotas, que, cumuladas com as do Imposto de Renda, podem reduzir, mensalmente, quase metade do salário dos servidores públicos;
manutenção do cálculo dos benefícios previdenciários em 80% das maiores contribuições;
supressão da desconstitucionalização que prevê, inclusive, a imposição de extinção dos regimes próprios de Previdência com a consequente migração obrigatória de todos os servidores públicos civis para o Regime Geral de Previdência Social, gerido pelo INSS;
supressão de dispositivo que atinge direitos adquiridos ao declarar nulas aposentadorias concedida a servidores públicos civis com base no arcabouço legislativo vigente, sobretudo até a Emenda Constitucional 20/1998, o que trará instabilidade e insegurança jurídica a milhares de aposentados.
Enfim, é o que tenho lido por aí. Tenho ouvido muitos discos (sou do vinil!), conversado com pessoas, respondido a whatsapps, encontrando vigilantes, policiais, juízes, promotores, professores… enfim, tenho discutido com parlamentares que acreditam que a redenção está aí: a reforma ou o armagedom. Até assinei uma petição pública tratando dos pontos acima.

Você sabia que o professor do fundamental ou segundo grau, com 25 anos de trabalho, perderá 30%? Para receber 100% de benefício, terá que trabalhar 40 anos? Não é uma maldade? Trabalha o tempo mínimo, ganha 60% do valor. A cada ano, mais 2%. Resultado: tem de trabalhar 40 anos para chegar a 100%. Alguém dirá: que bom. Mais trabalho, mais ganhos. A ver, no futuro.

As aposentadorias ligadas ao Regime Geral da Previdência terão redução de até 40%. Haverá corte de pensões. Viúvas podem perder 50% de seus benefícios. Essa pode ser a maior maldade. Porque onde o sapato aperta é nas viúvas que ganham o mínimo. Ou não é assim?

A narrativa é que a reforma da Previdência trará um novo país. A narrativa sobre a reforma trabalhista também dizia que traria um “novo país”… só que aumentou o desemprego. Quem disse que a reforma da Previdência terá o condão de criar empregos? E desde quando esse tipo de reforma, ao lado de prejudicar milhões de pessoas, faz surgir, do nada, novos postos de trabalho? Esse é o busílis da questão. A Previdência é a nova panaceia. Qual será a próxima? Ou será que realmente se pensa que O Mercado, essa entidade metafísica, estará satisfeito?

Cálculos mostram que ninguém se aposentará com totalidade de proventos. E a idade mínima é uma ficção, na conjugação com os percentuais a serem recebidos na aposentadoria.

Resumo da ópera: cada um de nós tem uma tia arrependida; cada um de nós tem parentes que, via neocaverna do uatisapi, viraram cientistas políticos espalhando fake news.

Bom, agora a reforma da Previdência, a nova Previdência, está pegando pesado. E as tias e os parentes, os neocientistas políticos, acham que isso tudo é fake news. Até verem seu holerite.

Não é verdade que a reforma prejudicará gente como eles. É, mesmo. Não é verdade (piscadela de olho!). Claro que não (nova piscadela de olho!). Afinal, se é bom para O Mercado, é bom para mim. Certo? Eu, que tenho um dinheirinho no banco, faço parte da elite financeira. Certo?

Frango, quando faz propaganda do frigorífico, só não sabe de uma coisa: que ele é um frango! Comunique-se, pois, a má notícia ao frango. As sombras não são sombras, gritava o filósofo na caverna… já os frangos são frangos, ainda que não saibam disso!

Trabalho infantil e a esperança

Mais uma declaração imbecil do número Zero. Desta vez minimizando os danos causados pelo trabalho infantil. Compartilho, a seguir, texto de Marcelo Medeiros. Eu poderia relatar a realidade de meus primos e primas, fora da escola e jogados na dureza do trabalho infantil ou pré-adolescente. Éramos 14 primos e primas em nosso quintal compartilhado e quase todos começaram a trabalhar cedo. Apenas os que tiveram oportunidade de conciliar trabalho e estudo – somente três de nós – escaparam de um destino cruel e miserável. Foi necessário, nos momentos cruciais, contar com o apoio da família para centrar os esforços no estudo, deixando o trabalho em segundo plano. Não é a realidade da grande maioria dos brasileiros. A erradicação da praga do trabalho infantil deveria ser meta de todo governante inteligente e interessado no bem público. Como explicar isto para o número Zero, este “pôsso” de ignorância?

Paulo Martins

Sobre essa declaração de trabalho infantil, lembro-me de que, aos seis anos, meu padrasto chegou e disse que eu ia trabalhar. Recordo-me que, calado, chorei bem muito à noite na rede puída porque, naquela idade, eu queria mesmo era ver desenhos na TV. Comecei então a vender jornais na rodoviária de Campina Grande aos seis anos. Precisava vir do Bairro das Cidades, passando por debaixo da catraca dos ônibus, ouvindo piadas de cobradores, para a Rodoviária Nova – Terminal Argemiro de Figueiredo. O frio era grande, casaco não havia, mas era preciso chegar cedo. Antes das 5h da manhã, já devia estar lá porque o embarque das 5h, 6h, 7h e às vezes 8h era o que mais tinha passageiros. Logo, se poderia vender mais jornais. O dinheiro obtido era 20% sobre o valor de cada exemplar vendido. Vendi jornal dos 6 aos 17 anos, algo assim. Como minha família se mudou para a Vila Cabral de Santa Terezinha, eu não precisava mais ouvir piadas de cobrador, mas precisava continuar vendendo jornal. Agora, o trajeto era a pé porque morava perto da rodoviária e porque, muitas vezes, era aquele ínfimo “ordenado” que servia para comprar meio quilo de galeto, de arroz, feijão, açúcar – não necessariamente nessa ordem. Aprendi muita coisa sobre isso e a vida como gazeteiro me marcou profundamente. Aprendi a enfrentar o frio, quando o que eu queria era dormir mais um pouco; aprendi a ter raiva da vida que levava porque o que eu queria era poder participar, por exemplo, das aulas de Educação Física e ficar brincando mais um pouco, mas as aulas eram pela manhã e eu tinha de correr para vender jornal no embarque de 5h, 6h e 7h, voltar a correr para ir em casa e disparar para a escola, pois as aulas de educação física eram às 8h. Se eu pudesse escolher, escolheria ter tido outra infância. Uma infância com mais riso e menos fome. Com mais amigos e menos responsabilidades. Com mais sonhos e menos angústias, medo e falta de esperança. Eu escolheria poder ter tido escolha porque naquela época não havia escolha alguma. Era colocar o jornal debaixo do braço e contar com a sorte para que os compradores aparecessem e eu pudesse ganhar algumas moedas. Nasci quase no final da ditadura, cresci e vivi a minha infância toda entre o governo de Sarney, Color, Itamar Franco e FHC e assim como muitos de minha geração permanecemos vivos por insistência, teimosia. Por isso, não romantizem a miséria. Afinal, com raríssimas exceções, ninguém trabalha porque quer. Trabalha porque precisa. E quando o trabalhador é uma criança, esta está sendo duplamente explorada: na força de seu trabalho e nos sonhos que lhe estão sendo tolhidos. Lugar de criança é na escola! Isso não é clichê. Deveria ser projeto de nação. Somente com uma população com educação e com comida à mesa é que esse país pode se desenvolver, mas esse sonho voltou a ser enterrado nas urnas de 2018. Ainda assim, há esperança, mesmo agrilhoada. E ela não é verde. Ela ainda é vermelha!

Marcelo Medeiros, prof da UEPB

Precisamos destruí-los

Desde a minha madrugada insone o Pavão, um perfil Fake, vem postando mensagens falsas contra Glenn e Davi, acusando-os e divulgando nomes para serem atacados, como o de Rosana Pinheiro-Machado. Um perfil sem rosto, fabricado exclusivamente para atacar jornalistas e oposição ao governo de Bolsonaro.

Nada é investigado. Mas, para além da leniência do Ministro da Justiça e da PF com crimes virtuais é o fato de tais mensagens serem apropriadas pelos parlamentares bolsonaristas e serem utilizadas nas tribunas oficiais do Congresso.

Não se trata apenas de mais Fake News de campanha: trata-se de um modo de governar que se sustenta em mentiras que são levadas ao Parlamento e incluídas nas notas taquigráficas que ficarão registradas nos anais do Congresso como verdadeiras.

Se antes estávamos diante de um governo de corruptos reconhecidos, como o de Temer e sua quadrilha, agora estamos diante de algo inédito na história política brasileira. Não se trata apenas de uma coalizão de milicianos, mas da produção, por parte de apoiadores do governo, de inverdades que se tornam fato consumado e que servem não apenas para alimentar o ódio da matilha: servem também para uso no parlamento e quiçá para a abertura de processos contra jornalistas e indivíduos que fazem oposição ao governo, posto que são apropriadas como verdades.

Estamos diante de uma nova política, que ainda desconhecíamos e cujo método não é o de apenas enquadrar os fatos, mas o de inventar realidades com o claro intuito de perseguir, processar e calar qualquer voz opositora.

A Ditadura Militar silenciava as vozes através da Censura oficial à liberdade de expressão. A nova política também pretende o mesmo. Mas, como os tempos não permitem o cala-boca oficial, a nova censura é a tentativa de desmontar a credibilidade dos opositores, através do uso da mentira.

Fui também vítima deles no início do governo, quando milhares de mensagens foram enviadas nas redes da direita me desqualificando. Felizmente fui bloqueada nas redes bolsonaristas e sou uma opositora menor. Ocupam-se agora dos jornalistas, para tentar matá-los simbolicamente.

Nada pior do que ter que sobreviver numa terra de autoritários, corruptos, mentirosos e sem lei.

Precisamos destruir este grupo antes que nos enterrem.

Por Mara Telles