Máquina de moer gente

Máquina de moer gente

Antônio Prata

Eu tinha 16 anos, era inocente, puro e besta —como dizíamos quando eu tinha 16 anos e era inocente, puro e besta— ao desembarcar de um ônibus São Geraldo, após 23 horas de viagem, na praça central de Itaúnas.

Em 1994, a vila de pescadores na fronteira do Espírito Santo com a Bahia tinha só uma pousada e o restaurante da Dona Tereza. (Tereza servia um PF de peixe frito tão demorado que até hoje não sei se era mesmo o manjar dos deuses que me parecia ou se o gozo sobrenatural ao comê-lo vinha das horas de espera).

Em frente à Dona Tereza, toda noite, sob um galpão com piso de cimento queimado, rolava o forró até de manhãzinha. O rei do forró era o Tatu, um caiçara da minha idade, pele dourada e enorme de forte.

Tatu tinha uma canoa construída por ele mesmo e era nela que levava para passeios rio adentro as belas paulistas que os inocentes, puros e bestas como eu cobiçavam –embalde.

Se eu fosse uma bela paulista, também preferiria o Tatu a mim. Ele não era só bonito, forte e fazia canoa: cerzia rede, entendia de marés, caçava polvo no arpão, saía para pescar por dias no alto-mar feito um personagem numa música do Caymmi. Todos os garotos e homens por ali eram assim.

Construíam as próprias casas, os próprios barcos, garantiam a própria comida, tinham suas próprias crenças, festas, mitos e ritos. Uns Leonardos da Vinci, “uomini universali” autossuficientes da vida praiana.

Nascido e criado em São Paulo, eu nunca tinha visto pobreza econômica aliada a tamanha riqueza cultural. Minha experiência litorânea resumia-se basicamente a Ubatuba e São Sebastião. A rodovia Rio-Santos, com pouco mais de vinte anos, já tinha conseguido transformar quase todas as comunidades caiçaras de São Paulo em startups de aculturação, em incubadoras de caseiros, garçons e piscineiros para os ricos paulistas.

Nas praias que eu frequentava, os caras da geração do Tatu já estavam todos do jeito que o rico de São Paulo gosta, de uniforme e cabeça baixa, sem saber fazer canoa ou navegar, falando “sim, senhor, não, senhor, desculpa qualquer coisa, senhor”. (Essa castração existencial a que chamamos, orgulhosos, de “qualidade nos serviços” —o contrário do Rio, com aqueles pobres tão mal adestrados.)

É impressionante a imutabilidade da história brasileira. A nossa elite é incapaz de viver sem a dependência permanente de uma senzala. (Aliás, não bastaram os caiçaras, ainda foi necessário trazer milhares de migrantes nordestinos para abrir os guarda-sóis dos veranistas).

Eu penso muito antes de escrever coisas como “o rico de São Paulo” ou “a nossa elite” ou “senzala”. Parece discurso fácil em centro acadêmico, mas o que posso fazer se a realidade brasileira é um clichê, do Borba Gato à Barra do Sahy?

Não houve falha das instituições na hecatombe da semana passada. É o contrário. As nossas instituições existem há 523 anos justamente para manter rico em conforto e segurança de um lado e pobre do outro, amontoado do jeito que der. Parte da culpa pela desgraça pode ser atribuída ao aquecimento global.

A outra parte é fruto do que o Darcy Ribeiro chamava da nossa “máquina de moer gente”. Um sistema muitíssimo eficiente que em poucos anos faz vigorosos argonautas naufragarem em terra firme (sic).

Por esses dias tenho pensado muito em Itaúnas e no Tatu. Que rumo terão tomado? Será que os filhos do Tatu sabem construir canoa, aguentam caçar polvo no pulmão, navegam por alto-mar? Ou será que o turismo (do qual eu fiz –faço— parte) já se encarregou de agarrá-los pelas bolas e arrastá-los à parte que lhes cabe destes latifúndios?”

FSP, 25fev23

A volta de Janaína Paschoal e o drama dos estudantes da USP

Eu entendo a situação dos estudantes da USP. Certamente não será fácil aturar uma professora desse quilate. Os prejuízos para a formação intelectual e profissional dos alunos será irreparável.

Já estive em situação similar na universidade.

Corria o ano de 1972 ou 1973, ditadura sufocante pós-AI5. Éramos alunos do curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal Fluminense.

Disciplina: Moedas e Bancos

Professor: Polenguinho

  • Polenguinho?
  • Sim, Polenguinho.

Explico:

Bem, não é fácil explicar um apelido preconceituoso. Se o apelido fosse “múmia”, seria ofensivo, mas mais fácil de explicar. Seria sobre sua incompetência e não sobre a sua aparência . O professor era um senhor baixinho, gordo e pastoso. Muito branco, faces coradas, parecia um americano. Sempre vestido de terno e gravata, mesmo no verão mais inclemente. Não consigo lembrar o seu nome. Ficou marcado como Polenguinho.

Ortodoxo nos hábitos e na doutrina econômica que professava, como convém a um membro do vetusto Conselho Monetário Nacional, na ditadura militar de 64.

As aulas eram horríveis. Sonolentas, cheias de mofo acadêmico e teorias ultrapassadas, com conteúdo ralo.

Não ficamos parados. Solicitamos à Reitoria a sua substituição por um professor melhor preparado para ministrar matéria tão importante para o curso de Economia. Nenhum resultado.

Fomos à luta. Primeira providência: fazer uma vaquinha para comprar um caixão de madeira e uma coroa de flores com os dizeres: Aqui jaz Polenguinho. Fizemos um enterro simbólico do professor. O cortejo fúnebre circulou pelos andares e pelo pátio da Faculdade de Ciências Econômicas e Administração da Universidade Federal Fluminense. Isso nem abalou o professor.
Ele continuou tentando ministrar suas aulas.

Na primeira prova, ele apresentou as questões, muito fáceis, e retirou-se da sala de aula. Depois de um tempo retornou para a sala de aula, mas teve o cuidado de arrastar os pés e sacudir as chaves antes de entrar na sala. Ridículo. A prova era tão fácil que seria humilhante para qualquer aluno sério tentar colar.

Segunda providência: alunos arrancaram umas quatro ou cinco soqueiras de capim e colocaram, com a terra preta presa nas raízes e tudo, em cima da mesa do professor antes dele chegar para a aula. Ficamos sem saber quem providenciou o presente. O Sr. Polenguinho chegou e, enquanto afastava as soqueiras de capim, jogando-as ao chão, murmurava: “Esses alunos”. E deu aula normalmente, como se nada tivesse acontecido.

Terceira providência: chegamos cedo e colocamos todas as carteiras da sala de aula de costas para a mesa do professor e para o quadro-negro. O professor Polenguinho chegou, olhou aquela situação – todos os alunos de costas -, avaliou que seria ridículo dar aula e se retirou. Um certo tempo depois, apareceu Moacir – o saudoso Môa – gestor administrativo da faculdade para informar que o professor não daria aula e que ia solicitar à Reitoria a sua substituição por outro professor.

É assim que me recordo. Posso ter me enganado em pequenos detalhes pois, afinal, lá se vão cinquenta anos. Mas as linhas gerais são essas.

Sejam criativos alunos da USP.


PauloM