Notas sobre o absurdo

Notas sobre o absurdo

Por Marcia Tiburi

27 de novembro de 2022

Um garoto de 16 anos não nasce assassino.

Um adolescente de 16 anos não cresce desejando se tornar um assassino em série.

Um menino do interior do Espírito Santo não acorda um dia pela manhã e decide se tornar um fascista.

O filho de um policial – ou de um não policial – não nasce nazifascista.

O neto, sobrinho ou primo de qualquer um não cresce sabendo manipular armas.

Um menino que vai à escola não nasce sabendo atirar.

Um menino que joga bola não nasce cheio de ódio.

Um garoto que tem problemas psicológicos – como tanta gente tem nesse mundo tão difícil de sobreviver emocionalmente – não planeja matar colegas e professores.

Um menino que nem descobriu a si mesmo não conhece uma suástica sozinho.

Ele não nasce camuflado.

Ele não nasce vazio de reflexão.

Ele não nasce vazio de emoção.

Um garoto de 16 anos só pode se tornar um assassino em meio a uma cultura de ódio. A cultura na qual o ódio é um valor.

A cultura em que as armas, como poderosos instrumentos de ódio prático, são tratadas como banais, como brinquedos.

A lógica do assassinato – que parece não ter lógica nenhuma – é a racionalidade do fascismo do qual o nazismo é a expressão mais cruenta.

A apologia da morte que fez história no fascismo europeu segue no Brasil onde pululam células e grupos fascistas e nazifascistas. Jovens estão sendo aliciados por agentes do ódio que encontram solo fértil para avançar com seu projeto de matança em massa.

O garoto que destruiu a vida de pessoas por ele assassinadas e destruiu a vida das famílias dessas pessoas, destruiu a sua própria vida e a vida de sua família.

Não há palavras que possam consolar familiares e amigos das vítimas que seguirão traumatizados.

O Brasil está de luto porque o império da morte avança com a irresponsabilidade de instituições que devem coibir e punir os aliciadores de menores. Os agitadores fascistas e todos os que incitam a violência são responsáveis.

A cultura do ódio se beneficia da cultura da irresponsabilidade.

Só um projeto envolvendo educação, cultura e meios de comunicação para a paz e a não violência podem construir um futuro em que a catástrofe que a cidade de Aracruz acaba de viver não se repita.”

Márcia Tiburi

Isabel. Sempre presente.

“Meu nome é Isabel, joguei vôlei na seleção brasileira, representei o Brasil por muitos anos. Resolvi escrever essa carta aberta, não para falar de esporte, mas para falar da cultura, porque acredito que só pude ser a jogadora que fui e a pessoa que sou graças aos filmes que vi, aos livros que li, às músicas que ouvi, às histórias que minha avó me contava. Minha mãe era professora e escritora, amava os livros, adorava música, e foi ela quem me apresentou a Chico Buarque, Caetano, Cartola, Luiz Melodia, entre tantos grandes compositores brasileiros. Lembro, quando chegava do treino muito cansada, que me deitava no sofá e ela me falava dos poetas que amava: Bandeira, Joao Cabral, Cecília Meirelles, Drummond…. Hoje tenho certeza que aquela atmosfera foi muito importante na minha formação.

Quantas vezes, ouvindo e dançando as músicas de Gilberto Gil com Jacqueline, a grande campeã Olímpica, comemoramos vitórias e tentamos esquecer a dor de algumas derrotas. Lembro também do impacto que senti, aos 18 anos, quando assisti ao filme “Tudo Bem”, de Arnaldo Jabor, com a incrível Fernanda Montenegro e um elenco de craques. Aos 17, assisti “Trate-me Leão”, peça que inspirou toda uma geração. Quantas vezes, os livros me transportaram para outros universos e me permitiram aliviar as tensões das quadras.

Pois é, depois de um ano de governo Bolsonaro, preciso expressar meu horror com o que tem acontecido com a cultura. É muito duro ouvir os insultos que foram proferidos contra Fernanda Montenegro; ver Chico Buarque ganhar o prêmio Camões, maior prêmio da língua portuguesa, sem que o presidente cumprimente ou comemore o feito; testemunhar a morte de João Gilberto, um dos maiores compositores brasileiros sem que nenhuma homenagem tenha sido feita pelo governo. É estarrecedor saber que nosso cinema é premiado lá fora e atacado aqui dentro; ver o ataque brutal à casa de Rui Barbosa, com as exonerações dos pesquisadores que eram a alma e o coração daquela instituição. E como se não bastassem esses exemplos de barbaridade, assistimos ainda o constante flerte do governo com a censura.

Essa carta é só pra dizer que eu me sinto muito ofendida, senhor Bolsonaro. Não sou uma intelectual, sou uma cidadã brasileira que acredita que a cultura é essencial para qualquer pessoa.

Ela só existe ser for plural, em todas as formas de expressão. Por meio dela, formamos a nossa identidade.

Se esse governo não gosta do nosso cinema, da nossa música, dos nossos escritores, eu quero dizer que eu e uma enorme parte dos brasileiros gostamos.

Não aguento mais assistir a tantos absurdos calada. Vocês estão ofendendo uma grande parcela do povo brasileiro.

Aprendi no esporte que é fundamental respeitar as diferenças e saber que elas são enriquecedoras em todos os aspectos. Aprendi que é fundamental respeitar os adversários , e não tratá-los como inimigos.

Compreendi, vivendo no esporte, o quanto é importante ser democrático. Inspire-se no esporte, senhor presidente!

O senhor foi eleito democraticamente. Governe democraticamente, e não apenas para quem pensa como o senhor. Hoje eu pensei muito nos rumos da cultura, porque lembrei da minha querida avó, que me levava, quando menina, para passear nos jardins da casa de Rui Barbosa…”

Isabel Salgado

DESABAFO, ISABEL

A vida é combate. Vamos lutar sorrindo.

Por Roberto Garcia

Essse grupo de transição chefiado pelo vice-presidente eleito está dando todos os sinais corretos. Trata-se de uma amostragem ampla, de muito do que há de melhor em nossa sociedade. São gente com visão de um futuro mais abrangente. Há contradiçoes entre eles, sim, como toda sociedade tem. Mas estão dialogando, apresentando soluções, dispostas a combinar as suas propostas, para formar um conjunto viável.

Não existe uma única proposta que resolva tudo, para sempre. Nem um único líder capaz de tudo fazer. Em cada momento grupos se formam para buscar alternativas, encontram caminhos aceitáveis, que conciliam interesses, para cada momento. Nem sempre se produz perfeição, só o que é possível, o melhor , cada um com a sua força.

Tradicionalmente, a solução é a imposta pelos que sempre mais podem: a minoria mais rica, mais influente, que se apropria e se beneficia do trabalho de todos. Geralmente os interessses da maioria são empurrados para os lados, esquecidos, no máximo atendidos em pequena parte, para evitar explosões sociais.

Este é um daqueles momentos em que uma correção é possível. Em que se pode aumentar a parcela destinada à maioria. Aumentar em pouco mais de um por cento o salário mínimo, que caiu nos últimos quatro anos é uma das metas do novo governo. Chegamos num ponto em que um aumento de um por cento está sendo pintado como um abuso, que viola a estabilidade financeira do país.

Numa nação em que a maior parte está sem nada, na miséria, uma bolsa de pouco mais de cem dólares está sujeita a dura disputa. A merenda decente nas escolas faz com quem alguns cocem a cabeça, dando sinais de que isso já é demais.

Os grupos que aceitaram zerar o orçamento das universidades e das pesquisas científicas acham que voltar a dotá-las de viabilidade financeira pode afetar o equilíbrio fiscal.

As pressões são intensas. Antes mesmo da posse do novo presidente todos os mecanismos de proteção de privilégios foram acionados. As bocas de aluguel estão funcionando a todo vapor. Há que defender o indefensável. Aceitaram o Lula mas querem cortar-lhe as pernas e os braços.

Tudo isso exatamente no mesmo momento em que anunciam dividendos aos acionistas da Petrobras que ultrapassam tudo o que eles receberam antes, mais do que as grandes petroleiras do mundo pagam, para esse pequeno grupo tudo é possível, anunciam e distribuem dinheiro a rodo, sem pedir desculpa, é a regra do mercado.

Na frente dos quartéis, grandes multidões se juntam para dizer que não aceitam o resultado das eleições. Querem intervenção militar.
Evangélicos formam círculos para pedir a Deus que impeça a mudança. Eles querem Jair, Paulo Guedes, Damares dando as cartas.

Há que ver com calma esse jogo. Não adianta ficar nervoso. Bom acostumar-se. Vai ser sempre assim. Todo avanço terá que ser extraído com diálogo, mobilizando os interessados — a maioria –explicando muito, sem chamar ninguém de gado. Se forem bem explicados eles acabam entendendo.

As forças progressistas estão sendo desafiadas. Em quase todos os países a diferença nas eleições é pequena, dificil encontrar dígito duplo de vantagem para elas. A luta terá que ser constante.

Já dizia um poeta que a vida é combate, que aos fracos abate e aos fortes só pode exaltar. Estamos nessa. Pode não ser fácil. Mas é boa, a nossa chance. Não podemos deixar que ela escorregue entre os dedos. Vamos lutar sorrindo. Essa parada nós vamos ganhar.

Destaque

Movimentos perigosos na Petrobras e no BNDES

Cuidado com golpes em preparação na Petrobras e no BNDES, por Luis Nassif

“Os últimos dias de Pompéia, do governo Bolsonaro, estão provocando movimentos perigosos de boicote. Seria bom que os responsáveis avaliassem melhor as consequências sobre eles próprios.

O caso mais escandaloso é o da Petrobras, com a diretoria e o conselho decidindo antecipar dividendos sobre lucros futuros. Não vai terminar bem. Seria bom esse pessoal pesar bem as consequências, porque poderá resultar em desdobramentos criminais.

O segundo caso é o do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) pretendendo antecipar recursos para o Tesouro Nacional. Se a economia está em crise e o presidente eleito declarou a relevância do BNDES para ajudar na recuperação, a decisão de antecipar o pagamento – e esvaziar o banco – configura-se claramente um boicote e uma usurpação das funções de um governo que acabou de ser eleito e que, a partir de 1o de janeiro, assumirá o controle da economia.

Seria relevante que o Ministério Público Federal e o próprio Tribunal de Contas da União analisassem esses dois movimentos. No caso da Petrobrás, configura-se claramente uma apropriação indébita, com amplo prejuízo para a empresa. No caso do BNDES, houve um boicote.

O tal do mercado
É impressionante como a mídia é canal de transmissão passivo do tal do mercado.

Há duas formas de obter o equilíbrio fiscal: através do aumento das receitas ou corte nas despesas.

Quando a economia está enfraquecida, corte nas despesas significa tirar recursos da economia, acentuando a queda da atividade e, consequentemente, da receita fiscal.

Gastos de governo significam receita da atividade privada e, como consequência, aumento da receita fiscal.

Se o nível de despesa é maior do que o nível futuro da receita, amplia-se a dívida. Se consegue alavancar a economia e colocá-la para funcionar, consegue-se crescimento com redução da dívida.

Nesses momentos de indefinição, no entanto, o mercado usa qualquer argumento para especular. Ontem, além das declarações de Lula, utilizaram até a indicação de Guido Mantega para o grupo de transição do Planejamento para especular. E a mídia cai em todas.

Por aqui, a mídia trata como mercado o grupo de operadores de mesa, interessados apenas nos resultados imediatos. Os pesos-pesados, gestores de grandes fundos internacionais, incluindo a parte racional brasileira, têm outra visão. O fator mais preocupante, hoje em dia, é a questão do aquecimento ambiental. E a pauta-chave é a preservação da Amazônia.

Nesse quadro, Lula torna-se uma liderança avalizada globalmente por dois fatores: a defesa do meio ambiente e a liderança contra a ultradireita mundial.

Sem Lula, ambas as batalhas globais perdem muito. Daí o fato de que haverá enorme apoio ao governo Lula, e financiamento abundante para a transição energética do país. Quando as vozes maiores se fizerem ouvir, os bravos setoristas de mercado deixarão de tratar meros operadores como se fossem os deuses ex-machina da economia.”

O ADEUS DE UM HOMEM MINÚSCULO

(Por Renato Essenfelder – Estadão – 31/10/2022)

O homem minúsculo, o homúnculo, apagou as luzes do palácio e foi dormir. Depois de tanto bradar, gritar e babar, depois de ameaçar e conspirar à luz do dia, incessantemente, calou-se. Recolheu-se à insignificância que o espera. Amém.

Como os livros de história no futuro irão se referir a esse homem tão pequeno? Terá alguma importância, o seu nome, ou irão se interessar apenas pelo surto coletivo que se apossou de milhões de brasileiros, por meia década ao menos, e que resultou na eleição de um ninguém, um nada, um palhaço macabro? Um fantasma descarnado, insepulto e obcecado pela morte, sua especialidade, no qual milhões projetaram suas próprias fantasias autoritárias. Como? Por quê?

Quantos afinal projetaram naquele corpo sem vida, naquela vida sem alma, a virilidade perdida, as certezas corroídas, o desejo e a inveja da criança egoísta que brinca de motinho enquanto o mundo acaba em fome e doença. As pessoas morrem, ele debocha: e daí? Nada interrompe seu gozo sem fim.

Os livros de história no futuro talvez falem de um homem minúsculo que emergiu dos porões sujos do Congresso Nacional, já em avançado estado de decomposição moral e física, para canalizar todo o ressentimento de uma nação. Esse vórtice de maldade, cercado por gente ainda menor, ainda mais ridícula e ignorante orbitando ao redor de sua sombra.

Homens minúsculos, a história demonstra, podem projetar sombras imensas. Mas passam, os homens e suas sombras.

Ele tentou, com todas as minúsculas forças, tentou eternizar sua sombra horrível. Mas decrépito, fraco, bronco e insignificante, não conseguiu manter-se no poder. Porque destruir é uma coisa, mas construir é outra, muito mais difícil, muito mais complexa. O homem pequeno veio e apequenou o país inteiro, apequenou o Estado e as suas instituições, apequenou o povo, os amigos, as famílias. Destruiu, passou bois e boiadas, sufocou, boicotou, conspirou, enquanto ocupavamo-nos de sobreviver.

Mas então, enfim consciente da sua pequenez, emudeceu no canto do palácio vazio, vítima da própria insignificância.

Depois de destruir e destruir e destruir, descobriu-se incapaz, impotente, brocha. Um fantasma de brochidão e fraqueza, incapaz de fecundar o que quer que seja – planos, corpos, natureza. Homens pequenos não constroem coisa alguma.

Já era hora de dar um basta, já era hora de lembramos a nós mesmos que o homem pequeno é pequeno demais para um país tão grande.

👋👋👋👋👋👋👋👋👋


RENATO ESSENFELDER é jornalista, escritor e professor universitário. É doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Comunicação e Artes pela Universidade da Beira Interior (Portugal).

Golpe militar e os caminhoneiros

Em 1996, em Eldorado dos Carajás, 21 pessoas do MST foram assassinadas pela PM, na Curva S. Reivindicavam a posse de uma fazenda improdutiva que havia sido ocupada. Pretendiam marchar até Belém para negociar a desapropriação da fazenda. Ou seja, sua reivindicação era sobre uma pauta econômica, plenamente negociável, se houvesse flexibilidade e boa vontade.

Antes que alguém imagine que eu estou propondo fuzilar os manifestantes que pretendem inverter o resultado da eleição presidencial ou exigem a instalação de uma ditadura militar, minha resposta óbvia é não.

O que eu quero argumentar é que este movimento é inaceitável e insustentável, pois suas pautas são inegociáveis. Nenhuma autoridade, nem a Presidência da República, nem o Congresso Nacional, nem o Judiciáro e nem todos estes juntos têm mandato ou autoridade, à luz da CF88, para negociar um absurdo desses.

Não estou preocupado somente com os prejuízos econômicos ou com o direito de ir e vir. Se as causas, ou seja, se as reinvindicações pudessem ser objeto de negociação, a solução seria mais fácil.

Não é o caso aqui. Os prejuízos humanitários ou para a democracia são enormes e se a situação de insurreição se prolongar, vamos começar a colher cadáveres.

Trata-se de uma situação sem saída: ou os manifestantes derrotam o país e sua democracia ou a democracia e o país derrotam os golpistas. Não há meio termo neste caso.

E o presidente da República, ainda responsável pelo governo, ao se omitir, comete crimes, no âmbito político e no âmbito penal. E quanto mais o tempo passa, mais aumentam as qualificadoras e as agravantes desses crimes. A insistir, deve ser chamado à responsabilidade pelo Sr. Procurador Geral República, Dr. Augusto Aras. Não acatando e contribuindo para o encerramento dos bloqueios, deve processado e preso.