Posição na fila tem preço?

O tal mercado, este demônio invisível cada vez mais presente, precifica tudo: a honra de um juiz, o preço de um rim, a alma de um desembargador, dois gramas de cocaína, um bebê recém-nascido branco de olhos azuis, a desonestidade de um agente administrativo da “Câmera” Federal, a lisura de um “adevogado”, a cassação de candidaturas. Vide o resultado na Bolsa de Valores e no mercado cambial.

Corriam os anos oitenta, antes da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, talvez dezembro de 1985 ou de 1986; não me recordo exatamente. Recém-contratado de uma empresa de grande porte sediada no Rio de Janeiro, eu trabalhava no Departamento de Exportação. Poucos dias antes do Natal aparece para visitar os ex-colegas de trabalho um funcionário do departamento que havia sido demitido alguns meses antes. Estava trabalhando na Câmara Federal em Brasília, em alguma função administrativa subalterna e demonstrava estar muito satisfeito com a mudança. Segundo suas próprias palavras, ter sido demitido pela empresa representou, para ele, ganhar na loteria. Embora o salário na Câmara dos Deputados não fosse alto, ele estava ganhando muito bem com “gratificações indiretas”. Estas gratificações, que eu estimo corresponderem hoje a cerca de mil reais por serviço prestado, seriam para, “simplesmente”, mudar papéis de posição. Enquanto se vangloriava de sua esperteza, o corrupto demonstrava não ter nenhum remorso com sua atitude. Ele considerava que o simples ato de “mudar papéis de posição”, subvertendo a ordem cronológica dos processos em favor dos lobistas que o contratavam, não configuraria um ato de corrupção.

Fiquei, na ocasião, chocado com a facilidade das pessoas praticarem atos de corrupção e confessarem de forma tão descarada.

Leio, na mídia eletrônica, que as ordens de processos estão sendo desrespeitadas na Justiça brasileira, em diferentes instâncias, dependendo do grau de interesse político, de inimizade ou de amizade dos autores com os réus ou, por outro lado, com possíveis beneficiários.

O caso dos anos oitenta acima relatado escancarou aos olhos de um jovem idealista a corrupção no poder legislativo. Já sofri na pele com a mudança de posição de processos do meu interesse, me prejudicando em benefício de quem pagou, no poder executivo.

Mas, incorrigível, me recuso a acreditar que tais práticas sejam comuns, rotineiras, também no poder judiciário, apesar de alguns indícios e notícias que fazem crer estarem mais presentes do que eu penso.

Sendo verdadeiras as notícias e levando-se em consideração a gravidade dos processos que tramitam na esfera judicial, em quanto terá o mercado precificado a movimentação de uma posição, para a frente ou para trás, de um processo na fila? E se forem, por exemplo, mais de duzentas posições, o mercado simplesmente multiplica por 200 ou adota um sistema exponencial de precificação?

 

Hic Sunt Leones

No “Público” de hoje, Francisco Louçã, um dos grandes (e poucos) analistas europeus do noticiário brasileiro: o Brasil como terra dos leões — do seja o que deus quiser/da selvageria.

“O Brasil virou uma página e entrou naquela terra misteriosa que os mapeadores dos navegantes portugueses marcavam com o hic sunt leones, a partir daqui é a selva.”

“nenhum tribunal europeu aceitaria as provas que condenaram Lula.”

Mas há alguma surpresa no caso Lula?

Compartilhado por Rosa Freire D’Aguiar.

Houve emoção e suspense, grandes manifestações, transmissão em directo na televisão, Michel Temer até viajou para fora do país para fingir que não era nada com ele, e concluiu-se o que se esperava, os três desembargadores de Porto Alegre confirmaram a condenação do ex-presidente Lula e, obedecendo a desígnios miraculosos, concordaram exactamente no mesmo aumento de pena para uns bíblicos doze anos e um mês. O Brasil virou uma página e entrou naquela terra misteriosa que os mapeadores dos navegantes portugueses marcavam com o hic sunt leones, a partir daqui é a selva. As elites brasileiras, escravocratas e gananciosas, não admitem a intromissão de movimentos ou protagonistas populares ou de qualquer entrave à extorsão do pecúlio público. Como aqui se chegou, no entanto, é cristalino e não sugere qualquer surpresa.

O objectivo da condenação é evidente. O julgamento foi precipitado através de procedimentos expeditos porque era necessário impedir a inscrição da candidatura de Lula no registo eleitoral, tanto mais que, apesar de toda a pressão, ele tem subido nas sondagens e até aparece como vencedor da segunda volta em todos os cenários actualmente identificados. A exibida festa dos candidatos de direita e de extrema-direita, que bem podiam ter-se mantido sobriamente distantes, ajudou a mostrar o alvo e o serviço. Nenhuma surpresa.

A protecção do fulgor político do judiciário também não suscita nenhuma surpresa. Manuel Carvalho escrevia aqui no PÚBLICO que nenhum tribunal europeu aceitaria as provas que condenaram Lula e tem provavelmente razão. Uma casa que o putativo comprador e o putativo vendedor afirmam que não transaccionaram; uma suspeita de corrupção para favorecer vantagens não identificadas, sem qualquer evidência ou prova; é tudo demasiado manipulável. Acresce que o Tribunal da Relação terá sentido a obrigação de confirmar a sentença do juiz Moro, um homem do PSDB que foi simultaneamente o instrutor do processo, o acusador e o julgador – um conceito de justiça que sobrevive ao arrepio das tradições do direito pós-Idade Média. Os juízes tornaram-se assim o braço executivo de um conflito político, mas isso não é inédito. Para mais, precisavam de defender a “delação premiada”, o negócio que troca absolvições por denúncias, e pedir no Brasil que todas as acusações de corrupção sejam julgadas da mesma forma é ingenuidade. Nenhum surpresa, mais uma vez.

As empresas mais poderosas da comunicação social promoveram o golpe, incensaram os golpistas, multiplicaram a violência acusatória, convocaram apoios. Mas isso não é surpresa, a Rede Globo tinha sido no Brasil uma das vozes essenciais da preparação do golpe militar de 1964. Já aqui escrevi que, em momentos de tensão, o fim do jornalismo como comunicador de factos, esgotando-se estes no cabo, no twitter e nos onlines, e a transformação do jornalismo em comentário partidário, alinha a imprensa nas lutas políticas e até as agrava, porque nessa guerra não se limpam armas, só conta o efeito imediato, o que acelera os golpes e contra-golpes. O que será novidade é a capilarização da caça às bruxas nas redes sociais, transformadas em paraíso de uma comunicação delinquente.

Nenhuma surpresa ainda na vulnerabilidade do PT, ferido pela sua própria política, desde as alianças, como a que deu a vice-presidência a Temer e o congresso a Cunha, até à corrupção, como no caso Mensalão. O PT perdeu-se a si próprio nessas cedências mas, quando a presidente Dilma foi demitida na base de um processo escabroso sem qualquer acusação, houve uma resposta popular que se apercebeu do risco e que se colocou na trincheira que conhecia melhor.

A partir daqui está a terra dos leões, é a selva desconhecida.

Entre o palavrório e a prova, a civilização humana

Texto do Juiz Cássio Borges – Presidente da Amazon, Associação dos Juízes do Amazonas.

…”Não vi até agora uma prova da propriedade do triplex e do sítio de Atibaia. Portanto, não havendo prova de que ele recebeu isso como paga, por ato de ofício praticado por ele, não há corrupção passiva. Propriedade se prova com registro do imóvel. E como disse, a corrupção exige ato de ofício do agente em troca do favor: não há, e nem haveria como haver, porque para existir corrupção passiva é preciso que o agente seja servidor público ou esteja em exercício de função pública, e Lula não era mais presidente.
Quanto à lavagem de dinheiro, se a aquisição do apartamento não foi provada, como se falar em lavagem. E mais, lavagem pressupõe ocultação de dinheiro sujo, dai o termo lavagem. Não se pode confundir o produto do crime com a lavagem em si. Se não houve ato pra tornar limpo o dinheiro sujo, como pode ter havido lavagem?!Por isso, esse crime em tese nem federal seria, se fosse crime.
Em suma, Lula está sendo julgado por juízo incompetente, com provas insuficientes, e por condutas atípicas. E isso que falei aqui é técnica jurídica. Não é opinião política.
Fosse eu o juiz do caso, mesmo eu acreditando que ele era o destinatário do apartamento e do sítio (COMO EU ATÉ ACREDITO), eu não o condenaria em face da insuficiência de provas, aliada a atipicidade de todas as condutas a ele imputadas. Registre-se que insuficiência de provas é diferente de falta de prova, está é a ausência total de provas, e aquela significa que as provas colhidas não suficientes para a condenação.
Já aconteceu comigo situação semelhante, eu tinha certeza da autoria do crime, mas absolvi o réu porque não havia provas em suficiência. Na dúvida, “pro reó”.
Numa democracia, Lula não pode ser condenado porque ele é o Lula. É que ninguém pode ser julgado por ser quem é. No regime de liberdades públicas, julgam-se fatos, não pessoas.
Sou professor de Penal e constitucionalistas por formação, não posso ensinar aos meus alunos uma coisa e dizer outra em rede social, só pra agradar a turba de leigos, com vingança nos olhos, que se comporta igual aqueles que fizeram Pilatos condenar Cristo à morte.
Aos loucos, um aviso: não comparei Lula a Cristo; comparei a histeria coletiva daqueles que pediram a condenação de Cristo, com estes, cheios de verdades irracionais, que pedem a condenação do Lula. E vieram aqui com seus achismos e sua moral muito particular, a pretexto de me dar lição de moral no meu outro post: tolos! Sou um estudioso do Direito, meu compromisso é com a ciência!”

Créditos: Do Facebook de Jaqueline Quiroga.

Autor do título do texto: Paulo Martins

Carta aberta a Juremir, por Marcia Tiburi

Carta aberta a Juremir
Marcia Tiburi disse: 25 de Janeiro de 2018 do blog CULT !
Caro Juremir,

Sempre gostei muito de participar do teu programa. Conversar contigo e com qualquer pessoa que apresente argumentos consistentes. Mais do que um prazer é, para mim, um dever ligado à necessidade de resistir ao pensamento autoritário, superficial e protofascista. Ao meu ver, debates que desvelam divergências teóricas ou ideológicas podem nos ajudar a melhorar nossos olhares sobre o mundo.

Tenho a minha trajetória marcada tanto por uma produção teórica quanto por uma prática de lutar contra o empobrecimento da linguagem, a demonização de pessoas, os discursos vazios, a transformação da informação em mercadoria espetacularizada, os shows de horrores em que se transformaram a grande maioria dos programas nos meios de comunicação de massa.

Ao longo da minha vida me neguei poucas vezes a participar de debates. Sempre que o fiz, foi por uma questão de coerência. Tenho o direito de não legitimar como interlocutor pessoas que agem com má fé contra a inteligência do povo brasileiro ao mesmo tempo em que exploram a ignorância, o racismo, o sexismo e outros preconceitos introjetados em parcela da população.

Por essa razão, ontem tive de me retirar do teu programa. Confesso que senti medo: medo de que no Brasil, após o golpe midiático-empresarial-judicial, não exista mais espaço para debater ideias.

Em um dia muito importante para a história brasileira, marcado por mais uma violação explícita da Constituição da República, não me é admissível participar de um programa que tenderia a se transformar em um grotesco espetáculo no qual duas linguagens que não se conectam seriam expostas em uma espécie de ringue, no qual argumentos perdem sentido diante de um já conhecido discurso pronto (fiz uma reflexão teórica sobre isso em “A Arte de escrever para idiotas”), que conta com vários divulgadores, de pós-adolescentes a conhecidos psicóticos; que investe em produzir confusão a partir de ideias vazias, chavões, estereótipos ideológicos, mistificações, apologia ao autoritarismo e outros recursos retóricos que levam ao vazio do pensamento.

Por isso, ontem tive que me retirar. Não dependo de votos da audiência, nem sinto prazer em demonstrar a ignorância alheia, por isso não vi sentido em participar do teu programa. Demorei um pouco para entender o que estava acontecendo. Fiquei perplexa, mas após refletir melhor cheguei à conclusão de que a ofensa que senti naquele momento era inevitável.

A uma, porque, ao contrário das demais pessoas, não fui avisada de quem participaria do debate. A duas, por você imaginar que eu desejaria participar de um programa em que o risco de ouvir frases vazias, manifestações preconceituosas e ofensas era enorme. Por fim, e principalmente, meu estômago não permitiria, em um dia no qual assistimos a uma profunda injustiça, ouvir qualquer pessoa que faça disso motivo de piada ou de alegria. Não sou obrigada a ouvir quem acredita que justiça é o que está em cabeças vazias e interessa aos grupos econômicos que, ao longo da história do Brasil, sempre atentaram contra a democracia.

Tu, a quem tenho muita consideração, não me avisou do meu interlocutor. A tua produtora, que conversou comigo desde a semana passada, não me avisou. Eu tenho o direito de escolher o debate do qual quero participar. Entendo que possa ter sido um acaso, que estavas precisando de mais uma debatedor para a performance do programa. Se foi isso, a pressa é inimiga da perfeição. E, se não cheguei a pedir que me avisasse se teria outro participante, também não imaginava que o teu raro programa de rádio, crítico e analítico, com humor bem dosado, mas sempre muito sério, abrisse espaço para representantes do emprobecimento subjetivo do Brasil.

Creio que é importante chamar ao debate e ao diálogo qualquer cidadão que possa contribuir com ideias e reflexões, e para isso não se pode apostar em indivíduos que se notabilizaram por violentar a inteligência e a cultura, sem qualificação alguma, que mistificam a partir de clichês e polarizações sem nenhum fundamento. O discurso que leva ao fascismo precisa ser interrompido. Existem limites intransponíveis, sob pena de, disfarçado de democratização, os meios de comunicação contribuírem ainda mais para destruir o que resta da democracia.

Quando meu livro “Como conversar com um fascista” foi publicado, muitos não perceberam a ironia kirkegaardiana do título. Espero que a tua audiência tenha entendido. O detentor da personalidade autoritária, fechado para o outro e com suas certezas delirantes, chama de diálogo ao que é monólogo. Espero que, sob a tua condução, o programa volte a investir em mais diálogo, que seja capaz de reunir a esquerda e a direita comprometidas com o Estado Democrático de Direito em torno do debate de ideias.

24/01/2018: a morte da Justiça

Li no prefácio de um livro humor, há muito tempo, não me recordo quem seria o autor – talvez Millôr Fernandes – que a veia humorística do brasileiro ficou clara quando os índios, habitantes originais do Brasil, ao observarem da praia a chegada das caravelas portuguesas, comentaram em tom jocoso: “Não vai dar certo”.

Mais de quinhentos e dezessete anos depois eu, observando o dia de hoje, 24 de janeiro de 2018, e analisando todos estes anos concordo, com pesar,  com o comentário dos índios: “Não deu certo mesmo”.

O comentário dos índios pode ser visto como uma prova de humor. Minha posição, ao contrário,  deve ser vista como uma declaração de desesperança.

Há dez anos, já em final de carreira profissional, pensando em uma atividade pós-aposentadoria, resolvi estudar Direito. Após três anos de estudo dedicado e interessado, pressionado pelas circunstâncias – família, saúde – e pelas demandas da vida profissional ainda ativa, tomei a decisão de trancar a matrícula no curso.

Nos primeiros anos do curso de Direito o estudo de Filosofia do Direito ajudou a fundamentar as dúvidas e questionamentos que eu tinha sobre a aplicação do Direito, em especial nas sociedades fascistas como a nossa, onde o Direito é ditado ou interpretado conforme os interesses do poderoso de plantão. Estudar Marx ensinou, há muitos anos, ainda na faculdade de Economia, o papel do Direito nas sociedades burguesas.

Na ditadura, inaugurada em 1964, foram cassados os mandatos dos Congressistas de oposição, aposentados compulsoriamente Ministros do Supremo Tribunal Federal, que teve o número de ministros aumentado para permitir a nomeação de novos ministros pelo general no poder e para forjar uma maioria para dar à ditadura a possibilidade aprovar “legalmente” o que quisesse. Foi preparada uma nova Constituição Federal, encomendada pelos generais, e aprovada pelo novo Supremo  nomeado pela ditadura.

Havia uma Constituição, haviam leis preparadas por um Congresso, juízes e imprensa, todos cúmplices. Em resumo: havia uma ditadura, tentando manter a aparência de democracia.  Estes atores ajudavam a manter a farsa.

Argumentavam, os apoiadores da ditadura – estes sempre existirão – que todos os atos dos generais ditadores eram legais, pois estavam previstos na Constituição Federal e nas leis infra-constitucionais. Destes anos levei para a faculdade de Direito o valioso conhecimento da diferença, por experiência, entre legal e legítimo.

A manutenção da ordem naquele regime era obtida pela força das botas, da tortura e dos canhões. A diferença entre legal e legítimo era clara, transparente. Bastava observar o cenário internacional para concluir que vivíamos uma ditadura travestida de democracia.

Além da força e da censura feroz, os generais contavam  com uma mídia pusilânime e amiga. Lá estavam, manipulando a realidade e criando um mundo paralelo fictício, os mesmos de sempre: Globo, Estadão, Folha… Tudo financiado pelo dinheiro das elites empresariais, nacionais e multinacionais, e por uma classe média arrivista.

Eu nunca imaginei que a sociedade que saiu traumatizada da ditadura e montou um arcabouço institucional para lidar com os seus traumas gerados pelos anos de escuridão, permitiria que um dia como este 24 de janeiro de 2018 pudesse acontecer.

O que preocupa nesta nova ditadura é que as fronteiras entre o legal e o legítimo não existem mais. O que traz agonia e desesperança nos dias de hoje é que os “novos generais”, da nova ditadura, ao contrário dos generais do passado, sabem falar e, em alguns casos, sabem até escrever. São âncoras de programas de TV, são juízes, desembargadores, ministros de Trinunais. Donos de conglomerados de comunicação, ditadores da opinião pública.

O Direito, nas bocas e nos teclados destes novos canalhas, é uma arma perigosíssima. Arma mais sutil que botas, torturas e canhão e, portanto, mais poderosa.

Eu não gostaria de estar na pele dos operadores do Direito honestos e bem-intencionados. Mesmo não tendo concluído meu curso, sinto-me envergonhado.

Como estou feliz com minha sábia decisão de interromper meus estudos de Direito!

Como Marx está atual!

Paulo Martins

O julgamento de Lula: três homens e uma sentença, por Rogério Arantes

Compartilho, para ajudar na discussão e, principalmente, desnudar a trama montada pelos procuradores de Power Point macomunados com o juiz Moro.

Soma-se ao livro que foi escrito com a posição de diversos juristas demonstrando os erros e absurdos do processo e da sentença de primeira instância.

Paulo Martins

Três homens e uma sentença.
No próximo dia 24, a turma formada por três juízes do TRF4 – Gebran, Paulsen e Laus – julgará o recurso de Lula contra a sentença de Moro. Se o julgamento não for interrompido por qualquer motivo, o dia terminará com um de quatro resultados possíveis: confirmação da sentença de Moro por unanimidade (I) ou por maioria de 2 x 1 dos juízes (II), ou rejeição da sentença por unanimidade (III) ou por maioria de 2 x 1 dos juízes (IV). Considere ainda que a eventual confirmação da sentença (I ou II) pode ser acompanhada da revisão das penas, para cima ou para baixo. Em qual dos resultados você apostará neste almoço de domingo?
Uma análise de decisões anteriores da 8ª turma, sobre recursos apresentados por réus condenados, revela que os três magistrados, especialmente o relator Gebran Neto, estão em grande sintonia com as ações realizadas pela Força Tarefa da Lava Jato e as sentenças proferidas em primeira instância. Os números disponíveis indicam que pouquíssimos recursos tiveram êxito junto ao trio, que tende a aumentar em vez de diminuir a dosimetria das penas fixadas por Moro.
Nos recursos apresentados é bastante comum que os réus condenados aleguem uma série de irregularidades e nulidades nos processos conduzidos por Moro: incompetência (falo em sentido formal) da 13ª Vara de Curitiba para julgar aqueles crimes, desrespeito ao devido processo legal e às garantias de ampla defesa, inépcia da denúncia, nulidades nas ações de busca e apreensão, em escutas telefônicas, nas conduções coercitivas, nas delações premiadas e até com relação às primeiras medidas que ensejaram o início da operação Lava Jato. O trio do TRF4 já enfrentou todas essas alegações, na forma de “preliminares” em diversos recursos, para rejeitar todas elas. Neste sentido, Gebran-Paulsen-e-Laus parecem ter consolidado o entendimento de que a Lava Jato é uma operação de investigação, ações penais e julgamentos praticamente irretocável.
Impressiona na leitura dos votos dos três juízes o grau de conhecimento de que dispõem sobre as informações levantadas na base pelo MPF e PF. Embora decisões de segundo grau não se destinem a revisar os supostos fatos criminosos, mas basicamente se o direito foi aplicado corretamente pelo magistrado de primeiro grau, Gebran-Paulsen-e-Laus não se furtam a detalhar informações, especificar valores e até revisar contas, reproduzir depoimentos e ancorar suas decisões mais na matéria bruta derivada das investigações do que na (re)qualificação dos juízos emitidos por Sergio Moro. Em poucas palavras, tendem a realizar um segundo julgamento mais do que revisar o primeiro, e nesse processo têm confirmado os resultados quando não agravado a situação dos condenados.
Os perfis veiculados na grande mídia destacam que Gebran-Paulsen-e-Laus são juízes duros e conservadores, embora a leitura de seus votos indique que procuram ser técnicos e pouco moralistas. De fato, suas decisões raramente invocam razões morais ou éticas e sequer costumam fazer apologia do combate à corrupção ou da cruzada de salvação nacional liderada a partir de Curitiba. Vale mencionar, entretanto, que um deles, Laus, é oriundo do próprio MPF, talhado assim na arte da acusação e tendo ingressado no TRF pela porta do quinto constitucional.
Em diversos votos, Gebran-Paulsen-e-Laus assumiram e consolidaram a premissa da Lava Jato: um gigantesco e sofisticado esquema de corrupção assaltou a Petrobrás. Disso estão convencidos e as favas, que são centenas ou milhares, já estão contadas. Mais do que convictos deste grande e alarmante fato, parecem dominar o conjunto probatório e das delações premiadas produzido no âmbito da 13ª Vara e buscam exauri-lo em meio à tarefa de responsabilizar criminalmente e na dose certa cada um dos envolvidos no grande esquema.
Todavia, uma análise dos votos da 8ª Turma revela que o trio, em alguns casos, tem esbarrado no problema da falta de provas para sustentar determinadas condenações. Nestes casos, tal como ocorreu com a chamada “teoria do domínio do fato” no Mensalão, Gebran-Paulsen-e-Laus têm recorrido a conceitos e técnicas alienígenas (no jargão jurídico quer dizer estrangeiros) como expedientes de demonstração, de preenchimento de lacunas e superação de contradições lógicas, seja da acusação, seja da condenação em primeiro grau. Dois desses estratagemas estão expressos nas chamadas “prova acima de qualquer dúvida razoável” e “cegueira deliberada”, com adaptações locais capazes de subverter seus sentidos originais. Oriunda da experiência do tribunal do júri nos Estados Unidos, a ideia de “proof beyond a reasonable doubt” por lá é ensinada aos jurados como forma de ponderar provas e dúvidas, de tal modo que uma dúvida razoável pode afastar o peso das provas, ou que provas somente podem ser consideradas suficientes se sobreviverem ao teste de dúvidas razoáveis. Pois o relator da Lava Jato na 8ª Turma tem considerado que “o tema das provas é de fundamental importância, em especial para o presente feito, porque os delitos imputados aos acusados são complexos e de difícil apuração, muitas vezes dependendo de um conjunto de indícios para a sua comprovação”, nas palavras de Gebran. Dito isso, segue o magistrado, “colhe-se da experiência estrangeira o parâmetro da existência de prova ‘acima de uma dúvida razoável’ (proof beyond a reasonable doubt)”, mas invertendo seu sentido original, Gebran argumenta que “essa ‘prova acima de uma dúvida razoável’ importa no reconhecimento da inexistência de verdades ou provas absolutas, devendo o intérprete/julgador valer-se dos diversos elementos existentes nos autos, sejam eles diretos ou indiretos, para formar sua convicção. Assim, tanto provas diretas quanto indícios devem ser considerados para composição do quadro fático que se busca provar.” Traduzir “beyond” como “acima” em vez de “além de” tem feito boa diferença na absorção do conceito alienígena. Ou em outras palavras, se as provas forem razoáveis em seu conjunto, dúvidas não devem impedir a conclusão pela condenação. Mal comparando, Dilma também conheceu no processo de impeachment o peso que pode ter “o conjunto da obra”.
O segundo estratagema é mais conhecido. Por “cegueira deliberada”, também de origem norte-americana, entende-se o comportamento do réu que, intencionalmente, finge desconhecer a origem ilícita ou condutas criminosas precedentes relativas às vantagens que está auferindo no momento seguinte. Em acusações de lavagem de dinheiro, que em geral envolvem crimes anteriores, essa teoria tem se mostrado crucial para levar à condenação réus que alegam desconhecimento da origem ilícita dos recursos movimentados. No fundo, invocar a “cegueira deliberada” é uma forma de superar, no processo criminal, a incapacidade dos órgãos de acusação e julgamento de demonstrar o dolo do agente, e a teoria é tão mais viável de ser aplicada quanto maior o conjunto de evidências capazes de apontar na direção do ato criminoso. O problema dessa teoria é que a “cegueira deliberada” atribuída ao réu pode refletir na verdade a miopia dos agentes do Estado na tarefa de comprovar efetivamente o crime, condenando os acusados por meio de lentes de aproximação. Substituir o dolo que não se consegue provar pela inferência do fingimento dá ao julgador o poder de converter água em vinho, mas também justiça em injustiça.
Neste cenário, quais as chances de Lula no dia 24?
A sentença de Moro condenando o ex-presidente foi duramente criticada por diversos especialistas. Segundo os críticos, a sentença padece de todos os vícios preliminares indicados acima, mas é praticamente nula a possibilidade de que o trio Gebran-Paulsen-e-Laus venha reconhece-los a essa altura do campeonato, depois de terem rejeitado tais argumentos em sucessivos julgamentos. Aqui temos um ponto crucial. A Lava Jato é herdeira do Mensalão em diversos aspectos, mas foi além ao subir um degrau na escada do que supõe ser o maior esquema de corrupção de todos os tempos, alcançando por meio de inquéritos, acusações formais e uma primeira sentença um ex-presidente da República. Desde o início a operação está desenhada para chegar ao cume da organização criminosa e todas as estratégias foram habilmente conduzidas – por vezes em benefício dos criminosos menores – para se chegar ao “comandante da propinocracia”. Desde que seu nome apareceu no centro de um primário powerpoint a nação sabe que o alvo final da Lava Jato é Lula.
Como chegamos a este ponto? Em quantos países uma das maiores autoridades que ascenderam e se legitimaram democraticamente, entraram para a história como líderes de um dos governos mais bem-sucedidos e obtiveram enorme reconhecimento internacional, é levada às barras dos tribunais e corre o risco de ser condenado, impedido de voltar à presidência e preso por agentes da lei e não por simples opositores ou militares? Nunca na história deste país e eu arriscaria dizer de qualquer outro se viu um processo dessa magnitude e com tais características.
O fato é que essa gigantesca pororoca que marca o encontro das águas da Justiça com a Política é movida por correntezas profundas que marcam a história brasileira, mas que alcançaram a superfície de modo especial com a Constituição de 1988. Com o apoio decisivo da esquerda, a carta realizou uma massiva transferência de poder aos agentes da lei e o que hoje assistimos é o maior e mais surpreendente acerto de contas entre eles e “os políticos”.
Gebran-Paulsen-e-Laus devem ter noção do ineditismo da situação e estão pressionados a confirmar a ultima estrela na árvore de natal em que se converteu a Lava Jato. Talvez até acreditem que são colaboradores de Noel e que trarão ao país o maior de todos os presentes já recebidos. Todavia, afora as preliminares já anteriormente rejeitadas pelo trio, a sentença contra Lula padece de lacunas não preenchidas que, à luz do processo penal convencional, poderiam muito bem levar à sua absolvição. A sequência que vai dos esquemas de corrupção na Petrobrás > propinas da OAS > corrupção passiva de Lula e lavagem de dinheiro pela posse/ocultação do Triplex e sua reforma carece de comprovações e vínculos que só puderam ser superados per saltum, na corrida de obstáculos em que se converteu a sentença.
Existiria uma mínima chance de Lula ter sua condenação revista pela 8ª turma? Uma das poucas decisões em que Gebran-Paulsen-e-Laus divergiram e se formou uma maioria a favor do réu se deu na revisão de uma das condenações de João Vaccari Neto, o tesoureiro do PT. Paulsen e Laus argumentaram que a condenação se baseou apenas em declarações tomadas por colaboração premiada, algo que a lei não permite, ao passo que Gebran argumentou que havia claros indícios de que o produto do crime de corrupção fora destinado ao partido sob os cuidados de Vaccari Neto. E mais, “havendo diversos colaboradores asseverando fatos no mesmo sentido, entendo que há a regra acima transcrita [a de que não cabe condenar apenas com base em colaboração] deixa de ser imperativa, haja vista corroboração de um depoimento por outro.” Ou seja, na visão do relator não se pode condenar alguém com base em apenas uma delação premiada, mas se forem duas ou mais, na mesma direção, pode. “Ademais, diz Gebran, os contra-indícios são por demais etéreos e incapazes de fragilizar as conclusões a que chegou o magistrado de origem com base no somatório de proeminentes indícios e na boa prova material, devendo, portanto, ser improvido o recurso.” A despeito desses argumentos, os dois colegas de turma consideraram que a acusação não soube provar de fato a participação do tesoureiro naquele crime e, reformando a sentença de Moro, absolveram Vaccari Neto.
Considerando que a sentença contra Lula está lastreada apenas na segunda versão de apenas um delator (porque na primeira e abortada tentativa Leo Pinheiro não havia enredado o ex-presidente) e que o conjunto probatório apresenta lacunas e inconsistências que apenas a narrativa da propinocracia é capaz de equacionar, recorrerão Gebran-Paulsen-e-Laus aos estratagemas da “prova acima de qualquer dúvida razoável” e da “cegueira deliberada” para confirmar a condenação do ex-presidente, coroando a Lava Jato e preenchendo o ultimo círculo do powerpoint, ou se afastarão da mera narrativa, exigirão mais provas e mais demonstrações que permitam aplicar o direito penal sobre o cidadão Lula?
A Lava Jato é a operação judicial politicamente mais bem sucedida de todos os tempos. A Justiça ergueu-se contra a Política, mas neste processo deixou-se politizar na forma clássica dos fins que justificam os meios. Alcançar resultados pré-fixados têm sido a meta de muitos dos seus envolvidos, e isto significa dizer que fazem política num sentido bastante específico, não necessariamente partidário ou ideológico. Acima de tudo, Gebran-Paulsen-e-Laus estão sendo desafiados a ratificar ou não essa nova modalidade de fazer justiça, e a decisão do trio no dia 24 confirmará ou não o êxito dos agentes da lei em carimbar a estrela no cume da árvore que lograram construir. Se isso é Justiça ou Política, não dá mais para saber.

Febre amarela na Alemanha ou nos EUA

18/01/2018

Revisado em 19/01/2018

Acordei hoje pela manhã de um coma profundo que durou quase 3 anos.

Leio os jornais e não acedito. Temer na presidência; Cunha, supostamente preso, comandando o governo central mediante indicação de ministros e de comparsas para inúmeros cargos federais.

Temer está sendo chantageado por todos os conspiradores do golpe, até mesmo por um que diziam há três anos tratar-se de um defunto político. Pois este defunto  espera poder enterrar a Justiça trabalhista a partir da indicação da sua filha e de afilhados partidários para cargos no Ministério do Trabalho.

Por incrível ironia do destino o sobrenome da pessoa indicada pelo defunto político para assumir o cargo de Ministra, ou  seja, para enterrar o Ministério do Trabalho, é Brasil. E o partido que o defunto político comanda se intitula PTB – Partido Trabalhista Brasileiro.

Para aumentar meu espanto, o defunto, em meio às discussões sobre a impropriedade ou mesmo a ilegalidade de condenada pela Justiça trabalhista assumir o cargo de Ministra o Trabalho declara, do alto de seu posto de comando do Partido Trabalhista, que não sabe para o que servem a Justiça Trabalhista e o Ministério do Trabalho.

Surreal demais para um reles redivivo como eu.

Sempre achei que nossa vocação como país, desde a “descoberta”, era esta mesma: Brasil destruindo o Brasil. Uma espécie de auto-implosão, de suicídio coletivo à Jim Jones.

Havia, antes do acidente que me levou ao coma, uma onda de patos amarelos que eu julgava letal para a democracia. Ao acordar, percebo que a onda, por falta de verbas para vacinação e por falta de capacidade gerencial, transformou-se em uma febre, também letal que, em vez de matar a democracia para matar pessoas, faz o trabalho diretamente, sem etapas intermediárias: mata as pessoas.

Na banca de jornal, leio uma notícia na primeira página de uma mídia publicitária, apresentada em formato de jornal diário, sobre o surto de febre amarela.

 Desinformado em função do longo período em estado de letargia leio na banca de jornal, sem entender, na página principal, em letras garrafais:

                                                    “FEBRE AMARELA”

                       “País reduziu em 33% verbas para prevenir epidemias”

         “Em 2017, repasses a estados e municípios totalizaram R$ 20 milhões”

Não consegui dar com o sentido da palavra “país”, no início da manchete. Parece deslocada, fora de lugar. Sabedor que a imprensa venal brasileira especializou-se em esconder a verdadeira informação por trás de letras garrafais em jornal de ampla circulação, pensei ser esta a primeira pista para decifrar o título.

Logo fui assaltado por uma dúvida. Assaltado …  mais uma indicaçação sobre qual país seria, ao mesmo tempo, vítima deste infame tratamento sobre a área de saúde e seu agente causador.

Seria este tal país a Alemanha, que teria diminuído as verbas para o combate à febre amarela em função da erracadição da doença, ou os Estados Unidos, agora assolado por pragas, como a eleição de Trump, os assassinatos em série e o aumento da desigualdade de renda e de riqueza, que atingiu nível de epidemia, necessitando desviar recursos da saúde para construir o muro da vergonha na fronteira com o México?

Ou seria um outro país, muito mais próximo, a que a enigmática notícia se refere? O país de Temer, Meirelles, Illan, Steinbruch, Reichlo, Aécio, família Marinho e Maluf?

Lento, demorei a perceber que ao usar a palavra “país”, o engenhoso editor do jornal tentou esconder os verdadeiros autores deste crime e colocou todos nós, o país todo,  no lugar da equipe econômica e dos golpistas culpados. De acordo com o jornal, todos nós, os 208 milhões de brasileiros que compomos esta entidade chamada “país”, somos os culpados pela redução dos repasses de verbas para prevenir epidemias e cuidar da saúde das pessoas.

E eu pensando que o tal país era vítima e o jornal deixando claro que o país é, na verdade, o criminoso, o causador da tal epidemia.

Não ví nenhuma contestação sobre esta matéria jornalística. Como tenho assistido nos telejornais concorrentes o mesmo comportamento, estou assumindo que a prática de esconder o nome dos verdadeiros culpados pelas tragédias nacionais, ede considerar as vítimas como as verdadeiras culpadas, naturalizou-se e é aceita por todos.

Foi ele. Prendam o país.

Paulo Martins